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22/11/2012
Álvaro de Campos
"(...)
Viver é pertencer a outrem. Morrer é pertencer a outrem. Viver e morrer são a mesma coisa.Mas viveré pertencer a outrem de fora, e morrer é pertencer a outrem de dentro. As duas coisas assemelham-se, mas a vida é o lado de fora da morte. por isso a vida é vida e a morte, morte; pois o lado de fora é sempre mais verdadeiro que o lado de dentro - tanto que é o lado de fora que se vê, e o lado de fora que não há.
O seguimento de uma coisa, por exemplo, de um propósito, é paralelo a ele. Na vida, nada segue a não er aoa lado. não há seguimento que não seja um simples acompanhamento. Coexistir quer dizer existir ao lado. Falar é coexistir consigo mesmo.
O homem que galgou o muro tinha um muro que galgar.
Fingir é descobrir-se.
Deitar-se é levantar-se de não ter ido para a cama.
Ter razão é não saber quais são as emoções que se tem.
O homem que descobriu a liberdade voltou para casa e fechou-se na cama.
Ser é abdicar.
Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem poratanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente.
Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem as montadas, os cavaleiros seriam peões. O lugar forma a localidade. Estar é ser.
Uma porta tem dois lados - aquele para onde se abre, e aquele de onde se abre. O espaço aberto da porta é igual para ambos os lados. para um lado, incomoda, para o outro só deixa ver. Do lado que incomoda é que se pode esconder alguém.
Fingir é conhecer-se".
(Ambiente - 1927. Prosa de Álvaro de Campos, Ática, 2012).
Lenio: mais
13novembro2012
LEI E VIOLÊNCIA
As razões pelas quais o Estado não pode se "acadelar"
No Banquete de Platão, a deusa Pênia não foi convidada para o “butim”, arrastando-se por entre as sebes do jardim e se alimentando com os restos da grande festa. "Pênia" quer dizer penúria. O que falta, o que resta, o que fica de fora... o fraco.
Pois tudo está indicar que, na assim denominada “guerra de São Paulo”, com baixas assustadoras entre policiais e civis, Hobbes e Freud ficaram de fora do butim. Na verdade, acostumados a reverenciar o “deus” Rousseau (a responsabilidade é sempre da estrutura), as autoridades foram deixando o papel da interdição da lei (no sentido legal e psicanalítico da palavra) afrouxar. Quem deveria ser o protagonista, acaba sendo um coadjuvante. De péssima performance, aliás.
Como explicar a guerra de São Paulo? Na obra de Giorgio Agambem, tem-se o “novo” personagem. Ele é o homo sacer, que possui uma vida nua...Trata-se de uma vida totalmente “matável”, como diz Agambem. Uma espécie de lúmpen pós-moderno. Nessa “vida”, enfim, nesse ambiente em que “vive” o homo sacer, não há distinção entre público e privado, direita, esquerda, nada disso tem sentido. Uma espécie de psicopatia social. Esse mundo é um produto da ausência das Instituições. É o nada, o vazio que acaba produzindo o caos. Há uma “máquina biopolítica” (Agambem) que produz esse “novo”homo sacer. Ela produz suco. Suco humano.
As cadeias são máquinas biopolíticas. São campi criados pelo Estado. E, para fazer isso, o Estado suspendeu a lei. Sim: precisamos admitir que o tipo de prisão que temos é decorrente de um “Estado de Exceção”, entendido esse quando há uma suspensão da lei (não é necessário dizer quantas leis – e em especial a LEP — que foram suspensas).[1] Ou seja, quem possui o monopólio da coerção legítima o exerce sem respeitar aquilo que lhe é condição de possibilidade: A própria Lei.
Pois é. Masmorras medievais produzem coisas... De lá sai a “vida nua”, de que fala Agambem. Lá dentro estão os “matáveis”. Estão aqueles que estão à disposição... de um estado de exceção permanente. Mas, fora da masmorra, há outra máquina de produção, que retroalimenta esse “sistema”. São as periferias produtoras da violência. A perfeita imbricação da ausência do Estado e da falta de interdição da lei produz uma nova presença: aquele que se apresenta como o “preenchedor do vácuo”.
Veja-se: O teórico Agambem nunca pensou que o homo sacer fosse se voltar contra os construtores da “máquina biopolítica”. O resultado: uma espécie de neoterrorismo. Que não é político, que não é reivindicativo, a não ser um tipo de poder sobre a aliança “favela-prisão”. Nesse contexto, não há lei. Há um continuum de pequenos soberanos, que suspendem a lei a todo momento. É o troco que é dado para quem produziu tanta vida nua. Um “bando soberano”: é esse o conceito dos que colocam em pânico (e em constante risco físico) a população de São Paulo.
Como combater esse “bando soberano”? Por certo não será com a repristinação da velha Lei de Segurança Nacional, que sequer foi recepcionada pela Constituição de 1988. Suspender a lei (garantias), ou seja, fazer um combate como se fosse uma guerra, a partir de um “oficial-estado-de-exceção”?[2] Penso que não. O Estado não pode ser tornar também uma coisa fora da lei. Seria um retrocesso. E seria o reconhecimento de que ali do outro lado está alguém que é simplesmente um inimigo, quando, na verdade, ele é mais do que isso. Nessa vida nua, “suspende-se” a tese de “amigo-inimigo”, enfim, essas dicotomias que forja(ra)m a modernidade.
Para mim, há direito suficiente; o que há de pouco é “Estado”. Sim, há pouco Estado. Estado que não faz políticas públicas, não constrói presídios, deixa os que aí estão em petição de miséria e não fornece segurança pública aos utentes. O ovo da serpente pode ter estado lá atrás, quando o governo de São Paulo fez um acordo com o PCC, que, a meu pensar, naquele momento ainda não era o “bando soberano” aqui tratado. Ele foi se construindo nesse tempo todo. Ao lado ou virado de costas, o Estado se “acadelou”.
Nada desculpa o Estado. E nada desculpa a ação desses homo sacers. Deixemos isso bem claro. Onde começa o esgarçamento do Estado e do poder de interdição da lei? Esse é o busílis da questão. Houve o esgarçamento da interdição. Como no livro O Senhor das Moscas (prêmio Nobel para William Golding), em que meninos da aristocracia inglesa são levados, no período da Guerra Fria, para uma ilha deserta, para salvá-los de um conflito nuclear e ali pudessem começar uma nova sociedade. No caminho, caiu o avião. Morreu o piloto; morreu o instrutor. Cada um por si... nenhum por todos. Sem Deus, sem Estado, sem nada... Em uma semana, organizam-se em pequenos bandos e se matam. Somente com a volta do “Estado” — da lei — é que aqueles meninos em estado de natureza voltam à civilização, abandonando a barbárie.
Pois é isso. Entre civilização e barbárie, não interditamos. Daí a pergunta que costumo fazer, a partir do psicanalista Alfredo Jeruzalinski: como combater o gozo da sociedade sem ser tirânico? Na verdade, eis aí o problema: o Estado não combateu o “gozo” (no sentido psicanalítico) nesse contexto paulista na hora certa. Mais que um estado-de-natureza, o Estado deixou que surgissem personagens (penso que são vários; não há apenas um chefe) que se aproveitam da vida nua, do homo sacer. Usam os “matáveis” para matar outros — estes considerados “não-matáveis” (ainda).
Como dizia Nelson Rodrigues, com seu sarcasmo mortal, a ineficiência, a corrupção etc., não vieram do nada. São produtos de “muito trabalho” e “muita dedicação”. Quando o Estado, lá atrás, abriu mão de construir presídios porque não era um bom “investimento”, usou como escudo uma velha máxima falaciosa do tipo “quem constrói um presídio fecha uma escola” (ou algo chato similar). Além disso, fomos invadidos/tomados por uma espécie de “culpa por punir”. Consequentemente, quase saímos por aí pichando as ruas com jargões do estilo “é proibido proibir”. “Fora com o Direito Penal”.
Crime hediondo, então, é uma palavra maldita (isso dá boas repercussões em palestras... todo mundo vira garantista e crítico). Muitos chegam a esquecer que a palavra "hediondo" está na Constituição, como garantidora de direitos fundamentais (art. 5º, XLIII), que, aliás, possui mandamentos de criminalização, também ao contrário que muita gente boa por aí diz. Aliás, de há muito devíamos ter adaptado a legislação penal à Constituição, por exemplo, com uma nova teoria do bem jurídico... Ou alguém acha que isso que está acontecendo não tem nenhuma relação com absurdos do tipo “furto qualificado tem pena equivalente à lavagem de dinheiro”?
Mesmo assim, como as prisões foram enchendo, começamos a fazer paliativos, como afrouxar o cumprimento das penas (um sexto etc. — um homicídio simples vale um ano de prisão...). O trabalho externo dos apenados nunca foi vigiado. Chegamos a conceder indulto para crime hediondo. Se pena não regenera — e alguém poderia acreditar nessa balela?! — ela é castigo (necessário) e serve para prevenção geral. É retribuição. Isso é velho. Nenhum país do mundo abriu mão da pena de prisão. E, registre-se, pena de prisão não é só para crime violento.
Mas nós inovamos. Queremos ser libertários com a liberdade alheia. Com a insegurança da patuleia. Quando promulgamos a Lei dos Juizados Criminais, todas as pequenas infrações passaram a ter penas alternativas (cesta básica). Na sequência, veio uma nova Lei, na carona (Lei 10.259), pela qual todos os delitos cujas penas máximas não passassem de dois anos, passariam ao patamar de “menor potencial ofensivo”. Com isso, mais de 60 modos diferentes de delinquir passaram a ser punidos com a mesma pena: o pagamento de cesta básica. E todos (ou maioria) disseram: agora vai! Será?
Será que não havia um componente simbólico-psicanalítico nesse afrouxamento? Abuso de autoridade, desacato, desobediência (vejam a sutiliza desses crimes) passaram a ser tratados como “menor potencial ofensivo”. E invasão de domicilio com armas? Hein?! Não há aspecto simbólico nisso? Fraude às licitações? Pode? Esses crimes são, mesmo, de menor potencial ofensivo?
Ora, a sociedade é uma rede simbólica. Como dizia Castoriadis, o gesto do carrasco, real por excelência, é simbólico na sua essência. E o que mais importa no gesto do carrasco é o aspecto simbólico. Enfim: o que importa é o que os outros pensam sobre esse gesto... Qual é a simbologia? Vejamos: onde fica a autoestima da sociedade? 90% dos crimes não são investigados; 90% das denúncias é fruto de auto de prisão em flagrante... E alguém tem dúvida de que a impunidade lato sensu influencia no imaginário da violência? O simbólico e o simbolismo, nesse contexto, é “fatal”!
Pois bem. O case São Paulo é o resultado de uma construção simbólica das diversas teias de poder que surgiram em face de ausência que redundaram em (novas) presenças. Quem constrói vida nua recebe o troco. Dele mesmo, desse homo sacer. Que de “matável” se transforma em “matador”... a serviço dele mesmo.
O Estado deve retomar o seu papel de interditor. Repito: Direito há; o que falta é Estado. Pensem bem: um Estado que admite que o crime de abuso de autoridade merece ser punido com cesta básica é porque não conhece o sentido da interdição fundante da modernidade.
Mas o Estado não necessita fazer um “Estado de exceção” para alcançar seu desiderato. Ele não precisa se igualar. Precisa tomar medidas profiláticas e, depois, preventivas. Voltar a ser “Estado”. Estatuir. Definir onde está o limite entre civilização e barbárie. Assim começou a modernidade! Necessita apenas usar os mecanismos institucionais que estão à disposição. Sem abrir mão das garantias — como em qualquer democracia avançada — enfrentar o “bando soberano” que atormenta a sociedade. Antes que esse “bando” crie filhotes, em outros Estados.
Se o Estado não voltar a “interditar” (no duplo sentido de que falo), teremos que tomar cuidado com a formação de milícias. Este é o caminho para a barbárie. Um enfrentamento ad hoc. Fora das redes oficiais. Aí, sim, veremos a guerra.
O interessante paradoxo se forma: parcela da sociedade e da comunidade jurídica que sempre olhou o Direito Penal de soslaio agora quer usar “leis de exceção” para combater o estado-de-coisas paulista. Eu, não. Sou contra a exceção. Sou contra qualquer suspensão da lei. Antevendo esse problema no Rio Grande do Sul, em 29 de maio de 2009, em face do caos presidiário (que agora se gravou), representei ao procurador-geral da República pela Intervenção no estado do Rio Grande do Sul — leia aqui). Nunca houve resposta a tal Representação. Notícia de final de semana (dia 11.11.2012): a Defensoria Pública pretende entrar com ação civil pública para liberar 500 presos da massa carcerária em uma só tacada, para que cumpram as penas em suas casas. Já há claramente avida nua no Rio Grande do Sul.
Numa palavra: E depois de acabar com o “bando soberano”... o que fará o Estado? Parece que há uma coisa presente (ou ausente) desse debate: o direito fundamental à segurança pública. Que está na Constituição. Poderíamos falar até de descumprimento de preceito fundamental, pois não? Quem aciona a Justiça? Afinal, um país que aposta no ativismo judicial... (não posso deixar de ser irônico nisso).
Não somos pós-modernos. Estamos na alta-modernidade, como diria Giddens. As promessas descumpridas da modernidade devem ser resgatadas. Urgentemente. E uma delas é a segurança (penso, aqui, no Triângulo Dialético propalado por JJ Gomes Canotilho, onde um dos vértices é a segurança). Sem discursos do tipo “o crime é produto social”; ou “a culpa é da estrutura”; “o homem nasce bom, a sociedade o corrompe” (argh!); e sem a chatice do “é proibido proibir”, de certos setores que parecem estar no século XIX, como se houvesse a dicotomia “Estado mau-cidadão bom). Pois é. Com esse tipo de procedimento, de grão em grão, não somente não fornecemos segurança como também “fabricamos” a vida nua. E temos aí o nosso homo sacer. A opção pela civilização deve ser o modo de combatê-lo. Ele também é produto. Mas um produto com o qual ninguém contava. Quando prendermos ele(s), vamos ver se não reproduzimos os mesmos erros.
O que fazer, concretamente? Primeiro, tudo dentro da lei. Rigorosamente na forma da lei. Sem qualquer suspensão. Sem qualquer estado de exceção (oficial ou oficioso). A Constituição, no seu artigo 34, III, apresenta à comunidade jurídica-social a possibilidade de Intervenção Federal para por termo à grave comprometimento da ordem pública (se isso não ocorrendo, estão está “tudo bem”, certo?). Sim: Intervenção. Princípios sensíveis violados. Direitos-da-pessoa-humana-violados. Dos dois lados: Dos que estão presos nos campi da vida nua e daqueles que estão fora dos campi, sendo mortos pelos homo sacers produzidos pela inércia do Estado. Além disso, construir presídios. Dignos. Acabar com as milícias. E exercer o controle externo da atividade policial, para impedir que, por uma “vontade de miliciamento”, essa “guerra” seja retroalimentada.
Finalmente, trabalhar para que não haja mais campi de construção de vida nua. Isso para o futuro. Para o presente, o Estado deve “estatuir”. E não se “acadelar”. Encerro com uma citação do jurista-sociólogo Luciano de Oliveira (Segurança: Um direito humano para ser levado a sério, in Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito n.º 11. Recife, 2000., p. 244/245), a partir de sua tese de doutoramento defendida na Sorbonne, para quem as vezes esquecemos da relevante circunstância de que a segurança é, ela também, direito humano:
“Está lá, já no artigo 2º da primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: os direitos ‘naturais e imprescritíveis do homem’ são ‘a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão’ — grifei. Declaração tipicamente burguesa, dir-se-ia. Mas é bom não esquecer (ou lembrar) que em 1793, no momento em que a Revolução empreende uma guinada num sentido social ausente na primeira — uma guinada a esquerda, na linguagem de hoje —, uma nova Declaração aparece estabelecendo, em idêntico artigo 2º, praticamente os mesmos direitos: ‘a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade’ (in Fauré, 1988: 373) — grifei. Mais adiante, o artigo 8º definia: ‘A segurança consiste na proteção acordada pela sociedade a cada um de seus membros para a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades (idem p. 374)”.
E acrescenta o jurista pernambucano:
“Cento e cinquenta anos depois a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU — na qual figuram, ao lado dos direitos civis da tradição liberal clássica, vários direitos sócio-econômicos do movimento socialista moderno — repetia no seu artigo 3º: ‘Todo indivíduo temo o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” . E, no entanto, esse é um direito meio esquecido. No mínimo, pouco citado. Ou, então, citado em contextos onde o titular dessa segurança pessoal aparece sempre como oponente de regimes ditatoriais atingido nesse direito pelos esbirros de tais regimes. Dou um exemplo significativo: numa publicação patrocinada pela UNESCO em 1981, traduzida entre nós pela Brasiliense em 1985, seu autor, ao comentar esse direito dá como exemplo o caso de Steve Biko, ativista político negro torturado e morto pela polícia racista da África do Sul em 1977. E comenta: ‘O caso Steve Biko é apenas um exemplo bem documentado de uma situação em que o Estado deixou de cumprir sua obrigação de assegurar e proteger a vida de um indivíduo e em que violou este direito fundamental que, infelizmente, tem sido violado pelos governos em muitas partes do mundo’ (Levin, 1985: 55 e 56).
Numa palavraOu seja: por razões que são, reconhecemos, compreensíveis, a segurança pessoal como direito humano, quando aparece na literatura produzida pelos militantes, é sempre segurança pessoal de presos políticos, ou mesmo de presos comuns, violados na sua integridade física e moral pela ação de agentes estatais. Ora, com isso produz-se um curioso esquecimento: o-de-que-o-cidadão-comum-tem-também-direito-à-segurança, violada com crescente e preocupante frequência pelos criminosos.(grifei e hifenizei!)
[1] Quando não cumprimos uma lei que não é considerada inconstitucional, estamos praticando “estado de exceção”. Daí que determinadas posturas ativistas se caracterizam como “estado de exceção”.
[2] Como se um estado de exceção pudesse ser chamado de "oficial". Mas, prossigamos.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Violência Entrevista
Entrevista: Camila Caldeira Nunes Dias
Por Luís Antônio Francisco de Souza
Camila Caldeira Nunes Dias é Doutora em Sociologia pela USP, Professora Adjunta da UFABC, Pesquisadora-associada ao NEV-USP, colaboradora do OSP, associada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e membro do Conselho da Comunidade da Comarca de São Paulo-SP.
OSP. Há uma guerra entre as duas forças no Estado? Penso que há uma guerra entre o PCC e a Polícia Militar que teve início em meados deste ano (junho/julho) e que persiste até esse momento (novembro).
OSP. Como o crime exerce o controle junto às comunidades? Para usar um termo menos abstrato prefiro dizer que alguns grupos detêm um controle econômico sobre o comércio ilícito em bairros periféricos, sobretudo sobre o tráfico de drogas e, em decorrência disso, exercem um controle político, ligado à regulação dos conflitos, principalmente dos conflitos vinculados com a economia criminal.
OSP. Como o crime se organiza a partir de dentro dos presídios? As prisões se constituem, hoje, em lócus de organização e de articulação da criminalidade. O processo de encarceramento massivo, a superlotação, as condições precárias das instituições, da falta de direitos básicos e de condições minimamente dignas de cumprimento da pena, favorecem as formas de articulação entre os presos e de aprofundamento de seu envolvimento na economia criminal mais organizada, através da sua inserção em redes comerciais mais amplas e complexas.
OSP. A base econômica do crime é majoritariamente a droga?
Há grupos criminais ligados a todo tipo de delito. Penso que o comércio de drogas ilícitas é a atividade mais constante e regular de boa parte desses grupos e isso porque se trata de uma atividade de menor risco em comparação com outras, como o roubo e o sequestro, por exemplo. Não é possível manter a atividade de roubo ou sequestro de forma regular e constante. São atividades episódicas, cujos resultados financeiros são incertos e irregulares. A economia ligada às drogas, ao contrário, justamente por ser uma atividade comercial, pode ser mantida com poucas interrupções. Enfim, embora as formas de organização e as dinâmicas criminais variem muito de um caso a outro, é muito comum que os grupos ligados ao comércio de drogas ilícitas estejam, ainda, envolvidos em outras atividades criminais (e não criminais) de forma inconstante e irregular.
OSP. A disseminação do sistema prisional no Estado de SP facilitou o esquema montado pelo crime? A expansão da rede de instituições prisionais pelo interior do Estado pode ter favorecido a expansão, a ramificação e, portanto, a pulverização de alguns grupos, sobretudo o PCC. Mas, esse problema só pode ser compreendido se considerarmos não apenas a expansão do sistema prisional em si, mas, sobretudo, o processo de encarceramento massivo que, em São Paulo, assumiu maiores proporções a partir da década de 1990. Este último fez com que a expansão do sistema prisional não se revertesse em qualquer melhora de qualidade das condições da pena de prisão. Ocorreu exatamente o oposto disso.
OSP. As mortes de PMs, em sua maioria, incide sobre policiais em folga. O que isto pode significar? Significa uma nova estratégia de enfrentamento, diferente da que ocorreu durante a crise de maio de 2006. Desta vez, os enfrentamentos estão ocorrendo de forma menos intensa, de forma mais fragmentada e assumindo uma duração muito maior. Podemos afirmar que a “crise” atual teve início ainda em julho, persistindo ainda, em novembro. Policiais de folga se encontram em situação de maior vulnerabilidade e, por isso, acabam sendo alvos mais fáceis.
OSP. Fala-se pouco sobre as mortes e chacinas que aumentaram nos últimos 4 ou 5 meses. O que estas mortes representam? O que eles representam, de concreto, é que assistirmos a uma desestabilização em São Paulo, originada, na minha opinião, pela violência policial. O que essas chacinas sugerem, mas que não se tem certeza (ou provas) é que grupos de extermínio podem ter se fortalecido dentro das polícias – ou que eles voltaram a atuar com mais intensidade. A hipótese sustentada pelo governo de que essas mortes são o resultado de brigas de gangues, eu acho improvável dada as suas características e pela ausência de evidências de que há grupos que se opõem ao PCC. Há as denúncias mais recentes da emergência de milícias em São Paulo. Não sei dizer se têm consistência. Sobretudo, o que é mais grave e chocante disso tudo é que não vemos qualquer sinalização do governo de que há interesse ou empenho em investigar essas mortes. Tudo se passa como se apenas policiais estejam sendo executados. Nada, nem uma palavra sobre os jovens moradores da periferia paulistana que estão sendo executados noite após noite. Nem uma palavra do governo federal pressionando para o esclarecimento dessas mortes e dessas denúncias. Nenhuma palavra do Ministério Público Estadual. Aliás, por onde anda o MP diante deste cenário de crise? A única manifestação que vi foi essa representação pedindo a transferência de líderes do PCC para presídios federais. Nada sobre as execuções de civis, as chacinas, os toques de recolher, as suspeitas de milícias ou grupos de extermínio. Nada.
OSP. Como está a situação das mulheres encarceradas em face do controle do PCC nos presídios? A situação das mulheres encarceradas é tão dramática quanto a dos homens, em termos das condições (ou falta de) para o cumprimento da pena. Celas abarrotadas, falta de atendimento médico, social e jurídico, ausência de materiais básicos de higiene pessoal, falta de estrutura física adequada – agravada, ainda, pelo fato de que as prisões não são adaptadas às necessidades das mulheres. No que se refere ao controle do PCC, a dinâmica também é a mesma dos presídios masculinos: todas tem que “correr junto”. Caso não queiram, deve pedir transferência ou ‘seguro’. A diferença é que as mulheres integrantes do PCC são, em sua absoluta maioria, de escalões mais baixos da hierarquia da organização, não ocupam posições importantes e nem possuem autonomia decisória para questões importantes.
OSP. Qual é a saída a partir da perspectiva da pesquisa acadêmica? Não há receita. Contudo, é possível ver claramente o que não deu e não dará certo. Enquanto o modelo de segurança pública for pensado somente a partir de aspectos repressivos, a partir do binômio polícia militar/sistema prisional, nós vamos continuar escorregando, sem sair do lugar. Enquanto não se fizer as reformas estruturais das polícias e não houver um combate efetivo à corrupção, à violência arbitrária, a tortura, aos abusos de toda sorte, não avançamos. Enquanto o judiciário e o Ministério Público não se engajarem para pensar alternativas à pena de prisão, enquanto não fiscalizarem de fato a execução penal e permanecerem omissos com relação à violência policial e as arbitrariedades ocorridas nas delegacias e prisões do Estado (e do Brasil inteiro) seus discursos serão o que eles são hoje, apenas discursos. Enquanto as instituições do sistema de justiça criminal, enfim, não forem inseridas no processo de democratização, ou seja, funcionarem de forma transparente, com necessidade de dar respostas claras para a população e forem alvo de controles externos eficientes sobre as suas práticas, também não avançamos. Não adianta fazer o mais fácil e o mais popular politicamente. Ficaremos estagnados ou retroagiremos enquanto parcela expressiva da população tiver negada a garantia de seus direitos fundamentais. Sim, os direitos, esse bem escasso no Brasil, privilégio de alguns grupos sociais.
A mídia contra a democracia
Artigo
24/10/2012 - 10h57
24/10/2012 - 10h57
A mídia contra a democracia
por Francisco Fonseca*
No caso brasileiro, um verdadeiro “consenso forjado” foi paulatinamente se formando entre os órgãos da mídia desde a chamada “Nova República” (1985), influenciando decisivamente a reversão do modelo econômico brasileiro instalado – embora com transformações – desde os anos 1930.
Os ventos neoliberais e conservadores e o papel da mídia
Refletir sobre o conjunto dos meios de comunicação – a “mídia” – implica mobilizar teorias, conceitos e a história com vistas a caracterizá-los e a compreender seu papel na sociedade capitalista, particularmente no Brasil.
Observando os fenômenos que se desenvolvem desde a década de 1980, percebe-se uma notável guinada conservadora (em termos econômicos, políticos, sociais e ideológicos) em diferentes sociedades, que assim se expressam: desmonte, embora parcial em razão das resistências sociais, do Estado de bem-estar social; revalorização ideológica da “meritocracia”, sintetizada pela ideia mítica do self made man, desconsiderando-se as estruturas sociais; efetivação de um conjunto de “reformas orientadas para o mercado”, sintetizadas pela ideologia neoliberal, tais como a reformagerencialdo Estado (no que tange a seu núcleo ideológico privado) e os amplos processos de abertura dos mercados nacionais, de privatização e de desnacionalização; ênfase em políticas sociais terceirizadas(à iniciativa privada) e focalizadasem oposição à universalização de direitos; desconfiança quanto à participação popular na tomada de decisões públicas; aproximação da política aos valores religiosos (em alguns casos, em acordo com as tradições da “democracia cristã”), com implicações no papel da família na constituição de políticas públicas; papel crucial, vinculado aos interesses do G7, desempenhado pelas chamadas “agências multilaterais”, tais como o FMI, o BID e o Bird na aplicação concreta dessas políticas nos “países periféricos”;1 fusão e concentração de empresas dos mais distintos setores, o que inclui a própria mídia, criando-se poderosos oligopólios empresariais; extrema liberalização dos mercados financeiros, cujas consequências são sentidas até hoje; entre diversos outros aspectos. Esses são elementos gerais da agenda neoliberal/conservadora que, contudo, foi adotada de formas distintas em cada sociedade específica.
Nenhuma dessas mudanças pode ser compreendida sem o atuante papel da mídia nas mais diversas sociedades. No caso brasileiro, foco deste artigo, um verdadeiro “consenso forjado” foi paulatinamente se formando entre os órgãos da mídia desde a chamada “Nova República” (1985), influenciando decisivamente a reversão do modelo econômico brasileiro instalado – embora com transformações – desde os anos 1930.2
A “era neoliberal e conservadora”, como foram considerados os acontecimentos entre a década de 1980 até o crash de 2008, sem que, mesmo nos dias atuais, tenha sido inteiramente superada, teve e tem nos órgãos da mídia o papel primordial como “aparelho privado de hegemonia”: conceito criado por Antonio Gramsci que sintetiza a atuação desses órgãos como agentes político-ideológicos voltados à organização dos interesses de determinadas classes e segmentos sociais, assim como à formação e vetos das agendas dos governos.
Deve-se notar que, além da referida atuação como aparelho de hegemonia, estruturalmente a mídia privada opera numa zona cinzenta entre os interesses privatistas (dela própria como empresa capitalista que objetiva o lucro) e privados (de grupos sociais e econômicos representados pelos meios de comunicação) e a esfera pública.3 A defesa de interesses privados – notadamente o das classes médias e do capital – no âmbito da esfera pública, lócus em que diversos interesses se contrapõem e onde a ideologia do “bem comum” e do “interesse geral” procuram se colocar ideologicamente acima dos diversos interesses específicos, marca a atuação da mídia. Em outras palavras, são agentes privados que procuram representar o “todo”, o “público”, ocultando seus verdadeiros interesses. Logo, transitam num ambiente nebuloso, porque, além do mais, procuram se legitimar de modo permanente em nome da ideologia da “opinião pública”, conceito fugidio, maleável e marcado fundamentalmente pela opinião de determinados grupos capazes de expressar opiniões específicas, por meio da própria mídia, adquirindo dessa forma o status de “verdade”, pois potencialmente capaz de se tornar dominante. Essa imanente confusão entre as esferas privada e pública define a atuação da mídia, sobretudo no Brasil.
Emergência histórica de direitos versus o modus operandi da mídia no Brasil
Historicamente, a mídia privada nasce e se desenvolve como decorrência da sociedade capitalista, representando os novos segmentos dominantes. Contudo, desde a Revolução Francesa a preocupação com o direito à informação – num contexto do reconhecimento de direitos em sociedades desiguais – constitui fator crucial ao próprio conceito do “Estado de direito democrático”. No artigo 11º da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” da Revolução Francesa, assim é tratado o tema da comunicação: “A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, embora deva responder pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei”. Já no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, em seu artigo 19º, assim define o direito à comunicação: “Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.4 Embora ambas expressem momentos históricos específicos e novas correlações de força (predominância do capitalismo e da filosofia política liberal), as declarações representam ainda hoje marcos no pensamento político, jurídico e filosófico ocidental e são tomadas como balizas para a democratização das sociedades no que tange ao direito à expressão de ideias, à informação e à comunicação. Em outras palavras, exprimem a lógica da “democracia liberal” em termos políticos.
Essa tradição “liberal-democrática” tem sido, no Brasil, reiteradamente contrastada, uma vez que o sistema midiático organizado pela ditadura militar instaurada em 1964 não foi essencialmente transformado. Cerca de onze famílias controlam, mesmo depois da redemocratização, um número incrivelmente grande de meios e modalidades (legais e “cruzadas”) de comunicação, acarretando um conjunto de poderes que se opõe aos pressupostos teórico-filosóficos tanto da democracia quanto do próprio “liberalismo democrático”.
Vejamos algumas dessas consequências concretas no Brasil: a) o sistema de concessão e renovação das concessões de rádios e TVs é controlado politicamente pelo Congresso Nacional, e parcelas dos parlamentares são também proprietárias desses meios, processo que implica simultaneamente brutal intransparência decisória, promiscuidade política entre detentores de meios de comunicação e do poder político e descumprimento de normas constitucionais que regulam a comunicação;5 b) majoritariamente, a mídia brasileira é privada e comercial, isto é, há ainda poucos meios estatais, e os comunitários foram apropriados fartamente por igrejas que se confundem com empreendimentos empresariais, impondo às diversas faces do país (estético-cultural, racial, regional e política etc.) a não representação de seus universos simbólicos na mídia. Quem se informa apenas pelos grandes veículos de comunicação privados (jornais, revistas, rádios, TVs e mesmo os grandes portais da internet vinculados a esses meios) tem visão parcial e relativamente homogênea do país, em contraste à sua enorme diversidade; e c) a seletividade de suas coberturas, isto é, por razões políticas conjunturais (o que inclui apoios e vetos partidários e eleitorais), ideológicas ou relacionadas a interesses que defendem, questões e problemas ou não retratados ou retratados com ênfases completamente distintas. Exemplos marcantes referem-se à omissão das coberturas das mazelas do processo de privatização durante os governos Collor e FHC, assim como dos escândalos “não investigados” pela mídia em relação a este último: casos da “emenda da reeleição”, do “Banestado”, entre tantos outros, em contraste à sanha investigativa nos governos Lula. No caso deste, o chamado escândalo do “mensalão” é retratado como inédito na vida política brasileira (forma e conteúdo) e, mais ainda, como o “mais sórdido” já produzido “por um partido político”. É curioso como toda a lógica privatizante, no sentido de predominância de interesses privados, do sistema político brasileiro (casos do financiamento privado, notadamente extralegal de campanhas, do multipartidarismo extremamente flexível que leva à necessidade de coligações para vencer e governar, com toda sorte de barganhas, e da facilidade em criar e fundir partidos, entre outros aspectos) é desconsiderada em nome da acusação de um agrupamento político. A seletividade é, portanto, política, ideológica e editorial, e marca decisivamente o modus operandi da mídia brasileira desde os anos 1940. Deve-se observar, dessa forma, o contraste entre a cantilena – professada pelos meios de comunicação, pelos “liberais” e pelos crentes da “sociedade civil” liberal – de que a mídia pratica um “jornalismo investigativo”, por sua vez crucial e pressuposto à democracia.6 Embora na democracia deva haver liberdade de fiscalizar e mesmo de investigar algo ou alguém por qualquer pessoa ou instituição, sua legalidade e legitimidade estão sujeitas essencialmente à contestação, à revisão e à aceitação ou não do poder público como “provas válidas”. Por isso, aceitar a mídia como agente de investigação, sem mediações conceituais e proteção aos envolvidos, como o direito de resposta, por exemplo, implica conceber um poder paralelo ao Estado, portanto contrário ao caráter monopolista deste; poder esse que, reitere-se, é constituído por e dirigido a interesses privados e voltados à conservação do statu quo. Apesar dessas características, a ideologia da “neutralidade”, da “independência”, do “apartidarismo” (lato e estrito) e da busca pelo “bem comum” faz parte da retórica “pública” desses agentes político-ideológicos privados, que erigem estratégias retóricas como “opinião pública”, “liberdade de expressão”, “defesa da sociedade”, “sentimento nacional”, entre tantos outros, para se legitimar.
A democratização do sistema midiático como pressuposto à democracia no Brasil7
O conjunto dos aspectos analisados neste artigo leva à conclusão de que não haverá democracia sem a reforma democratizante do sistema midiático, desconcentrando-se sua propriedade, revendo-se o processo de concessão e renovação, permitindo-se, por meios político-institucionais, que vozes distintas e plurais tenham acesso à comunicação e à informação, entre inúmeras outras bandeiras levantadas, por exemplo, pelos movimentos sociais em prol da democratização da comunicação, tais como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC – www.fndc.org.br).8
Deve-se ressaltar que a democracia é concebida como um sistema político garantidor de direitos individuais e coletivos amplos e diversos, entre os quais os vinculados à manifestação de interesses e de opiniões, o que implica a possibilidade de pessoas e grupos se comunicarem e se informarem por meios distintos, garantindo a pluralidade de pontos de vista de uma dada sociedade.
O conservadorismo político (pressão pela diminuição dos direitos sociais e da participação popular nas decisões públicas), econômico-financeiro (a adesão maciça à agenda neoliberal “orientada para o mercado”), simbólico-comportamental (ênfase na meritocracia individualem detrimento de direitos coletivos), entre outras formas de manifestação da agenda conservadora mundial e brasileira, teve e tem na mídiaum ator político-ideológico que vem atuando de forma uníssona em favor do retrocesso político e social.
O sistema midiático brasileiro, constituído por órgãos privados, comerciais, partidários(em sentido lato e/ou estrito), sem freios e contrapesos, elitizadose oligopolizados, tem contribuído fortemente para o retardo da democracia brasileira, que, quando comparada a outras sociedades, tem muito a se desenvolver.9 A experiência histórica permite afirmar que tais órgãos atuam conservadoramente contra a democracia!
* Francisco Fonseca é mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP e autor de diversos artigos e livros, entre os quais O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Liberalismo autoritário – Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira (2011), ambos pela Editora Hucitec.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.
Nota:
1 O caso da privatização da água – inclusive da chuva – na Bolívia, por pressão dos bancos multilaterais, o que gerou a famosa “revolta das águas de Cochabamba”, é sintomático. Ver www.youtube.com/watch?v=aTKn17uZRAE.
2 Analisei a construção desse “consenso” e o intitulei como “forjado”, uma vez que se tornou hegemônico, no livro O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil, Hucitec, São Paulo, 2005.
3 Esfera pública é uma terminologia polissêmica e controvertida, tendo em vista os pressupostos adotados por matrizes teóricas distintas. O marxismo nega esse conceito.
4 O artigo 19 dessa declaração inspirou a criação da ONG Article 19: http://www.article19.org/, também presente no Brasil: artigo19.org.
5 Particularmente o descumprimento e/ou não regulamentação dos artigos 220 (proibição de monopólios), 221 (exigências para programação) e 223 (complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal) da Constituição Federal. Esse quadro levou recentemente à constituição de blogs e fóruns digitais alternativos que se contrapõem aos órgãos da grande mídia, que é chamada, criativa e sintomaticamente por esses blogs, de “PIG”: Partido da Imprensa Golpista. Já na Argentina foi aprovada há pouco tempo a importante Ley de Medios, que democratiza o sistema midiático: www.argentina.ar/_es/pais/nueva-ley-de-medios/C2396-nueva-ley-de-medios-punto-por-punto.php.
6 Deve-se ressaltar, além do mais, que o papel de investigar é prerrogativa do Estado, cujas funções são conferidas pela Constituição à luz do conceito maior do Estado de direito democrático, por meio de instituições oficiais e impessoais, tais como, no plano federal, o Ministério Público (no âmbito criminal e de direitos difusos), a Corregedoria Geral da União (quanto à fiscalização de verbas e contratos federais), a Polícia Federal (no tocante a crimes federais, de naturezas diversas) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), relacionado à fiscalização de movimentações financeiras. A lógica do Estado democrático, baseada nos controles internos e externos, que constam do direito constitucional e administrativo, e, mais modernamente, no chamado “controle social” (da sociedade politicamente organizada perante o Estado e mesmo perante entidades privadas, como a mídia), são os instrumentos de investigação e fiscalização nos quais cada sociedade deve se fiar.
7 O mundo digital (possibilidades abertas pela internet e pelas redes sociais) não é, até o momento, significativamente distinto dos meios tradicionais aqui analisados, pois, sobretudo no Brasil, os portais são dominados pelas mesmas empresas de comunicação tradicionais; o acesso ao mundo digital é reduzido, comparativamente à população, e localizado nas classes médias; além de a utilização, pela maior parte dos usuários, concentrar-se em fins interpessoais e de entretenimento.
8 Ver também outros movimentos que lutam pela democratização da mídia: http://www.comunicacaodemocratica.org.br/, http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/, http://www.direitoacomunicacao.org.br/, http://www.intervozes.org.br/, http://www.cartamaior.com.br/ e http://www.tver.org.br/. A agenda da comunicação democrática é ampla e inclui acesso digital (equipamentos, combate ao analfabetismo digital, gratuidade da banda larga etc.), entre inúmeras outras bandeiras: todas fundamentais, sobretudo aos mais pobres e excluídos na sociedade brasileira.
9 Elaborei reflexões teóricas e empíricas acerca de uma agenda de reforma da mídia no Brasil, comparativamente a outros países: “Mídia e poder: interesses privados na esfera pública e alternativas para sua democratização”. In: Fábio de Sá e Silva et al. (orgs.), Estado, instituições e democracia: democracia, Brasília, Ipea, 2010, Livro 9, v.2. Disponível em: www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/2010/Livro_estadoinstituicoes_vol2.pdf.
(Le Monde Diplomatique Brasil) 2 Analisei a construção desse “consenso” e o intitulei como “forjado”, uma vez que se tornou hegemônico, no livro O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil, Hucitec, São Paulo, 2005.
3 Esfera pública é uma terminologia polissêmica e controvertida, tendo em vista os pressupostos adotados por matrizes teóricas distintas. O marxismo nega esse conceito.
4 O artigo 19 dessa declaração inspirou a criação da ONG Article 19: http://www.article19.org/, também presente no Brasil: artigo19.org.
5 Particularmente o descumprimento e/ou não regulamentação dos artigos 220 (proibição de monopólios), 221 (exigências para programação) e 223 (complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal) da Constituição Federal. Esse quadro levou recentemente à constituição de blogs e fóruns digitais alternativos que se contrapõem aos órgãos da grande mídia, que é chamada, criativa e sintomaticamente por esses blogs, de “PIG”: Partido da Imprensa Golpista. Já na Argentina foi aprovada há pouco tempo a importante Ley de Medios, que democratiza o sistema midiático: www.argentina.ar/_es/pais/nueva-ley-de-medios/C2396-nueva-ley-de-medios-punto-por-punto.php.
6 Deve-se ressaltar, além do mais, que o papel de investigar é prerrogativa do Estado, cujas funções são conferidas pela Constituição à luz do conceito maior do Estado de direito democrático, por meio de instituições oficiais e impessoais, tais como, no plano federal, o Ministério Público (no âmbito criminal e de direitos difusos), a Corregedoria Geral da União (quanto à fiscalização de verbas e contratos federais), a Polícia Federal (no tocante a crimes federais, de naturezas diversas) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), relacionado à fiscalização de movimentações financeiras. A lógica do Estado democrático, baseada nos controles internos e externos, que constam do direito constitucional e administrativo, e, mais modernamente, no chamado “controle social” (da sociedade politicamente organizada perante o Estado e mesmo perante entidades privadas, como a mídia), são os instrumentos de investigação e fiscalização nos quais cada sociedade deve se fiar.
7 O mundo digital (possibilidades abertas pela internet e pelas redes sociais) não é, até o momento, significativamente distinto dos meios tradicionais aqui analisados, pois, sobretudo no Brasil, os portais são dominados pelas mesmas empresas de comunicação tradicionais; o acesso ao mundo digital é reduzido, comparativamente à população, e localizado nas classes médias; além de a utilização, pela maior parte dos usuários, concentrar-se em fins interpessoais e de entretenimento.
8 Ver também outros movimentos que lutam pela democratização da mídia: http://www.comunicacaodemocratica.org.br/, http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/, http://www.direitoacomunicacao.org.br/, http://www.intervozes.org.br/, http://www.cartamaior.com.br/ e http://www.tver.org.br/. A agenda da comunicação democrática é ampla e inclui acesso digital (equipamentos, combate ao analfabetismo digital, gratuidade da banda larga etc.), entre inúmeras outras bandeiras: todas fundamentais, sobretudo aos mais pobres e excluídos na sociedade brasileira.
9 Elaborei reflexões teóricas e empíricas acerca de uma agenda de reforma da mídia no Brasil, comparativamente a outros países: “Mídia e poder: interesses privados na esfera pública e alternativas para sua democratização”. In: Fábio de Sá e Silva et al. (orgs.), Estado, instituições e democracia: democracia, Brasília, Ipea, 2010, Livro 9, v.2. Disponível em: www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/2010/Livro_estadoinstituicoes_vol2.pdf.
STJ e Direito de Família
Direito Civil
STJ esclarece dúvidas jurídicas de fim de casamento
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- segunda-feira, 29/10/2012
Antes da celebração do casamento, os noivos têm a possibilidade de escolher o regime de bens a ser adotado, que determinará se haverá ou não a comunicação (compartilhamento) do patrimônio de ambos durante a vigência do matrimônio. Além disso, o regime escolhido servirá para administrar a partilha de bens quando da dissolução do vínculo conjugal, tanto pela morte de um dos cônjuges, como pela separação.
O instituto, previsto nos artigos 1.639 a 1.688 do CC/02, integra o direito de família, que regula a celebração do casamento e os efeitos que dele resultam, inclusive o direito de meação (metade dos bens comuns) – reconhecido ao cônjuge ou companheiro, mas condicionado ao regime de bens estipulado.
A legislação brasileira prevê quatro possibilidades de regime matrimonial: comunhão universal de bens (artigo 1.667 do CC/02), comunhão parcial (artigo 1.658), separação de bens – voluntária (artigo 1.687) ou obrigatória (artigo 1.641, inciso II) – e participação final nos bens (artigo 1.672).
A escolha feita pelo casal também exerce influência no momento da sucessão (transmissão da herança), prevista nos artigos 1.784 a 1.856 do CC/02, que somente ocorre com a morte de um dos cônjuges.
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, da 4ª turma do STJ, "existe, no plano sucessório, influência inegável do regime de bens no casamento, não se podendo afirmar que são absolutamente independentes e sem relacionamento, no tocante às causas e aos efeitos, esses institutos que a lei particulariza nos direitos de família e das sucessões".
Regime legal
Antes da lei 6.515/77 (lei do divórcio), caso não houvesse manifestação de vontade contrária, o regime legal de bens era o da comunhão universal – o cônjuge não concorre à herança, pois já detém a meação de todo o patrimônio do casal. A partir da vigência dessa lei, o regime legal passou a ser o da comunhão parcial, inclusive para os casos em que for reconhecida união estável (artigos 1.640 e 1.725 do CC/02).
De acordo com o ministro Massami Uyeda, da 3ª turma do STJ, "enquanto na herança há substituição da propriedade da coisa, na meação não, pois ela permanece com seu dono".
No julgamento do REsp 954.567, o ministro mencionou que o CC/02, ao contrário doCC/16, trouxe importante inovação ao elevar o cônjuge ao patamar de concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão legítima (herança). "Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que, apesar de não terem grau de parentesco, são o eixo central da família", afirmou.
Isso porque o artigo 1.829, inciso I, dispõe que a sucessão legítima é concedida aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente (exceto se casado em regime de comunhão universal, em separação obrigatória de bens – quando um dos cônjuges tiver mais de 70 anos ao se casar – ou se, no regime de comunhão parcial, o autor da herança não tiver deixado bens particulares).
O inciso II do mesmo artigo determina que, na falta de descendentes, a herança seja concedida aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, independentemente do regime de bens adotado no casamento.
União estável
Em relação à união estável, o artigo 1.790 do CC/02 estabelece que, além da meação, o companheiro participa da herança do outro, em relação aos bens adquiridos na vigência do relacionamento.
Nessa hipótese, o companheiro pode concorrer com filhos comuns, na mesma proporção; com descendentes somente do autor da herança, tendo direito à metade do que couber ao filho; e com outros parentes, tendo direito a um terço da herança.
No julgamento do REsp 975.964, a ministra Nancy Andrighi, da 3ª turma do STJ, analisou um caso em que a suposta ex-companheira de um falecido pretendia concorrer à sua herança. A ação de reconhecimento da união estável, quando da interposição do REsp, estava pendente de julgamento.
Consta no processo que o falecido havia deixado um considerável patrimônio, constituído de imóveis urbanos, várias fazendas e milhares de cabeças de gado. Como não possuía descendentes nem ascendentes, quatro irmãs e dois sobrinhos – filhos de duas irmãs já falecidas – seriam os sucessores.
Entretanto, a suposta ex-companheira do falecido moveu ação buscando sua admissão no inventário, ao argumento de ter convivido com ele, em união estável, por mais de 30 anos. Além disso, alegou que, na data da abertura da sucessão, estava na posse e administração dos bens deixados por ele.
Meação
De acordo com a ministra Nancy Andrighi, com a morte de um dos companheiros, entrega-se ao companheiro sobrevivo a meação, que não se transmite aos herdeiros do falecido. "Só então, defere-se a herança aos herdeiros do falecido, conforme as normas que regem o direito das sucessões", afirmou.
Ela explicou que a meação não integra a herança e, por consequência, independe dela. "Consiste a meação na separação da parte que cabe ao companheiro sobrevivente na comunhão de bens do casal, que começa a vigorar desde o início da união estável e se extingue com a morte de um dos companheiros. A herança, diversamente, é a parte do patrimônio que pertencia ao companheiro falecido, devendo ser transmitida aos seus sucessores legítimos ou testamentários", esclareceu.
Para resolver o conflito, a Terceira Turma determinou que a posse e administração dos bens que integravam a provável meação deveriam ser mantidos sob a responsabilidade da ex-companheira, principalmente por ser fonte de seu sustento, devendo ela requerer autorização para fazer qualquer alienação, além de prestar contas dos bens sob sua administração.
Regras de sucessão
A regra do artigo 1.829, inciso I, do CC/02, que regula a sucessão quando há casamento em comunhão parcial, tem sido alvo de interpretações diversas. Para alguns, pode parecer que a regra do artigo 1.790, que trata da sucessão quando há união estável, seja mais favorável.
No julgamento do REsp 1.117.563, a ministra Nancy Andrighi afirmou que não é possível dizer, com base apenas nas duas regras de sucessão, que a união estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, "porquanto o casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é difícil".
Para a ministra, há uma linha de interpretação, a qual ela defende, que toma em consideração a vontade manifestada no momento da celebração do casamento, como norte para a interpretação das regras sucessórias.
Companheira e filha
No caso específico, o autor da herança deixou uma companheira, com quem viveu por mais de 30 anos, e uma filha, fruto de casamento anterior. Após sua morte, a filha buscou em juízo a titularidade da herança.
O juiz determinou que o patrimônio do falecido, adquirido na vigência da união estável, fosse dividido da seguinte forma: 50% para a companheira (correspondente à meação) e o remanescente dividido entre ela e a filha, na proporção de dois terços para a filha e um terço para a companheira.
Para a filha, o juiz interpretou de forma absurda o artigo 1.790 do CC/02, "à medida que concederia à mera companheira mais direitos sucessórios do que ela teria se tivesse contraído matrimônio, pelo regime da comunhão parcial".
Ao analisar o caso, Nancy Andrighi concluiu que, se a companheira tivesse se casado com o falecido, as regras quanto ao cálculo do montante da herança seriam exatamente as mesmas.
Ou seja, a divisão de 66% dos bens para a companheira e de 33% para a filha diz respeito apenas ao patrimônio adquirido durante a união estável. "O patrimônio particular do falecido não se comunica com a companheira, nem a título de meação, nem a título de herança. Tais bens serão integralmente transferidos à filha", afirmou.
De acordo com a ministra, a melhor interpretação do artigo 1.829, inciso I, é a que valoriza a vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, tanto na vida quanto na morte dos cônjuges.
"Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja ou não bens particulares, partilháveis estes unicamente entre os descendentes", mencionou.
Vontade do casal
Para o desembargador convocado Honildo Amaral de Mello Castro (já aposentado), "não há como dissociar o direito sucessório dos regimes de bens do casamento, de modo que se tenha após a morte o que, em vida, não se pretendeu".
Ao proferir seu voto no julgamento de um recurso especial em 2011 (o número não é divulgado em razão de segredo judicial), ele divergiu do entendimento da 3ª turma, afirmando que, se a opção feita pelo casal for pela comunhão parcial de bens, ocorrendo a morte de um dos cônjuges, ao sobrevivente é garantida somente a meação dos bens comuns – adquiridos na vigência do casamento.
No caso, o TJ/DF reformou sentença para permitir a concorrência, na sucessão legítima, entre cônjuge sobrevivente, casado em regime de comunhão parcial, e filha exclusiva do de cujus (autor da herança), sobre a totalidade da herança.
A menor, representada por sua mãe, recorreu ao STJ contra essa decisão, sustentando que, além da meação, o cônjuge sobrevivente somente concorre em relação aos bens particulares do falecido, conforme a decisão proferida em primeiro grau.
Interpretação
Para o desembargador Honildo Amaral, em razão da incongruência da redação do artigo 1.829, inciso I, do CC/02, a doutrina brasileira possui correntes distintas acerca da interpretação da sucessão do cônjuge casado sob o regime de comunhão parcial de bens.
Em seu entendimento, a decisão que concedeu ao cônjuge sobrevivente, além da sua meação, direitos sobre todo o acervo da herança do falecido, além de ferir legislação federal, desrespeitou a autonomia de vontade do casal quando da escolha do regime de comunhão parcial de bens.
O desembargador explicou que, na sucessão legítima sob o regime de comunhão parcial, não há concorrência em relação à herança, nem mesmo em relação aos bens particulares (adquiridos antes do casamento), visto que o cônjuge sobrevivente já está amparado pela meação. "Os bens particulares dos cônjuges são, em regra, incomunicáveis em razão do regime convencionado em vida pelo casal", afirmou.
Apesar disso, ele mencionou que existe exceção a essa regra. Se inexistentes bens comuns ou herança a partilhar, e o falecido deixar apenas bens particulares, a concorrência é permitida, "tendo em vista o caráter protecionista da norma que visa não desamparar o sobrevivente nessas situações excepcionais".
Com esse entendimento, a 4ª turma conheceu parcialmente o recurso especial e, nessa parte, deu-lhe provimento. O desembargador foi acompanhado pelos ministros Luis Felipe Salomão e João Otávio de Noronha.
Contra essa decisão, há embargo de divergência pendente de julgamento na 2ª seção do STJ, composta pelos ministros da 3ª e da 4ª turma.
Proporção do direito
É possível que a companheira receba verbas do trabalho pessoal do falecido por herança? Em caso positivo, concorrendo com o único filho do de cujus, qual a proporção do seu direito?
A 4ª turma do STJ entendeu que sim. "Concorrendo a companheira com o descendente exclusivo do autor da herança – calculada esta sobre todo o patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência –, cabe-lhe a metade da quota-parte destinada ao herdeiro, vale dizer, um terço do patrimônio do de cujus", afirmou o ministro Luis Felipe Salomão em julgamento de 2011 (recurso especial que também tramitou em segredo).
No caso analisado, a herança do falecido era composta de proventos e diferenças salariais, resultado do seu trabalho no Ministério Público, não recebido em vida. Após ser habilitado como único herdeiro necessário, o filho pediu em juízo o levantamento dos valores deixados pelo pai.
O magistrado indeferiu o pedido, fundamentando que a condição de único herdeiro necessário não estava comprovada, visto que havia ação declaratória de união estável pendente. O tribunal estadual entendeu que, se fosse provada e reconhecida a união estável, a companheira teria direito a 50% do valor da herança.
Distinção
O ministro Salomão explicou que o artigo 1.659, inciso VI, do CC, segundo o qual, os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge ficam excluídos da comunhão, refere-se ao regime de comunhão parcial de bens.
Ele disse que o dispositivo não pode ser interpretado de forma conjunta com o disposto no artigo 1.790, inciso II, do CC/02, que dispõe a respeito da disciplina dos direitos sucessórios na união estável.
Após estabelecer a distinção dos dispositivos, ele afirmou que o caso específico correspondia ao direito sucessório. Por essa razão, a regra do artigo 1.659, inciso VI, estaria afastada, cabendo à companheira um terço do valor da herança.
Separação de bens
Um casal firmou pacto antenupcial em 1950, no qual declararam que seu casamento seria regido pela completa separação de bens. Dessa forma, todos os bens, presentes e futuros, seriam incomunicáveis, bem como os seus rendimentos, podendo cada cônjuge livremente dispor deles, sem intervenção do outro.
Em 2001, passados mais de 50 anos de relacionamento, o esposo decidiu elaborar testamento, para deixar todos os seus bens para um sobrinho, firmando, entretanto, cláusula de usufruto vitalício em favor da esposa.
O autor da herança faleceu em maio de 2004, quando foi aberta sua sucessão, com apresentação do testamento. Quase quatro meses depois, sua esposa faleceu, abrindo-se também a sucessão, na qual estavam habilitados 11 sobrinhos, filhos de seus irmãos já falecidos.
Nova legislação
O TJ/RJ reformou a sentença para habilitar o espólio da mulher no inventário dos bens do esposo, sob o fundamento de que, como as mortes ocorreram na vigência do novo CC/02, prevaleceria o novo entendimento, segundo o qual o cônjuge sobrevivente é equiparado a herdeiro necessário, fazendo jus à meação, independentemente do regime de bens.
No REsp 1.111.095, o espólio do falecido sustentou que, no regime da separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente jamais poderá ser considerado herdeiro necessário. Alegou que a manifestação de vontade do testador, feita de acordo com a legislação vigente à época, não poderia ser alterada pela nova legislação.
O ministro Fernando Gonçalves (hoje aposentado) explicou que, baseado em interpretação literal da norma do artigo 1.829 do CC/02, a esposa seria herdeira necessária, em respeito ao regime de separação convencional de bens.
Entretanto, segundo o ministro, essa interpretação da regra transforma a sucessão em uma espécie de proteção previdenciária, visto que concede liberdade de autodeterminação em vida, mas retira essa liberdade com o advento da morte.
Para ele, o termo "separação obrigatória" abrange também os casos em que os cônjuges estipulam a separação absoluta de seus patrimônios, interpretação que não conflita com a intenção do legislador de corrigir eventuais injustiças e, ao mesmo tempo, respeita o direito de autodeterminação concedido aos cônjuges quanto ao seu patrimônio.
Diante disso, a 4ª turma deu provimento ao recurso, para indeferir o pedido de habilitação do espólio da mulher no inventário de bens deixado pelo seu esposo.
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