Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos
Alexandre Morais da Rosa

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28/06/2010

Li e Gostei - José Castelo

Atrás da máscara

"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos pelo desejo de saber como é o nosso interior."
(Montaigne)


Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão. Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma f orma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.

O sucesso de seus dois primeiros livros, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatu ra, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.

Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um homem com duas sombras — uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?" (...)

(Do livro *Inventário das Sombras, de José Castello, Editora Record, Rio de Janeiro, 1999, "Atrás da Máscara", pág. 173)

27/06/2010

Controle Remoto Judicial - Por Rosivaldo Toscano Jr

Controle Remoto Judicial


Como sempre procuro enfatizar em minhas decisões, o sistema penal termina por deformar a atuação dos seus atores (polícia, MP, Juiz, advogados) desde a investigação, passando pelo processo de formação de culpa, até o julgamento. A subjetividade é muito maior do que imaginamos e nem percebemos, muitas vezes, que estamos a agir ao alvedrio daquilo que confessadamente defendemos. Já dizia Freud que a descoberta do inconsciente foi uma das feridas em nossa pretensão de racionalidade e onipotência.
Por isso, embora apregoemos a defesa do Estado Democrático de Direito, que no âmbito penal representa a adoção do direito penal do fato e do processo penal acusatório, com reflexos na presunção de inocência, a prática forense demonstra que terminamos, numa grande parcela dos casos, prejulgando algum acusado pelo seu histórico de vida. E não raras vezes garimpamos razões para a prisão cautelar, que não deixa de ser, no fundo, no fundo, uma antecipação de pena. Vou deixar de lado neste post uma abordagem ideológica para entrar um pouco na psicanálise (se bem que Slavoj Zizek faz um link entre Marx e Freud). Nossos preconceitos e preconcepções sobre os estereótipos dos réus e sobre “o lugar de cada um” na sociedade tem uma força muito grande na condução de nossas decisões. Há uma cisão entre nós, "pessoas de bem", e eles, "os infratores". A possibilidade de percepção e consideração da alteridade fica bloqueada. Não tratamos como se estivéssemos no mesmo patamar de dignidade. Falo isso fazendo uma autocrítica. Eu mesmo só de uns poucos anos para cá fui perceber isso.
Lembro que no início da vida na toga era comum eu dar lições de moral nos acusados. Certa vez me irritei com um réu que mentia descaradamente. Queria “consertá-lo”, fazê-lo ver a beleza moral do que seria um comportamento como o esperado pela sociedade. Após algumas leituras que me foram muito importantes (Streck e Alexandre Morais da Rosa foram dois deles, com passagens por Dussel, Foucault, Lacan, Freud, Jung e tantos outros humanistas) é que passei a perceber isso. Onde estava minha sensibilidade social e a capacidade de enxergar o outro, entender sua história de vida, seus horizontes culturais, afetivos e emocionais, suas contingências, suas idiossincrasias? Enfim, fazer valer a frase de Ortega & Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias”? Estava guardada no fundo do baú, junto com outras reminiscências inconfessáveis.
Recordo que durante a adolescência e a juventude eu era ligado aos movimentos sociais e participei ativamente de grêmios estudantis, no colégio, e diretórios acadêmicos, na faculdade. O que houve de errado? O que aconteceu que fez imergir essa consciência?
Posso hoje atribuir muito disso aos estudos para os concursos. À época não me dei conta inteiramente, mas o perfil que se busca de um concurseiro é o conhecimento bancário, acrítico, como se o candidato fosse um receptáculo de onde os membros da comissão retirariam os conhecimentos de pontos específicos do programa. Ademais, busca-se um nível de concentração e de estresse desumanos, pois em cada frase pode haver uma escaramuça, uma casca de banana. Discutir justiça? Nada disso. Não se busca a reflexão. É pura flexão.
Assim, precisamos saber o que diz a letra fria da lei (incluindo até a sorrateira colocação de vírgulas...) e a jurisprudência majoritária (as súmulas, nem se fala!). E sem que tenha dado conta, terminei por ser também “amestrado”. Trata-se de um condicionamento que não percebemos, nos moldes da Teoria Comportamental (Behaviorismo). Os próprios membros das bancas geralmente também não tem consciência disso, pois são frutos do mesmo estado de coisas. Nossos reflexos são apurados para responder prontamente aos estímulos do meio: temos que colocar direitinho no papel o que eles querem que coloquem, quer dizer, o pensamento hegemônico. Refletir, criticar? Isso não é para você, meu filho. Deixe para depois de passar no concurso... Só que aí já será tarde demais para uma boa parcela dos atores jurídicos...
E muitos terminam, como eu, por dissociar suas decisões da realidade social. Enchia a boca para falar no “fenômeno jurídico”, essa espectro que só pode ser considerado no mundo do dever-ser, como se Kelsen tivesse dito isso. O que ele disse foi que a teoria do direito é pura e que não se confunde com política, economia e outras manifestações. Mas não disse que ao julgarmos só podemos decidir com base na lei. Contudo, o formalismo jurídico apregoa isso porque é uma expressão do interesse hegemônico.
Não existe fenômeno jurídico. Existe fenômeno social a que se atribui uma nomenclatura jurídica. Se começamos a considerar a realidade social e a perceber a profundidade de nossas decisões na alteração do mundo dos fatos, faremos valer os valores primordiais da dignidade da pessoa humana e da isonomia, sem preconceitos, sem prejulgamentos. Utilizaremos o Direito como fator transformador da realidade social e não somente como engodo ou como meio de manutenção das relações desiguais de poder.
Interessante porque comecei esse post querendo falar sobre um outro assunto. Terá sido o inconsciente que se manifestou? Vocês não perdem por esperar...

Tese do Prof. Egger - Mediação - Vale ler

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ST - Informativo 438

No Crime a Ministra Maria Thereza dá show!.

REGIME ABERTO. PRESTAÇÃO. SERVIÇOS. COMUNIDADE.


Apesar de poder ser cumulada com outra pena restritiva de direitos, a pena de prestação de serviços à comunidade, de caráter substitutivo e autônomo, não pode ser fixada como condição especial (arts. 115 e 119 da LEP) para o cumprimento de pena privativa de liberdade em regime aberto. Como cediço, as penas privativas de direitos aplicam-se alternativamente às privativas de liberdade, mas não podem ser cumuladas com elas, pois sequer há previsão legal nesse sentido. A intenção do legislador ao facultar a estipulação de condições especiais para o cumprimento do regime aberto foi englobar circunstâncias inerentes ao próprio regime que não constavam das condições obrigatórias previstas no art. 115 da LEP e não fixar outra pena, o que resultaria duplo apenamento para um mesmo ilícito penal sem autorização legal ou mesmo aval da sentença condenatória (bis in idem). Precedentes citados: HC 138.122-SP, DJe 1º/2/2010, e HC 118.010-SP, DJe 13/4/2009. HC 164.056-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 10/6/2010.


TRANSAÇÃO PENAL. DESCUMPRIMENTO.


Faz coisa julgada formal e material a sentença que homologa a aplicação de pena restritiva de direitos decorrente de transação penal (art. 76 da Lei n. 9.099/1995). Assim, transcorrido in albis o prazo recursal e sobrevindo descumprimento do acordo, mostra-se inviável restabelecer a persecução penal. Precedentes citados: HC 91.054-RJ, DJe 19/4/2010; AgRg no Ag 1.131.076-MT, DJe 8/6/2009; HC 33.487-SP, DJ 1º/7/2004, e REsp 226.570-SP, DJ 22/11/2004. HC 90.126-MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 10/6/2010.



CRIME. MEIO AMBIENTE. PESSOA JURÍDICA.


Conforme a jurisprudência deste Superior Tribunal, nos crimes que envolvem sociedades empresárias (nos quais a autoria nem sempre se mostra bem definida), a acusação tem que estabelecer, mesmo que minimamente, a ligação entre a empreitada criminosa e o denunciado. O simples fato de ser sócio, gerente ou administrador não permite a instauração da persecução penal pelos crimes praticados no âmbito da sociedade, se não se comprovar, ainda que mediante elemento a ser aprofundado no decorrer da ação penal, a relação de causa e efeito entre as imputações e a função do denunciado na sociedade, sob pena de acolher indevida responsabilidade penal objetiva. Na hipótese, foi denunciada, primeiramente, a pessoa jurídica e, por meio de aditamento, a pessoa física. Em relação a esta última, o MP, quando do aditamento à denúncia, não se preocupou em apontar o vínculo entre ela e a ação poluidora. Só isso bastaria para tachar de inepto o aditamento à denúncia. Contudo, soma-se a isso o fato de haver, nos autos, procuração pública que dá poderes para outrem gerir a sociedade. Daí que o aditamento não se sustenta ao incluir a recorrente apenas por sua qualidade de proprietária da sociedade. A inépcia do aditamento também contamina a denúncia como um todo, em razão de agora só figurar a pessoa jurídica como denunciada, o que é formalmente inviável, pois é impossível a responsabilização penal da pessoa jurídica dissociada da pessoa física, a qual age com elemento subjetivo próprio. Precedentes citados: RHC 19.734-RO, DJ 23/10/2006; HC 86.259-MG, DJe 18/8/2008, e REsp 800.817-SC, DJe 22/2/2010. RHC 24.239-ES, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 10/6/2010.


TRÁFICO. DROGAS. SUBSTITUIÇÃO. PENA.


A Turma reafirmou ser possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nas condenações referentes ao crime de tráfico de drogas praticado sob a égide da Lei n. 11.343/2006, conforme apregoam precedentes do STF e do STJ. Na hipótese, o paciente foi condenado pela prática do delito descrito no art. 33, caput, daquela lei e lhe foi aplicada a pena de um ano e oito meses de reclusão, reduzida em razão do § 4º do citado artigo. Então, reconhecida sua primariedade e determinada a pena-base no mínimo legal em razão das favoráveis circunstâncias judiciais, há que fixar o regime aberto para o cumprimento da pena (princípio da individualização da pena) e substituí-la por duas restritivas de direitos a serem definidas pelo juízo da execução. Precedentes citados do STF: HC 102.678-MG, DJe 23/4/2010; do STJ: HC 149.807-SP, DJe 3/11/2009; HC 118.776-RS; HC 154.570-RS, DJe 10/5/2010, e HC 128.889-DF, DJe 5/10/2009. HC 151.199-MG, Rel. Min. Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE), julgado em 10/6/2010 (ver Informativo n. 433).

Conversas Cruzadas. Dica - Dani Felix

Convido-os a assistir amanhã (28/06), às 22h, na TVCom (Canal 36 da NET, Viamax e pela web ao vivo [www.clicrbs.com.br] ou pelo Blog [http://wp.clicrbs.com.br/conversascruzadas/?topo=77,2,1,,,77]), o Programa Conversas Cruzadas, com Renato Igor, tema: Monitoramento eletrônico para os presos em regime de semi liberdade.
Representarei a Advogados sem Fronteiras (ASF-Brasil) e Grupo de Pesquisa Universidade Sem Muros (UFSC/CNPq).
Abraços,
Daniela Felix

Jean Pierre Lebrun

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Para vida

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26/06/2010

Crítica Branda e Politicamente correta

No cenário jurídico brasileiro é um pecado dizer que o sujeito não está certo. Se o cara não fala um monte de "data vênia", que Vossa Excelência está equivocado, enfim, sem ser politicamente correto, os narizes se torcem, as pessoas não aceitam a crítica. Uma crítica branda, cheia de fru-fru é um dos motivos desta fraude da Jurisdição. A crítica precisa arder. Mostrar que os fundamentos (ou pseudo) são frágeis, equivocados, errados, até mesmo decorrentes de "anafalbetismo funcional". Fico impressionado com as respostas de gente que "fica de mal", se acha "ofendido", enfim, quer "carinho crítico". QUer se diga assim: não querido, vc poderia pensar diferente. Quem sabe se vc pensar assim, assim.... Não compartilho deste modo de pensar. É preciso "dar nos dedos" para que o sujeito, acima de tudo, vá estudar!!!!!!!!!!!!! Embora eu não acredite que vá. Ele irá se fazer de vítima, ganhando afagos de outros iguais. Confundem alteridade com condescendência.

Zizek legendado - vale a pena - Enjoy

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Pedofilia - um debate

Achei o youtube isto, embora ao pesquisar pelo meu nome, descobri que meu homônimo é missionário de Jesus. Quem sabe interesse mais.
Quem quiser conferir ">CLIQUE AQUI

Stfj Informativo - ainda

1) ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PRINCÍPIO. INSIGNIFICÂNCIA.


In casu, o ora recorrido foi condenado à pena de cinco anos e quatro meses de reclusão e 13 dias-multa, pela prática do delito roubo circunstanciado, em virtude da subtração, mediante violência, de um cupom fiscal e o valor de R$ 10,00 (art. 157, § 2º, II, c/c 29 e 65, I e III, d, todos os CP). O tribunal a quo, em sede de apelação, reconheceu a incidência do princípio da insignificância, uma vez que não restou caracterizada significativa lesão ao patrimônio e à pessoa, cumulativamente, e julgou extinta a punibilidade do recorrido. Assim, o cerne da questão posta no especial cinge-se à possibilidade da incidência do principio da insignificância no delito de roubo. A Turma, ao prosseguir o julgamento, entendeu que é inviável a aplicação do princípio da insignificância em crimes perpetrados com violência ou grave ameaça à vítima, não obstante o ínfimo valor da coisa subtraída. Ademais, o STF já decidiu que o referido princípio não se aplica ao delito de roubo. Precedentes citados do: STF: RE-AgR 454.394-MG, DJ 23/3/2007; do STJ: REsp 468.998-MG, DJ 25/9/2006, e REsp 778.800-RS, DJ 5/6/2006. REsp 1.159.735-MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 15/6/2010.

COMENTARIO: Esta resposta geral - não cabe insignificãncia NUNCA no roubo - é errada. O STJ ainda acredita que faz interpretação declarativa. Pensa que arredonda as arestas da lei. Pensar assim é estar um século atrasado.

2 )
PEDIDO. ABSOLVIÇÃO. MP. VINCULAÇÃO. JUIZ.


A Turma reiterou o entendimento de que o magistrado não está vinculado ao pedido de absolvição formulado pelo Parquet, se as provas dos autos apontarem em sentido diverso. Precedentes citados: REsp 1.073.085-SP, DJe 22/3/2010; HC 84.001-RJ, DJ 7/2/2008, e HC 76.930-SP, DJ 5/11/2007. HC 162.993-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 17/6/2010.

COMENTARIO; O Ministro não conhece o sistema eminentemente acusatório. Por certo Sua Excelência acredita que o art. 28, 384, 156, todos foram recepcionados. Está errado. QUalquer um que saiba a diferença entre os Sistemas, sabe que não pode. Mas para quem não conhece Sistema (acusatório x inquisitório) pode. Logo.... vcs sabem o que é preciso. abs

Informativos STJ

MEDIDA SOCIOEDUCATIVA. CUMPRIMENTO. TRÂNSITO EM JULGADO.


No habeas corpus preventivo, pretendia-se que o cumprimento de eventual medida socioeducativa a ser imposta pelo juízo fosse iniciada após o trânsito em julgado da sentença. Quanto a isso, a jurisprudência que se formou em torno da interpretação do art. 198, VI, do ECA (revogado pela Lei n. 12.012/2009) firmou-se no sentido de que a sentença que insere o adolescente na medida socioeducativa possui apenas o efeito devolutivo, o que não obsta o imediato cumprimento da medida aplicada, salvo quando há possibilidade de dano irreparável ou de difícil reparação, caso em que o apelo também é recebido no efeito suspensivo. No caso dos autos, não há como aferir a legalidade dessa eventual medida. Daí que não há coação ou ameaça concreta de lesão à liberdade de locomoção do paciente a afastar seu interesse de agir, imprescindível ao conhecimento da impetração ora em grau de recurso. Precedentes citados: RHC 21.380-RS, DJe 2/2/2009; HC 82.813-MG, DJ 1º/10/2007, e HC 54.633-SP, DJe 26/5/2008. RHC 26.386-PI, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 18/5/2010.

HOMICÍDIO. FAIXA. PEDESTRES.


A causa de aumento da pena constante do art. 302, parágrafo único, II, do CTB só incide quando o homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor ocorrer na calçada ou sobre a faixa de pedestres. Portanto, não incide quando o atropelamento ocorrer a poucos metros da referida faixa, tal como no caso, visto que o Direito Penal não comporta interpretação extensiva em prejuízo do réu, sob pena de violação do princípio da reserva legal (art. 5º, XXXIX, da CF/1988). HC 164.467-AC, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 18/5/2010.

COMPETÊNCIA. TJ. TURMA RECURSAL. MESMO ESTADO. LEI MARIA DA PENHA.


Trata-se de conflito de competência em que o suscitante é a primeira turma recursal criminal dos juizados especiais e o suscitado, o tribunal de justiça do mesmo estado, nos autos de ação penal que tratam de violência doméstica contra a mulher. A ação penal teve início no primeiro juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher, que remeteu os autos ao terceiro juizado, também da violência doméstica e familiar contra a mulher, que, por sua vez, suscitou o conflito negativo de competência, remetendo os autos ao TJ. Este declinou da competência, sustentando tratar-se de infração penal de menor potencial ofensivo, e os remeteu à primeira turma recursal criminal, que, acolhendo parecer do MP, suscitou conflito de competência. Para o Min. Relator, o mesmo raciocínio de não caber ao Superior Tribunal de Justiça julgar conflitos de competência entre juizados especiais e juízes de primeiro grau da Justiça Federal de uma mesma seção judiciária – segundo o entendimento do STF por ocasião do julgamento no RE 590.409-RJ, DJe 29/10/2009 – deve ser aplicado em relação a eventual conflito suscitado entre tribunal de justiça e turma recursal criminal do mesmo estado, tendo em vista que as turmas recursais constituem órgãos recursais ordinários de última instância relativamente às decisões dos juizados especiais, mas não se qualificam como tribunal, requisito essencial para que se instaure a competência especial do STJ (nesse sentido, há precedente da Seção). Dessa forma, por um lado, conclui o Min. Relator, não há conflito de competência a ser dirimido. Por outro lado, observa que a Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) afastou a competência da turma recursal ao determinar a não aplicação da Lei n. 9.099/1995, criando mecanismos para coibir a violência doméstica com o objetivo de dar maior proteção à mulher no âmbito de suas relações. Sendo assim, compete ao TJ, e não à turma recursal, decidir as questões relativas à violência doméstica contra a mulher, portanto a decisão do TJ, ao declinar da sua competência para a turma recursal processar e julgar o conflito negativo de competência instaurado entre os juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, configura constrangimento ilegal, impondo a correção de tal ilegalidade por meio da concessão de habeas corpus de ofício. Diante do exposto, a Turma não conheceu do conflito de competência, porém concedeu o habeas corpus de ofício a fim de determinar que o TJ do estado aprecie o conflito negativo de competência instaurado, como entender de direito. Precedentes citados: CC 90.072-SP, DJe 30/4/2010, e CC 110.609-RJ, DJe 28/4/2010. CC 110.530-RJ, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 26/5/2010.


COMPETÊNCIA. CRIME. SISTEMA FINANCEIRO. DESCLASSIFICAÇÃO. ESTELIONATO.


Trata-se de conflito negativo de competência entre TRF e juízo de direito de vara criminal estadual. Consta dos autos que o Ministério Público Federal (MPF) ofereceu denúncia por utilização de documentos falsos para contraírem empréstimos na modalidade CDC no Banco do Brasil, o que viola o art. 19, caput e parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986, bem como os arts. 297 e 304 c/c 69 e 71, todos do CP, causando, dessa forma, prejuízos ao banco. Sobreveio a sentença proferida pelo titular da vara criminal federal, condenando a ré a seis anos de reclusão e ao pagamento de 30 dias-multa no menor valor unitário. Então, a ré interpôs recurso de apelação, sustentando, em preliminar, a incompetência absoluta da Justiça Federal ao fundamento de que não foi comprovado o prejuízo patrimonial da União, mas apenas o da sociedade de economia mista com foro na Justiça estadual e, no mérito, buscava a desclassificação do crime para estelionato, o que resultaria também na incompetência absoluta da Justiça Federal. O TRF acolheu as alegações da defesa ao argumento de que a conduta da ré não poderia ser considerada crime financeiro, mas sim estelionato, visto que o prejuízo causado atingira apenas o patrimônio da instituição financeira, por isso declarou a nulidade do processo desde o recebimento da denúncia, revogando a prisão preventiva imposta à ré. Assim, após deslocados os autos para a Justiça comum estadual, o Parquet estadual afirmou que já se havia manifestado sobre o tema no sentido de ser a competência da Justiça Federal e pugnou que os autos fossem devolvidos ao TRF para que ele suscitasse o conflito de competência. Dessa forma, o julgamento, em questão de ordem, foi retificado pelo TRF, suscitando o conflito de competência. Para o Min. Relator, o art. 19 da Lei n. 7.492/1986 exige, para configuração do crime contra o sistema financeiro, a utilização de fraude para obter financiamento de instituição financeira, o que difere da obtenção de empréstimo. Isso porque os financiamentos são operações realizadas com destinação específica, em que, para a obtenção de crédito, existe alguma concessão por parte do Estado como incentivo, assim há vinculação entre a concessão do crédito e o patrimônio da União. Também se exige a comprovação da aplicação desses recursos, por exemplo: os financiamentos de parques industriais, máquinas e equipamentos, bens de consumo duráveis, rurais e imobiliários. Dessarte, segundo o Min. Relator, na hipótese dos autos, tem razão o suscitante, pois não houve lesão ao patrimônio da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, conforme exigido pelo art. 109, IV, da CF/1988, visto que, em todas as vezes, a ré obteve empréstimo na modalidade de crédito direto ao consumidor (CDC); isso causou lesão exclusivamente à instituição financeira, como apontou o TRF. Por outro lado, quanto à imputação pelos delitos de uso de documento falso e falsificação de documento público tipificados nos arts. 304 e 297 do CP, destaca não existirem, nos autos, elementos que apontem a utilização dos documentos falsos em outras situações que não a obtenção dos empréstimos, por isso incide, na espécie, a Súm. n. 17-STJ. Diante do exposto, a Seção conheceu do conflito para declarar competente o juízo da vara criminal, o suscitado. Precedentes citados: CC 104.893-SE, DJe 29/3/2010; CC 106.283-SP, DJe 3/9/2009, e CC 31.125-SP, DJ 1º/7/2004. CC 107.100-RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 26/5/2010.

COMPETÊNCIA. TORTURA. PM. PF.


In casu, o indiciado foi preso em flagrante pela suposta prática de crime de roubo e, em depoimento, alegou ter sido torturado para que confessasse os fatos a ele imputados. Feito o exame de corpo de delito, comprovaram-se as lesões corporais supostamente praticadas por policiais militares na dependência de delegacia da Polícia Federal. Esses fatos denotariam indícios de crime de tortura. Noticiam os autos que, no momento do recebimento da notícia do suposto delito de roubo, os policiais militares estavam em diligência de apoio a policiais federais. Daí o juizado especial criminal, ao acolher parecer do MP estadual, remeteu os autos à Justiça Federal de Subseção Judiciária. Por sua vez, o juízo federal de vara única, ao receber os autos, suscitou o conflito de competência ao considerar que os policiais federais não participaram do suposto ato de tortura. Para o Min. Relator, com base na doutrina, o crime de tortura é comum, porém se firma a competência conforme o lugar em que for cometido. Assim, se o suspeito é, em tese, torturado em uma delegacia da Polícia Federal, deve a Justiça Federal apurar o débito. Destaca, ainda, que a Lei n. 9.455/1997 tipifica também a conduta omissiva daqueles que possuem o dever de evitar a conduta criminosa (art. 1º, I, a, § 2º, da citada lei). Quanto à materialidade e autoria do suposto crime de tortura, embora não haja, nos autos, informações de que os policiais federais teriam participado ativamente do crime de tortura, os fatos, em tese, foram praticados no interior de delegacia da Polícia Federal, o que, segundo o Min. Relator, atrai a competência da Justiça Federal nos termos do art. 109, IV, da CF/1988. Nesse contexto, a Seção conheceu do conflito para declarar competente o juízo federal suscitante. CC 102.714-GO, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 26/5/2010.

SERVIÇO. CELULAR. FRUTO. CLONAGEM.


A questão posta no REsp cinge-se à possibilidade de compensação tributária em operações mercantis de serviços de telefonia móvel (celular) nas quais ocorreram inadimplência de usuário ou furto de comunicação por clonagem. A Turma entendeu que inexiste previsão legal a amparar a tese da recorrente de que teria direito à compensação e suspensão da exigibilidade tributária em operações mercantis de serviços de telefonia móvel nas quais ocorreu inadimplência do usuário ou furto por clonagem. Observou-se que o fato gerador do ICMS na telefonia é a disponibilidade da linha em favor do usuário que contrata, onerosamente, os serviços de comunicação da operadora. Observou-se, ainda, que a inadimplência e o furto por clonagem fazem parte dos riscos da atividade econômica, não podendo estes ser transferidos ao Estado. Portanto, nos termos do art. 118 do CTN, o descumprimento da operação de compra e venda mercantil não afasta a ocorrência do fato gerador do referido tributo. Diante disso, negou-se provimento ao recurso. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.132.852-SP, DJe 6/4/2010; AgRg no REsp 956.583-SC, DJe 4/5/2009; AgRg no REsp 987.299-RS, DJe 29/10/2008; REsp 956.842-RS, DJ 12/12/2007, e REsp 953.011-PR, DJ 8/10/2007. REsp 1.189.924-MG, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 25/5/2010.

MEDIDA DE SEGURANÇA. PRESCRIÇÃO. PRETENSÃO EXECUTÓRIA.


A Turma concedeu a ordem de habeas corpus para restabelecer a decisão do juízo da execução que extinguiu a medida de segurança imposta ao paciente em razão da prescrição da pretensão executória. Para o Min. Relator, a prescrição da pretensão executória alcança não só os imputáveis, mas também aqueles submetidos ao regime de medida de segurança. Isso porque essa última está inserida no gênero sanção penal, do qual figura, como espécie, ao lado da pena. Por esse motivo, o CP não precisa estabelecer, especificamente, a prescrição no caso de aplicação exclusiva de medida de segurança ao acusado inimputável, aplicando-se, nesses casos, a regra disposta no art. 109 do referido código. Considerou, ainda, a presença da atenuante da menoridade relativa: o art. 115 do CP reduz pela metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 anos de idade, bem como a data em que se reconheceu a extinção da punibilidade. Precedentes citados: HC 41.744-SP, DJ 20/6/2005; REsp 1.103.071-RS, DJe 29/3/2010, e HC 85.755-MG, DJe 24/11/2008. HC 59.764-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 25/5/2010.

Dica de leitura - REID

Amigos,
está no ar a Sétima Edição da Revista Internacional de Direito e
Cidadania- REID.
A REID é uma períodico destinado a tratar de temas de
direitos humanos, que tem versão impressa, mas está totalmente
disponível, com acesso livre e gratuito, na internet:
http://www.iedc.org.br/REID/ . A publicação tem apoio do BNB.
Nesta Edição, a REID completa dois anos e como novidade apresenta o selo
carbon free.
Neste 2010, o IEDC comemora seus 15 anos de existência. Fica aqui nossa
saudação aos colegas do MPF que fundaram o IEDC e que nesses anos
contribuiram para divulgação da cidadania.
um abraço,
Inês Virginia e Sandra Kishi
(editoras da Reid)

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25/06/2010

ZONA

Notícias STF Imprimir
Segunda-feira, 21 de junho de 2010
HC sustenta “adequação social” para pedir absolvição de donos de casa de prostituição

Sob alegação de que “a tolerância social e ausência de dano ou de perigo de dano a valores da comunidade tornam atípica a conduta de manter casa de prostituição”, a Defensoria Pública da União (DPU) pede liminar no Habeas Corpus (HC) 104467, para manter a absolvição de A.F.M. e J.S., donos de uma casa de shows na cidade praiana de Cidreira (RS), denunciados pelo crime previsto no artigo 229 do Código Penal (CP).

Os donos do estabelecimento foram absolvidos em primeiro grau e, também, pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS), mas o Ministério Público estadual (MPE) recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que determinou ao juiz de primeiro grau que redija outra sentença. Recurso de agravo regimental interposto pela defesa dos empresários contra essa decisão teve provimento negado pela Corte Superior.

No HC impetrado no Supremo, a DPU pede a suspensão, em caráter liminar, da decisão do STJ até decisão final do HC. No mérito, pede que seja confirmada essa decisão.

Prós e contras

Ao absolver A.F.M. e J.S., o juiz de primeiro grau fundamentou-se no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual o juiz pode absolver o réu, quando o fato de que ele é acusado não constituir infração penal.

O juiz explicitou seu entendimento ao observar que, “embora tipificada, a conduta dos réus, quando envolve prostituição de maiores, vem sendo descriminalizada pela jurisprudência, em virtude da liberação de costumes”.

No mesmo sentido se pronunciou o TJ-RS. “Inviável a condenação dos acusados por esse crime, pois, conforme entendimento jurisprudencial, viável a aplicação do princípio da adequação social, que torna o fato materialmente atípico”, observou o tribunal, em seu acórdão.

“Assim, embora certa a autoria do delito, a absolvição dos réus deve ser mantida, pois o fato não ofende a moralidade pública, tratando-se de conduta aceita pela sociedade atual, inexistindo, portanto, justificativa para manter a criminalização dessa situação.”

Ao determinar a prolação de nova sentença, o STJ lembrou que aquela Corte “firmou compreensão de que a tolerância pela sociedade ou o desuso não geram a atipicidade da conduta relativa à prática do crime do artigo 229 do Código Penal”.

Adequação social

Em defesa dos donos do estabelecimento, a DPU invoca o princípio da adequação social, concebido pelo jurista e filósofo do direito alemão Hans Welzel. Os defensores públicos adotam o entendimento de que, apesar de uma conduta se subsumir ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando socialmente adequada, isto é, quando estiver de acordo com a ordem social.

“Realce-se ser inegável que a sociedade evoluiu, sobremaneira, no que se refere ao pudor e à quebra de paradigmas atinentes à conduta sexual”, afirma a DPU. “Noutras palavras, verifica-se um menor nível de censura relacionado à existência de casas de prostituição. Em síntese, o senso comum indica que o corpo social, majoritariamente, tolera a existência delas”.

A Defensoria destaca, porém, que desse entendimento estão nitidamente excepcionadas, em jurisprudência firmada pelo STJ, as hipótese de exploração sexual de crianças e adolescentes (artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), o rufianismo (artigo 230 do CP) e o favorecimento da prostituição (artigo 228 do CPP), “em relação aos quais a sociedade expressa total repugnância”.

Concluindo suas alegações, a DPU sustenta que, “embora ainda figure no Código Penal vigente – este dos idos de 1940 –, a conduta a que se refere o seu artigo 229 (casa de prostituição) deixou de ser vista à conta de delituosa. E deixou de sê-lo porque se trata de um conceito moral reconhecidamente ultrapassado que já não tem mais como se sustentar nos dias atuais”.

O HC 104467 tem como relatora a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha.

FK/CG

Processos relacionados
HC 104467

USP e o velho problema - privatizar tudo

Por uma universidade pública

FRANCISCO DE OLIVEIRA, PAULO ARANTES, LUIZ MARTINS e J. SOUTO MAIOR

A dificuldade econômica da universidade pública na atualidade é fruto de uma negligência proposital do Estado com o ensino público


O reitor da Universidade de São Paulo publicou neste espaço ("Mecenato e universidade", 10/6) artigo com alguns argumentos que precisam ser democraticamente contrapostos. Para ele, os problemas da USP partem de uma razão econômica.
A saída que expõe é uma contradição em termos: o ingresso de dinheiro privado para a melhoria da universidade pública. Para proteger a universidade pública, que é melhor que a privada, diz que a universidade pública deve abrir suas portas para o dinheiro privado.
No fundo, o que a sua solução esconde é a tentativa de privatizar o ensino público. Ora, não se tendo conseguido fazer com que as entidades privadas prevalecessem no cenário educacional, busca-se fazer com que o ensino público forneça o material humano necessário para os fins da iniciativa privada.
A dificuldade econômica pela qual passa a universidade pública é fruto de uma negligência proposital do Estado com o ensino público, que se pretende compensar com o investimento privado.
Este último cria, na verdade, uma perigosa promiscuidade que desvirtua a razão de ser do ensino público, que deve se voltar para os problemas sociopolítico-econômicos gerais do país.
Mas mais grave ainda é a forma pela qual se vislumbra tal "parceria". Na Faculdade de Direito, ela se fez para duvidosas reformas arquitetônicas que nada acrescentaram à melhoria do ensino. Além disso, para se chegar a tanto, foram desrespeitados diversos preceitos da ordem jurídica. O que o reitor chama de "modernização" constituiu grave ilegalidade.
Cumpre resgatar o respeito à ordem jurídica, ainda mais à luz do grotesco episódio de transposição dos livros das bibliotecas departamentais, da noite para o dia, para um prédio desprovido de condições, e cuja devolução ao local de origem, por determinação do Ministério Público, vem se arrastando há mais de três semanas...
Tais ilegalidades justificariam um processo de improbidade administrativa contra o reitor, que, além do mais, em entrevista recente à Rede Bandeirantes, referiu-se à USP, faltando com o decoro acadêmico mínimo, como "terra de ninguém", "tomada por invasores" e "assemelhada a morros do Rio de Janeiro", em vias de "virar um Haiti".
O grande passo que precisa ser dado pela USP é a sua reestruturação, buscando a democratização interna e externa, mediante o voto universal, condição para uma estatuinte e um processo rumo à superação do vestibular, visando o acesso universalizado à universidade pública, tal como é no México e na Argentina há quase um século.
O reconhecimento republicano da igualdade de voto e de cidadania de professores, estudantes e trabalhadores supõe o respeito pleno às manifestações dos servidores que legitimamente lutam por direitos.
A reitoria afirma que os trabalhadores em greve estão cometendo uma ilegalidade e comete o abuso de cortar o ponto de mil servidores, mirando com suas punições principalmente alguns de menor salário.
Mas a greve é um direito fundamental consagrado e, sobretudo, se justifica quando os trabalhadores são atingidos, na sua concepção, por ilegalidades cometidas pelo empregador. Negar a greve como um direito e fixar represálias ou coações constitui, por si, um grave atentado à democracia.
Todos os que prezam o regime democrático devem se alinhar com os trabalhadores da USP, que fazem história com suas lutas, contribuindo vivamente para a democratização da universidade, tal como os operários do ABC que, nos idos de 1978-80, desafiaram publicamente a repressão e levaram à reconstrução da ordem jurídica do país.

FRANCISCO DE OLIVEIRA é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP).
PAULO ARANTES é professor da FFLCH-USP. LUIZ RENATO MARTINS é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.
JORGE LUIZ SOUTO MAIOR é professor associado da Faculdade de Direito da USP.

A ausência de limites - terror ordinário

07/06/2010 - 18h45 / Atualizada 07/06/2010 - 18h47
Médicos da CIA fizeram

experiências com presos



WASHINGTON, 7 Jun 2010 (AFP) -Médicos americanos fizeram experimentos com prisioneiros suspeitos de terrorismo e interrogados pela CIA após o 11 de setembro, revela um relatório publicado nesta segunda-feira pela organização Physician for Human Rights (PHR), que pede a abertura de uma investigação.

A organização de médicos em defesa dos direitos humanos, que se apoia em documentos públicos, afirma que profissionais da saúde empregados pela CIA não se contentavam em "acompanhar" os interrogatórios de "detidos de maior importância". Também "extraíam conhecimentos gerais com o objetivo de aperfeiçoar os métodos" de obter informação dos suspeitos.

"Há provas de que os médicos avaliavam a dor causada pelas técnicas de interrogatórios e buscavam melhorar seus conhecimentos a respeito", explicou Nathaniel Raymond, dirigente da PHR, em uma entrevista à imprensa.

Os médicos da CIA serviam também como testemunhas, caso fosse necessário atestar que os interrogadores agiam de boa fé, sob instruções e na presença de um profissional de saúde.

Pelo menos 14 detidos desapareceram das prisões secretas da Agência Central de Inteligência (CIA) entre o final de 2001 e setembro de 2006 e reapareceram no centro de detenção da base naval americana de Guantánamo, na ilha de Cuba. Entre eles, pelo menos dois foram submetidos a simulações de afogamento (submarino) e todos foram submetidos a programas de privação de sono, nudez forçada e exposição a temperaturas extremas, segundo os documentos publicados em agosto de 2007 e nos quais se apoia a PHR.

Ainda que a utilização de tratamentos cruéis e subumanos tenha sido documentada anteriormente, a PHR afirma que os novos dados evidenciam uma participação ativa dos médicos em investigação e experimentação efetuadas com detidos sob custódia americana.

Como exemplo, em seu relatório, a ONG explica que os médicos observaram que a simulação de afogamento, se repetida muitas vezes com água simples poderia causar pneumonia. Eles recomendaram, portanto, que fosse utilizada uma solução salina.

A diferença entre a simulação de afogamento praticada no início, a partir de experiências pontuais com soldados voluntários, e depois da intervenção dos médicos "indica que os médicos da CIA participaram da modificação da técnica", afirma a ONG.

"Esses atos (...) violariam os padrões da ética médica, assim como da lei nacional e internacional", explica o documento, acrescentando que "em alguns casos, essas práticas podem constituir crimes de guerra e contra os direitos humanos".

Segundo o relatório, os Estados Unidos elaboraram, após os atentados de 11 de setembro de 2001 contra Washington e Nova York, uma lista de "técnicas de interrogatório aprimoradas", que depois foram amparadas legamente pelo departamento de Justiça, algumas delas até o final da gestão de George W. Bush, em janeiro de 2009.

23/06/2010

Compartilho - Livraria Cultura - Jurisdição do Real

Caros colegas. Fiquei contente pacas. Hoje soube que meu livro - Jurisdição do Real - está em segundo lugar entre os livros digitais mais vendidos da Livraria Cultura. CONFIRA O mais vendido é o Chico Buarque. Passei o Saramago.
Um grande abraço

22/06/2010

STF e Reserva do Possível!!!

Direito à Saúde - Reserva do Possível - "Escolhas Trágicas" - Omissões Inconstitucionais - Políticas Públicas - Princípio que Veda o Retrocesso Social (Transcrições)


(v. Informativo 579)


STA 175-AgR/CE*


RELATOR: MINISTRO PRESIDENTE


V

O T O
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO:

O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à saúde não podem ser menosprezados pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário.
O objetivo

perseguido pelo legislador constituinte, em tema de proteção ao direito à saúde, traduz meta cuja não-realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público, ainda mais se se tiver presente que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser (necessariamente) implementado mediante adoção de políticas públicas conseqüentes e responsáveis.
Ao julgar a ADPF 45/DF

, Rel. Min. CELSO DE MELLO, proferi decisão assim ementada (Informativo/STF nº 345/2004):

"ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO)."


Salientei

, então, em referida decisão, que o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais que se identificam - enquanto direitos de segunda geração - com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 199/1219-1220, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
É que

, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional, motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas ao Poder Público, consoante já advertiu, em tema de inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal:

"DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.

- O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um ‘facere’ (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.

- Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse ‘non facere’ ou ‘non praestare’, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.

...................................................

- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.

"
(RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)


É certo

- tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 345/2004) - que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Impende assinalar

, contudo, que a incumbência de fazer implementar políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente, ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.
Mais

do que nunca, Senhor Presidente, é preciso enfatizar que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa.
Isso significa

que a intervenção jurisdicional, justificada pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à saúde, tornar-se-á plenamente legítima (sem qualquer ofensa, portanto, ao postulado da separação de poderes), sempre que se impuser, nesse processo de ponderação de interesses e de valores em conflito, a necessidade de fazer prevalecer a decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e de proteção ao direito à saúde.
Cabe referir

, neste ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, a advertência de LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN, ilustre Procuradora Regional da República ("Políticas Públicas – A Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público", p. 59, 95 e 97, 2000, Max Limonad), cujo magistério, a propósito da limitada discricionariedade governamental em tema de concretização das políticas públicas constitucionais, corretamente assinala:

"Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas políticas, o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal; a sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem de discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer.

...................................................

Como demonstrado no item anterior, o administrador público está vinculado à Constituição e às normas infraconstitucionais para a implementação das políticas públicas relativas à ordem social constitucional, ou seja, própria à finalidade da mesma: o bem-estar e a justiça social.

...................................................

Conclui-se

, portanto, que o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração.
...................................................

As dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucional.

" (grifei)

Não deixo de conferir

, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à "reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999, Norton, New York; ANA PAULA DE BARCELLOS, "A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais", p. 245/246, 2002, Renovar), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.
Não se ignora

que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito

, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele - a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004).
Cumpre advertir

, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" — ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível — não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
Tratando-se

de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à saúde — que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 196) — tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial.
O caso

ora em exame, Senhor Presidente, põe em evidência o altíssimo relevo jurídico-social que assume, em nosso ordenamento positivo, o direito à saúde, especialmente em face do mandamento inscrito no art. 196 da Constituição da República, que assim dispõe:

"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

(grifei)

Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa organização federativa.

A impostergabilidade

da efetivação desse dever constitucional desautoriza o acolhimento do pleito recursal que a instituição governamental interessada deduziu na presente causa.
Tal como pude enfatizar

em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde - que se qualifica como direito subjetivo inalienável a todos assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, "caput", e art. 196) - ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo, uma vez configurado esse dilema, que razões de ordem ético-jurídica impõem, ao julgador, uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.
Essa relação dilemática

, que se instaura na presente causa, conduz os Juízes deste Supremo Tribunal a proferir decisão que se projeta no contexto das denominadas "escolhas trágicas" (GUIDO CALABRESI e PHILIP BOBBITT, "Tragic Choices", 1978, W. W. Norton & Company), que nada mais exprimem senão o estado de tensão dialética entre a necessidade estatal de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, sempre tão dramaticamente escassos, de outro.
Mas

, como precedentemente acentuado, a missão institucional desta Suprema Corte, como guardiã da superioridade da Constituição da República, impõe, aos seus Juízes, o compromisso de fazer prevalecer os direitos fundamentais da pessoa, dentre os quais avultam, por sua inegável precedência, o direito à vida e o direito à saúde.
Cumpre não perder de perspectiva

, por isso mesmo, que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível, assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.
O caráter programático

da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Comentários à Constituição de 1988", vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense Universitária) - não pode convertê-la em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
Nesse contexto

, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as ações e prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas — preventivas e de recuperação —, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República, tal como este Supremo Tribunal tem reiteradamente reconhecido:

"O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.

- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.

- O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.


A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE

.
- O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode convertê-la em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.


DISTRIBUIÇÃO

GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR.
- O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, ‘caput’, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF."

(RE 393.175-AgR/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO)


O

sentido de fundamentalidade do direito à saúde — que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas — impõe, ao Poder Público, um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.
É por tal razão

, Senhor Presidente, que tenho proferido inúmeras decisões, nesta Suprema Corte, em plena harmonia com esse entendimento, sempre a fazer prevalecer, nos casos por mim julgados (RTJ 175/1212-1213, v.g.), o direito fundamental à vida, de que o direito à saúde representa um indissociável consectário, como o atestam os seguintes julgamentos de que fui Relator:

- RE 556.886/ES (adenocarcinoma de próstata)

- AI 457.544/RS (artrite reumatóide)

- AI 583.067/RS (cardiopatia isquêmica grave)

- RE 393.175-AgR/RS (esquizofrenia paranóide)

- RE 198.265/RS (fenilcetonúria)

- AI 570.455/RS (glaucoma crônico)

- AI 635.475/PR (hepatite "c")

- AI 634.282/PR (hiperprolactinemia)

- RE 273.834-AgR/RS (HIV)

- RE 271.286-AgR/RS (HIV)

- RE 556.288/ES (insuficiência coronariana)

- AI 620.393/MG (leucemia mielóide crônica)

- AI 676.926/RJ (lipoparatireoidismo)

- AI 468.961/MG (lúpus eritematoso sistêmico)

- RE 568.073/RN (melanoma com acometimento cerebral)

- RE 523.725/ES (migatia mitocondrial)

- AI 547.758/RS (neoplasia maligna cerebral)

- AI 626.570/RS (neoplasia maligna cerebral)

- RE 557.548/MG (osteomielite crônica)

- AI 452.312/RS (paralisia cerebral)

- AI 645.736/RS (processo expansivo intracraniano)

- RE 248.304/RS (status marmóreo)

- AI 647.296/SC (transplante renal)

- RE 556.164/ES (transplante renal)

- RE 569.289/ES (transplante renal)


Vê-se

, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais — que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Poder Constituinte e Poder Popular", p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) —, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculadas à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição.
Não basta

, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito — como o direito à saúde — se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.
Cumpre

assinalar que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.
Tenho para mim

, desse modo, presente tal contexto, que o Estado não poderá demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhe foi outorgado pelo art. 196, da Constituição, e que representa - como anteriormente já acentuado - fator de limitação da discricionariedade político-administrativa do Poder Público, cujas opções, tratando-se de proteção à saúde, não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
Entendo

, por isso mesmo, que se revela inacolhível a pretensão recursal deduzida pela entidade estatal interessada, notadamente em face da jurisprudência que se formou, no Supremo Tribunal Federal, sobre a questão ora em análise.
Nem se atribua

, indevidamente, ao Judiciário, no contexto em exame, uma (inexistente) intrusão em esfera reservada aos demais Poderes da República.
É que

, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário (de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito), inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada por pura, simples e conveniente omissão dos poderes públicos.
Na realidade

, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivam restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão institucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República.
A colmatação

de omissões inconstitucionais, realizada em sede jurisdicional, notadamente quando emanada desta Corte Suprema, torna-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.
As situações configuradoras de omissão inconstitucional

— ainda que se cuide de omissão parcial derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política — refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se como uma das causas geradoras dos processos informais de mudança da Constituição, tal como o revela autorizado magistério doutrinário (ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, "Processos Informais de Mudança da Constituição", p. 230/232, item n. 5, 1986, Max Limonad; JORGE MIRANDA, "Manual de Direito Constitucional", tomo II/406 e 409, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, "Fundamentos da Constituição", p. 46, item n. 2.3.4, 1991, Coimbra Editora).
O fato inquestionável é um só

: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República.
Nada mais

nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.
A percepção

da gravidade e das conseqüências lesivas derivadas do gesto infiel do Poder Público que transgride, por omissão ou por insatisfatória concretização, os encargos de que se tornou depositário, por efeito de expressa determinação constitucional, foi revelada, entre nós, já no período monárquico, em lúcido magistério, por PIMENTA BUENO ("Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império", p. 45, reedição do Ministério da Justiça, 1958) e reafirmada por eminentes autores contemporâneos em lições que acentuam o desvalor jurídico do comportamento estatal omissivo (JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Aplicabilidade das Normas Constitucionais", p. 226, item n. 4, 3ª ed., 1998, Malheiros; ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, "Processos Informais de Mudança da Constituição", p. 217/218, 1986, Max Limonad; PONTES DE MIRANDA, "Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969", tomo I/15-16, 2ª ed., 1970, RT, v.g.).
O desprestígio da Constituição

— por inércia de órgãos meramente constituídos — representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, pois reflete inaceitável desprezo, por parte das instituições governamentais, da autoridade suprema da Lei Fundamental do Estado.
Essa constatação

, feita por KARL LOEWENSTEIN ("Teoria de la Constitución", p. 222, 1983, Ariel, Barcelona), coloca em pauta o fenômeno da erosão da consciência constitucional, motivado pela instauração, no âmbito do Estado, de um preocupante processo de desvalorização funcional da Constituição escrita, como já ressaltado, pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos julgamentos, como resulta evidente da seguinte decisão consubstanciada em acórdão assim ementado:

"(...) DESCUMPRIMENTO DE IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL LEGIFERANTE E DESVALORIZAÇÃO FUNCIONAL DA CONSTITUIÇÃO ESCRITA.

- O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de legislar, imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório - infringe, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional (ADI 1.484-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

- A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.


DIREITO SUBJETIVO À LEGISLAÇÃO E DEVER CONSTITUCIONAL DE LEGISLAR

: A NECESSÁRIA EXISTÊNCIA DO PERTINENTE NEXO DE CAUSALIDADE.
- O direito à legislação só pode ser invocado pelo interessado, quando também existir - simultaneamente imposta pelo próprio texto constitucional - a previsão do dever estatal de emanar normas legais. Isso significa que o direito individual à atividade legislativa do Estado apenas se evidenciará naquelas estritas hipóteses em que o desempenho da função de legislar refletir, por efeito de exclusiva determinação constitucional, uma obrigação jurídica indeclinável imposta ao Poder Público. (...)."

(RTJ 183/818-819, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)


Em tema de implementação

de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente nas áreas de educação infantil (RTJ 199/1219-1220) e de saúde pública (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213), a Corte Suprema brasileira tem proferido decisões que neutralizam os efeitos nocivos, lesivos e perversos resultantes da inatividade governamental, em situações nas quais a omissão do Poder Público representava um inaceitável insulto a direitos básicos assegurados pela própria Constituição da República, mas cujo exercício estava sendo inviabilizado por contumaz (e irresponsável) inércia do aparelho estatal.
O Supremo Tribunal Federal

, em referidos julgamentos, colmatou a omissão governamental e conferiu real efetividade a direitos essenciais, dando-lhes concreção e, desse modo, viabilizando o acesso das pessoas à plena fruição de direitos fundamentais, cuja realização prática lhes estava sendo negada, injustamente, por arbitrária abstenção do Poder Público.
Para além

de todas as considerações que venho de fazer, há, ainda, Senhor Presidente, um outro parâmetro constitucional que merece ser invocado.
Refiro-me

ao princípio da proibição do retrocesso, que, em tema de direitos fundamentais de caráter social, impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, "Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais", 1ª ed./2ª tir., p. 127/128, 2002, Brasília Jurídica; J. J. GOMES CANOTILHO, "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", p. 320/322, item n. 03, 1998, Almedina; ANDREAS JOACHIM KRELL, "Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha", p. 40, 2002, 2002, Sergio Antonio Fabris Editor, INGO W. SARLET, "Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988", "in" Revista Público, p. 99, n. 12, 2001).
Na realidade

, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional (como o direito à saúde), impedindo, em conseqüência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses — de todo inocorrente na espécie — em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais.
Lapidar

, sob todos os aspectos, o magistério de J. J. GOMES CANOTILHO, cuja lição, a propósito do tema, estimula as seguintes reflexões ("Direito Constitucional e Teoria da Constituição", 1998, Almedina, p. 320/321, item n. 3):

"O princípio da democracia econômica e social aponta para a proibição de retrocesso social.

A

idéia aqui expressa também tem sido designada como proibição de ‘contra-revolução social’ ou da ‘evolução reaccionária’. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A ‘proibição de retrocesso social’ nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o principio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. O reconhecimento desta proteção de direitos prestacionais de propriedade, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação no núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente aniquiladoras da chamada justiça social. Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que extinga o direito a subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionadamente o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à reforma (...). De qualquer modo, mesmo que se afirme sem reservas a liberdade de conformação do legislador nas leis sociais, as eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei da segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura a simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado." (grifei)

Bem por isso

, o Tribunal Constitucional português (Acórdão nº 39/84), ao invocar a cláusula da proibição do retrocesso, reconheceu a inconstitucionalidade de ato estatal que revogara garantias já conquistadas em tema de saúde pública, vindo a proferir decisão assim resumida pelo ilustre Relator da causa, Conselheiro VITAL MOREIRA, em douto voto de que extraio o seguinte fragmento ("Acórdãos do Tribunal Constitucional", vol. 3/95-131, 117-118, 1984, Imprensa Nacional, Lisboa):

"Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser objecto de censura constitucional em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por acção.

Se

a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa - a criação de uma certa instituição, uma determinada alteração na ordem jurídica -, então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a protecção directa da Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não pode descumprir o que cumpriu, não pode tornar a colocar-se na situação de devedor. (...) Se o fizesse, incorreria em violação positiva (...) da Constituição.
...................................................

Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.

Quer isto dizer que a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixar de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social.

Este enfoque dos direitos sociais faz hoje parte integrante da concepção deles a teoria constitucional, mesmo lá onde é escasso o elenco constitucional de direitos sociais e onde, portanto, eles têm de ser extraídos de cláusulas gerais, como a cláusula do ‘Estado social’." (grifei)


Concluo

o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, devo observar que a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos da pessoa (como o direito à saúde), a incapacidade de gerir os recursos públicos, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a proteção à saúde, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo Poder Público, da norma inscrita no art. 196 da Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental e que é, no contexto ora examinado, o direito à saúde.
Sendo assim

, em face das razões expostas, e considerando, sobretudo, Senhor Presidente, o magnífico voto proferido por Vossa Excelência, nego provimento ao recurso de agravo interposto pela União Federal.

É o meu voto

Furadeira - Lógica Policial

Cuidado com as furadeiras. A lógica da morte.

Dworkin - Simpósio - Dica de MArcelo Catoni

Boston University Law Review 90:2 (April 2010)
via Concurring Opinions de Boston University Law Review em 31/05/10

Boston University Law Review, Issue 90:2 (April 2010)

SYMPOSIUM

Justice for Hedgehogs: A Conference on Ronald Dworkin’s Forthcoming Book

Editors’ Foreword

KEYNOTE ADDRESS

Justice for Hedgehogs
Ronald Dworkin, Page 469

PANEL I: TRUTH AND METAETHICS

The Possibility of Metaethics
Russ Shafer-Landau, Page 479

Moral Skepticism for Foxes
Daniel Star, Page 497

Dworkin on External Skepticism
Michael Smith, Page 509

A Historian’s Comment on the Metaethics Panel at Justice for Hedgehogs: A Conference on Ronald Dworkin’s Forthcoming Book
Aaron Garrett, Page 521

PANEL II: INTERPRETATION

Two Takes on Truth in Normative Discourse
Benjamin C. Zipursky, Page 525

Is Moral Reasoning Conceptual Interpretation?
Richard H. Fallon, Jr., Page 535

The Unity of Interpretation
Lawrence B. Solum, Page 551

Material Rights, Underenforcement, and the Adjudication Thesis
Lawrence Sager, Page 579

Moral Limits of Dworkin’s Theory of Law and Legal Interpretation
David Lyons, Page 595

PANEL III: ETHICS AND FREE WILL

Varieties of Responsibility
T.M. Scanlon, Page 603

Responsibility and Free Will in Dworkin’s Justice for Hedgehogs
Robert Kane, Page 611

Mental Disorders and the “System of Judgmental Responsibility”
Anita L. Allen, Page 621

Dworkin’s Living Well and the Well-Being Revolution
Christine Jolls, Page 641

Dworkin on Ethics and Freewill: Comments and Questions
Amartya Sen, Page 657

PANEL IV: MORALITY: AID, HARM, AND OBLIGATION

Dignity and Global Duty
Kwame Anthony Appiah, Page 661

Liberal Responsibility: A Comment on Justice for Hedgehogs
John C.P. Goldberg, Page 677

What Ethical Responsibility Cannot Justify: A Discussion of Ronald Dworkin’s Justice for Hedgehogs
F.M. Kamm, Page 691

Dworkin’s Two Principles of Dignity: An Unsatisfactory Nonconsequentialist Account of Interpersonal Moral Duties
Kenneth W. Simons, Page 715

State Legitimacy and Political Obligation in Justice for Hedgehogs: The Radical Potential of Dworkinian Dignity
Susanne Sreedhar & Candice Delmas, Page 737

PANEL V: POLITICS AND JUSTICE I

In Hedgehog Solidarity
C. Edwin Baker, Page 759

Rights, Harms, and Duties: A Response to Justice for Hedgehogs
Robin West, Page 819

Taking Responsibilities as Well as Rights Seriously
James E. Fleming, Page 839

Dworkin’s “One-System” Conception of Law and Morality
Hugh Baxter, Page 857

Justice and Elegance for Hedgehogs – In Life, Law, and Literature
Linda C. McClain, Page 863

In Favor of Foxes: Pluralism as Fact and Aid to the Pursuit of Justice
Martha Minow & Joseph William Singer, Page 903

PANEL VI: POLITICS AND JUSTICE II

Equality of Resources, Market Luck, and the Justification of Adjusted Market Distributions
Samuel Freeman, Page 921

Foxy Freedom?
Frank I. Michelman, Page 949

Human Rights for Hedgehogs?: Global Value Pluralism, International Law, and Some Reservations of the Fox
Robert D. Sloane, Page 975

Procedure, Participation, Rights
Robert G. Bone, Page 1011

Against Majoritarianism: Democratic Values and Institutional Design
Stephen Macedo, Page 1029

A Majority in the Lifeboat
Jeremy Waldron, Page 1043

RESPONSE

Response
Ronald Dworkin, Page 1059



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VEJA

21/06/2010

Saramago: um tributo citando ele

prefácio do livro "Terra" escrito por José Saramago

É difícil defender
só com palavras a vida
(ainda mais quando ela é
esta que vê, severina).
João Cabral de Melo Neto

Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a idéia de viajar um dia a estas paragens para certificar-se de que as pessoas que por aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o castigo que por ele foi aplicado, no começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à nossa primeira mãe, os quais, pela simples e honesta curiosidade de quererem saber a razão por que tinham sido feitos, foram sentenciados, ela, a parir com esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família com o suor do seu rosto, tendo como destino final a mesma terra donde, por um capricho divino, haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó tornará a ser. Dos dois criminosos, digamo-lo já, quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que depois dela vieram, pois tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram também de suar e sofrer trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o mesmo ou mais do que eles, que a vida, durante muitos milénios, não estava para a senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto e depois não ter Deus em quem mandar.

Se, porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e conselhos, persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida acabaria por reconhecer como, afinal, é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da humanidade, tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imperdoável, de apetrechar as pessoas com glândulas sudoríparas, para depois lhes recusar o trabalho que as faria funcionar - as glândulas e as pessoas. Ao pé disto, cabe perguntar se não teria merecido mais prémio que castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro pai a provarem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade, digam o que disserem autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e militares, é que, propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam, por isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.

Envergonhar-se e arrepender-se dos erros cometidos é o que se espera de qualquer pessoa bem nascida e de sólida formação moral, e Deus, tendo indiscutivelmente nascido de Si mesmo, está claro que nasceu do melhor que havia no seu tempo. Por estas razões, as de origem e as adquiridas, após ter visto e percebido o que aqui se passa, não teve mais remédio que clamar mea culpa, mea maxima culpa, e reconhecer a excessiva dimensão dos enganos em que tinha caído. É certo que, a seu crédito, e para que isto não seja só um contínuo dizer mal do Criador, subsiste o facto irrespondível de que, quando Deus se decidiu a expulsar do paraíso terreal, por desobediência, o nosso primeiro pai e a nossa primeira mãe, eles, apesar da imprudente falta, iriam ter ao seu dispor a terra toda, para nela suarem e trabalharem à vontade. Contudo, e por desgraça, um outro erro nas previsões divinas não demoraria a manifestar-se, e esse muito mais grave do que tudo quanto até aí havia acontecido.

Foi o caso que estando já a terra assaz povoada de filhos, filhos de filhos e filhos de netos da nossa primeira mãe e do nosso primeiro pai, uns quantos desses, esquecidos de que sendo a morte de todos, a vida também o deveria ser, puseram-se a traçar uns riscos no chão, a espetar umas estacas, a levantar uns muros de pedra, depois do que anunciaram que, a partir desse momento, estava proibida (palavra nova) a entrada nos terrenos que assim ficavam delimitados, sob pena de um castigo, que segundo os tempos e os costumes, poderia vir a ser de morte, ou de prisão, ou de multa, ou novamente de morte. Sem que até hoje se tivesse sabido porquê, e não falta quem afirme que disto não poderão ser atiradas as responsabilidades para as costas de Deus, aqueles nossos antigos parentes que por ali andavam, tendo presenciado a espoliação e escutado o inaudito aviso, não só não protestaram contra o abuso com que fora tornado particular o que até então havia sido de todos, como acreditaram que era essa a irrefragável ordem natural das coisas de que se tinha começado a falar por aquelas alturas. Diziam eles que se o cordeiro veio ao mundo para ser comido pelo lobo, conforme se podia concluir da simples verificação dos factos da vida pastoril, então é porque a natureza quer que haja servos e haja senhores, que estes mandem e aqueles obedeçam, e que tudo quanto assim não for será chamado subversão.

Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito.” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece." E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito.” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.” Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas.

No dia 17 de Abril de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser sarcástico o destino de certas palavras...), 155 soldados da polícia militarizada, armados de espingardas e metralhadoras, abriram fogo contra uma manifestação de camponeses que bloqueavam a estrada em acção de protesto pelo atraso dos procedimentos legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma suposta reforma agrária na qual, entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer sobrevivência) dos trabalhadores do campo. Naquele dia, no chão de Eldorado dos Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas dezenas de pessoas feridas. Passados três meses sobre este sangrento acontecimento, a polícia do estado do Pará, arvorando-se a si mesma em juiz numa causa em que, obviamente, só poderia ser a parte acusada, veio a público declarar inocentes de qualquer culpa os seus 155 soldados, alegando que tinham agido em legítima defesa, e, como se isto lhe parecesse pouco, reclamou processamento judicial contra três dos camponeses, por desacato, lesões e detenção ilegal de armas. O arsenal bélico dos manifestantes era constituído por três pistolas, pedras e instrumentos de lavoura mais ou menos manejáveis. Demasiado sabemos que, muito antes da invenção das primeiras armas de fogo, já as pedras, as foices e os chuços haviam sido considerados ilegais nas mãos daqueles que, obrigados pela necessidade a reclamar pão para comer e terra para trabalhar, encontraram pela frente a polícia militarizada do tempo, armada de espadas, lanças e alabardas. Ao contrário do que geralmente se pretende fazer acreditar, não há nada mais fácil de compreender que a história do mundo, que muita gente ilustrada ainda teima em afirmar ser complicada demais para o entendimento rude do povo.

Pelas três horas da madrugada do dia 9 de Agosto de 1995, em Corumbiara, no estado de Rondônia, 600 famílias de camponeses sem terra, que se encontravam acampadas na Fazenda Santa Elina, foram atacadas por tropas da polícia militarizada. Durante o cerco, que durou todo o resto da noite, os camponeses resistiram com espingardas de caça. Quando amanheceu, a polícia, fardada e encapuçada, de cara pintada de preto, e com o apoio de grupos de assassinos profissionais a soldo de um latifundiário da região, invadiu o acampamento. varrendo-o a tiro, derrubando e incendiando as barracas onde os sem-terra viviam. Foram mortos 10 camponeses, entre eles uma menina de 7 anos, atingida pelas costas quando fugia. Dois polícias morreram também na luta.

A superfície do Brasil, incluindo lagos, rios e montanhas, é de 850 milhões de hectares. Mais ou menos metade desta superfície, uns 400 milhões de hectares, é geralmente considerada apropriada ao uso e ao desenvolvimento agrícolas. Ora, actualmente, apenas 60 milhões desses hectares estão a ser utilizados na cultura regular de grãos. O restante, salvo as áreas que têm vindo a ser ocupadas por explorações de pecuária extensiva (que, ao contrário do que um primeiro e apressado exame possa levar a pensar, significam, na realidade, um aproveitamento insuficiente da terra), encontra-se em estado de improdutividade, de abandono. sem fruto.

Povoando dramaticamente esta paisagem e esta realidade social e económica, vagando entre o sonho e o desespero, existem 4 800 000 famílias de rurais sem terras. A terra está ali, diante dos olhos e dos braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”, e encontraram semelhantes seus bastante ingénuos para acreditar que era suficiente tê-lo dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para matar. Os 19 mortos de Eldorado dos Carajás e os 10 de Corumbiara foram apenas a última gota de sangue do longo calvário que tem sido a perseguição sofrida pelos trabalhadores do campo, uma perseguição contínua, sistemática, desapiedada, que, só entre 1964 e 1995, causou 1 635 vítimas mortais, cobrindo de luto a miséria dos camponeses de todos os estados do Brasil. com mais evidência para Bahia, Maranhão. Mato Grosso, Pará e Pernambuco, que contam, só eles, mais de mil assassinados.

E a Reforma Agrária, a reforma da terra brasileira aproveitável, em laboriosa e acidentada gestação, alternando as esperanças e os desânimos, desde que a Constituição de 1946, na seqüência do movimento de redemocratização que varreu o Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, acolheu o preceito do interesse social como fundamento para a desapropriação de terras? Em que ponto se encontra hoje essa maravilha humanitária que haveria de assombrar o mundo, essa obra de taumaturgos tantas vezes prometida, essa bandeira de eleições, essa negaça de votos, esse engano de desesperados? Sem ir mais longe que as quatro últimas presidências da República, será suficiente relembrar que o presidente José Sarney prometeu assentar 1.400.000 famílias de trabalhadores rurais e que, decorridos os cinco anos do seu mandato, nem sequer 140.000 tinham sido instaladas; será suficiente recordar que o presidente Fernando Collor de Mello fez a promessa de assentar 500.000 famílias, e nem uma só o foi; será suficiente lembrar que o presidente Itamar Franco garantiu que faria assentar 100.000 famílias, e só ficou por 20.000; será suficiente dizer, enfim, que o actual presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, estabeleceu que a Reforma Agrária irá contemplar 280.000 famílias em quatro anos, o que significará, se tão modesto objectivo for cumprido e o mesmo programa se repetir no futuro, que irão ser necessários, segundo uma operação aritmética elementar, setenta anos para assentar os quase 5.000.000 de famílias de trabalhadores rurais que precisam de terra e não a têm, terra que para eles é condição de vida, vida que já não poderá esperar mais. Entretanto, a polícia absolve-se a si mesma e condena aqueles a quem assassinou.

O Cristo do Corcovado desapareceu, levou-o Deus quando se retirou para a eternidade, porque não tinha servido de nada pô-lo ali. Agora, no lugar dele, fala-se em colocar quatro enormes painéis virados às quatro direcções do Brasil e do mundo, e todos, em grandes letras, dizendo o mesmo: UM DIREITO QUE RESPEITE, UMA JUSTIÇA QUE CUMPRA.

JOSÉ SARAMAGO

1997

Mega Big Brother

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