Moral
A venda da virgindade e o livre mercado do pensamento
Leilão de virgindade, venda de órgãos e bebês, infanticídio. Como alguns pensadores vão aos limites da razão para justificar o que o senso comum rejeita
Guilherme Rosa
Um desses pensadores é o jurista americano Richard Posner, de 73 anos, autor de cerca de 40 livros, que há pelo menos quatro décadas é um dos pensadores mais citados — e criticados — dos Estados Unidos. Ele é considerado a principal figura de uma área conhecida como Análise Econômica do Direito, que busca usar a economia para explicar as leis e as instituições jurídicas existentes e prever os impactos que mudanças nessas estruturas podem trazer. Ainda na ativa, suas sentenças não acompanham a heterodoxia de seus livros. Porém, quando seu nome foi cotado para a Suprema Corte Americana, suas ideias debelaram as chances de conseguir a vaga.
Em seus livros mais recentes, o juiz se descreve como um pragmático, que interpreta as leis sem levar em conta princípios morais, pensando em suas consequências práticas. Para ele, as interações de mercado preservam a autonomia das pessoas envolvidas, por serem voluntárias e levar em conta os interesses individuais. "Um principio fundamental em seu pensamento é o consenso, o acordo. Ele diz que é justo alguém vender seu corpo, desde que isso não tenha consequências sobre outras pessoas", diz Bruno Meyerhof Salama, professor de Direito na Fundação Getúlio Vargas.
Em seu livro Sex and Reason, de 1992, Posner usa uma análise de custo-benefício para descrever como o comportamento sexual se desenvolveu desde a Grécia Antiga até os dias de hoje. Ele analisa o "preço" de cada tipo de comportamento — monogamia, bigamia, homossexualismo, heterossexualismo — na equação de uma sociedade. Segundo o jurista, a análise do comportamento sexual deve ser moralmente indiferente, como se o que estivesse sendo analisado fosse uma simples preferência alimentar. Ele propõe que o estado deveria abandonar as tentativas de manter controle sobre o comportamento sexual privado e consensual, e todas leis nesse sentido deveriam ser moralmente neutras. Nesse tipo análise, o leilão da virgindade é perfeitamente justificável.
Oferta e procura – O russo Alexander Stepanov, 23 anos, também leiloou sua virgindade em outubro, na mesma página de internet em que Ingrid Migliorini ganhou 1,5 milhão de reais. O maior lance recebido por ele, no entanto, foi de apenas 5.200 reais. Esse é um exemplo claro de como as leis do mercado, de oferta e procura, podem regular até o leilão do próprio corpo.
Na visão de Posner, a virgindade perdeu seu valor simbólico há muito tempo. Nas sociedades antigas, ela era muito valorizada, tanto pela tradição quanto pela religião. O verdadeiro motivo, no entanto, era que a virgindade da noiva dava ao marido a certeza de que era pai de todos os filhos nascidos após o casamento. "A principal razão para isso deve ter sido a extrema dificuldade, antes dos testes de paternidade, de provar quem era o verdadeiro pai de uma criança", escreve Posner.
No século 20, se tornou muito mais fácil estabelecer a paternidade. Além disso, métodos contraceptivos ajudaram a evitar que o sexo antes do casamento pudesse acabar em gravidez. E, mesmo quando isso acontece, as mães solteiras não são mais tão mal vistas em nossa sociedade. Como resultado, os custos de ter sexo antes do casamento caíram muito, derrubando com eles o mito da virgindade. Se alguns homens ainda valorizam isso, e estão dispostos a pagar milhões, não haveria impedimentos morais, na visão de Posner e companhia.
Posner também não vê grandes problemas na prostituição. Ele lança sobre ela o mesmo olhar que lança sobre o casamento. Enquanto no matrimônio o casal trocaria serviços sexuais por serviços de proteção e cuidado, as prostitutas trocam seus serviços por dinheiro. No passado, quando um marido pagava um dote ao pai da noiva, ele nada mais estava fazendo do que pagar pela virgindade.
A atual novela das nove, Salve Jorge, está colocando em discussão o tráfico internacional de mulheres. Na trama, a personagem Morena é vítima de um esquema e viaja ao exterior acreditando que trabalhará como garçonete. No entanto, ela vai parar em uma casa de prostituição. Essa é a vida de inúmeras mulheres vindas do terceiro mundo, que passam a viver situações degradantes sendo obrigadas a vender seu corpo longe de sua terra natal.
Alguns pensadores, no entanto, defendem que esse tipo de situação acontece mais por causa de leis que reprimem a prostituição e a imigração ilegal do que por conta da venda de sexo em si. Segundo um estudo de Leyla Gulcur, psicóloga da Universidade de Nova York, a situação de imigrante e trabalhadora ilegal é que faz com que essas mulheres sofram discriminação. A exploração econômica que elas sofrem se deve ao fato de não terem para quem recorrer devido à sua insegurança jurídica no novo pais.
Mesmo nos casos em que elas foram levadas a esses países de forma forçada, essa condição impede que procurem a polícia para se proteger. Segundo a pesquisadora, o foco das políticas para defender essas mulheres não deveria ser o confronto da prostituição. "Suas necessidades podem ser atingidas ao reconhecer o trabalho sexual e liberalizar as políticas migratórias para prevenir o abuso de terceiros", escreve Gulcur.
Mercado de rins — Essa racionalidade sem limites leva Posner e outros pensadores a justificarem a venda do corpo em um sentido mais literal. Ao defender a lógica do mercado e os acordos consensuais, eles conseguem justificar uma rede de comércio de órgãos, que poderia ajudar diminuir as filas de espera para transplantes. Alguns órgãos, como rins e fígados, poderiam ser vendidos inclusive durante a vida, do mesmo modo como acontece com sangue, esperma, cabelo e óvulos em alguns países.
O economista Gary Becker, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 1992, fez uma análise das filas de espera pelo transplante de rim nos Estados Unidos. Segundo seus dados, 90.000 pessoas aguardam por doações do órgão e cerca de 4.000 morrem todos os anos durante essa espera. "Se o altruísmo fosse suficientemente poderoso, o suprimento de órgãos seria grande o suficiente para satisfazer a demanda, e não haveria nenhuma necessidade de mudar o sistema atual", escreveu Becker no blog que divide com Richard Posner.
Ele defende que a principal razão para a diferença entre oferta e demanda é a proibição da venda de rins. Se as leis fossem alteradas, as pessoas passariam a ceder seus órgãos em troca de ganhos financeiros. Becker cita um estudo da Universidade de Buffalo afirmando que, nesse mercado, o preço de um rim seria de 15.000 dólares e um fígado chegaria a 35.000.
Segundo Posner, esse comércio iria acabar completamente com as filas de espera, uma vez que existem bilhões de pessoas que estariam dispostas a dar um rim sobressalente para ganhar dinheiro. "A repugnância que a ideia de vendermos partes do corpo desperta em muitas pessoas não me parece ter nenhuma base racional", afirma o jurista.
Aluga-se útero – O pragmatismo também leva Posner a defender a barriga de aluguel: o direito de uma mulher "emprestar" seu útero para gerar o embrião de outras pessoas. Normalmente, isso acontece quando a mãe original é infértil, e precisa de outra barriga para carregar seu filho durante nove meses. A lei brasileira, por exemplo, proíbe que isso seja feito em troca de dinheiro.
O jurista defende, no entanto, que a barriga de aluguel seja objeto de comércio. "A prostituta vende sexo, do mesmo modo como a barriga de aluguel vende reprodução", escreve. Ele afirma que uma mulher fértil tem todo o direito de ajudar uma mulher infértil em troca de dinheiro. Alguns críticos dizem que a prática é um arranjo comercial para a produção de um bebê. Posner se defende dizendo que, sem a barriga de aluguel, a criança poderia nem nascer. Além de trazer vantagens para as duas mães, o acordo também traz vantagens para uma terceira parte: a criança.
Outros críticos dizem que, nos limites, o raciocínio permitiria que mães vendessem seus filhos mesmo depois de nascidos. Posner concorda, mas não vê nenhum problema nisso.
Bebês a venda – O processo de adoção costuma ser complexo e demorado. As crianças devem primeiramente ser destituídas de suas famílias biológicas por meio de procedimentos legais, e os pais adotivos passam por rigorosas análises de assistentes sóciais e psicólogos. Posner defende que esses procedimentos também devem ser substituídos pelas leis do mercado.
"O termo venda de bebês, embora inevitável, é enganador. Uma mulher que desiste de seus direitos parentais por um pagamento não está vendendo seu bebê; bebês não são bens, e não podem ser comprados e vendidos. Ela está vendendo seus direitos de paternidade", escreve no livro Sex and Reason. Esses direitos seriam diferentes dos direitos de posse e os novos pais não teriam poderes maiores do que os pais biológicos.
Segundo o jurista, sempre que o estado impõe um limite ao preço de algum bem, isso cria uma falta generalizada desse bem no mercado regular e um mercado negro, onde ele está disponível a preços bem maiores. É isso que acontece com a adoção, onde já existe um comércio irregular de crianças para pais desesperados.
Posner propõe a criação de um mercado de bebês, com regulamentações para impedir abusos. Os pais adotivos, por exemplo, não devem possuir nenhum tipo de registro criminal. E as crianças devem ser adotadas ainda bebês, para que não se lembrem da família original. Novamente, diz ele, é uma situação na qual os dois lados da transação têm vantagens. A criança também, pois ganha pais em condições de criá-la.
Limites do mercado – No livro, O que o dinheiro não compra (Ed. Civilização Brasileira), o filósofo Michael Sandel critica o tipo de visão que considera o mercado como o regulador perfeito das relações humanas. Como ele resume: existem coisas que o dinheiro pode — mas não deveria — comprar. Sua primeira crítica diz respeito ao pressuposto de que as decisões de ambas as partes de um contrato são sempre voluntárias. Ele diz que enormes injustiças podem ser cometidas quando alguém compra ou vende algo em condições de grave necessidade econômica, pressionado pela pobreza e pela fome.
Outra crítica de Sandel é que a mercantilização pode mudar os valores que damos a algum produto, criando uma visão degradante da pessoa humana. Ele cita o caso da venda de crianças, onde os bebês se tornariam mera mercadoria. "As inevitáveis diferenças de preço reforçariam a ideia de que o valor de uma criança depende de raça, sexo, potencial intelectual, capacidades ou incapacidades físicas", afirma no livro.
Sandel ainda afirma que o mercado altera o caráter dos bens que são vendidos. Muitas vezes remunerar alguém por algo que ele faria de graça tira sua vontade de fazê-lo. O filósofo cita um estudo clássico de Richard Titmuss feito nos anos 1970, que comparou o sistema de doação de sangue em vigor na Inglaterra e com o dos Estados Unidos. Enquanto no primeiro todo o sangue é doado por voluntários, no segundo boa parte vem da compra por bancos de sangue comerciais.
O resultado nos Estados Unidos foi ruim. Grande parte dos doadores moravam em favelas e bairros pobres, gerando uma redistribuição dos pobres para os ricos. Ali, o sistema de compra de sangue levava à uma escassez crônica, desperdício de sangue e maior risco de contaminação. Segundo Sandel, transformar o sangue em mercadoria corrói o bom sentimento dos doadores voluntários, que enxergam no ato uma compensação psicológica, não monetária.
Embriões e crianças – Há pensadores, contudo, que não têm uma fé irrestrita nos poderes do mercado, mas também deixam que seu sistema de pensamento os conduza a regiões extremas. É o caso do filósofo Peter Singer, professor de bioética na Universidade de Princeton. Ele se filia ao utilitarismo, tradição filosófica inaugurada pelo inglês Jeremy Bentham no final do século XVIII. Um dos pilares dessa tradição é a ideia de que o ato moralmente justo é sempre aquele que resulta num acréscimo da felicidade geral, em detrimento da dor. Singer adota, além disso, uma definição peculiar de "pessoa" - palavra que em seu vocabulário se aplica tão somente a seres dotados de autonomia, de autoconsciência e da capacidade para vivenciar as sensações de dor e prazer.
A combinação desses dois conceitos faz com que Singer defenda o direito ao aborto, à eutanásia - e até mesmo ao infanticídio, em determinadas condições. Ele o faz sem eufemismos nem atenuações. "Se o feto não tem o mesmo direito à vida que a pessoa, é possível que o bebe recém-nascido também não tenha, e a vida de um bebê recém-nascido tem menos valor para ele do que têm as vidas de um porco, de um cão ou de um chimpanzé, para esses animais", diz ele em um de seus livros. E ainda: "Decididamente devemos impor condições muito rigorosas ao infanticídio permissível; contudo, essas restrições talvez se devessem mais aos efeitos do infanticídio sobre os outros do que ao erro intrínseco de matar um bebê." Em consonância com sua crença de que as decisões morais devem ser tomadas levando em conta a "quantidade de felicidade geral", ele sugere que a opção pelo infanticídio deve ser tomada somente quando a criança, ao nascer, apresenta doenças e malformações que indicam uma vida de sofrimentos pela frente. Peter Singer já foi chamado de Dr. Morte da filosofia.
Seguindo a mesma linha de pensamento, no começo deste ano, os filósofos Alberto Giublini e Francesca Minerva, da Universidade de Melbourne, na Austrália, causaram indignação ao publicar um artigo na revista Journal of Medical Ethics. Eles defendiam que, se o aborto é permitido em alguns casos, a vida do recém-nascido poderia ser terminada nas mesmas condições, uma vez que não haveria grandes diferenças entre os dois.
Por causa de repercussão, os filósofos redigiram uma carta aberta ao público se desculpando "pela ofensa causada pelo artigo". Eles se justificaram dizendo que o artigo deveria ser lido apenas por filósofos, que seriam capazes de entender que se tratava de uma discussão intelectual, e não de uma proposta de política pública.
Limites da razão — A resposta dos australianos revela o quanto existe de artificial nesse tipo de proposta. Quando não é feita com o intuito direto de chocar, ela responde a uma espécie de fetichismo da lógica e dos conceitos. Confrontados com o ultraje de quem não participa do mesmo jogo de abstrações, eles reagem com surpresa e alguma consternação - como no caso de Giublini e Minerva - ou com soberba, dizendo que os críticos são incapazes de se livrar de suas superstições.
Diante disso, cabe avançar um pouco na crítica. Primeiro, essas tentativas de melhorar o mundo no laboratório do raciocínio puro não são capazes de prever todas as consequências sociais de mudanças que, quebrando com antigas tradições, autorizassem, por exemplo, a venda de bebês ou o infanticídio. "Não existe uma teoria certeira sobre como funcionam as crenças humanas. Não sabemos como mudanças na lei, monetarizando algumas relações por exemplo, podem alterar essas crenças e os comportamentos que nelas são baseados", afirma Bruno Meyerhof Salama.
Segundo, o repúdio a essas soluções radicais, desenhadas nos limites da razão, raramente brota de "superstições". Quase sempre ele tem origem no senso comum - que é algo muito diferente. Ou àquilo que o escritor britânico C. S. Lewis chamou certa vez de "retidão elementar da reação humana". Lewis refletia sobre a maneira como algumas crenças fundamentais das sociedades do Ocidente foram forjadas ao longo do tempo. Não queria dizer que elas tinham de ser imutáveis, apenas que não deveriam ser descartadas como mero entulho pela razão. Disse ele: "Essa retidão elementar da reação humana, à qual estamos sempre prontos a atribuir os epítetos de vulgar, crua, burguesa e convencional, está longe de nos ser conferida; trata-se de um delicado equilíbrio de hábitos laboriosamente adquiridos e facilmente perdidos, de cuja manutenção dependem tanto nossas virtudes e nossos prazeres como, talvez, a própria sobrevivência da espécie."
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