Rosivaldo Toscano.
A ÉTICA SELETIVA NO JULGAMENTO DA AP-470
Há meses que o chamado julgamento do Mensalão ocupa grande espaço na mídia. Não faltaram clamores em favor da punição dos agora sentenciados. Seria “a grande virada”, “o momento mágico”, “o milagre” da luta contra a corrupção e a impunidade na política. Discurso, aliás, amplamente utilizado no horário eleitoral pelos opositores ao partido em que a maioria dos políticos acusados era filiada. Um semanário de direita chegou a estampar a capa com uma foto com explosões de fogos de artifício. Uma ilusória festa, como se a história do Brasil fosse dividida em a.M (antes do Mensalão) e d.M (depois do Mensalão), no lembrar crítico de Lenio Streck (vide aqui).
Porém, as megacorporações informativas optaram por mostrar somente a ponta do iceberg, afinal, o que está abaixo da linha d'água denuncia nossa histórica estrutura aristocrática, formada pelos estamentos que ocupam o poder e se valem da esfera pública para benefício dos seus interesses privados nem sempre confessáveis. Assim, a pirotecnia midiática é a erupção de um vulcão para parir uma reles pedra, um típico caso de “ética seletiva” ou “amnésia estratégica”. Há uma interdição do discurso, já que se passa ao largo da discussão da histórica fonte da corrupção na política brasileira, capitaneada a) pelo foro por prerrogativa de função dos detentores de mandato eletivo mais graduados e b) pelas doações privadas milionárias por parte de corporações.
Quem conhece um pouco de história do Brasil sabe que o moralismo oportunista e seletivo criado e repercutido pela mídia hegemônica não consegue esconder o cinismo ao criar uma “realidade”: a de que a corrupção na política teria surgido em 2003 e por conta de uma espécie de atavismo de apenas uma determinada agremiação política. Alguns representantes políticos da moralidade mais hipócrita, que não resistiriam a cinco minutos de uma fiscalização no seu Imposto de Renda, como novamente costuma dizer Lenio Streck (vide aqui),[1]aproveitaram a onda para bradar pela volta dos “bons valores” e da “ética”.
A MÍDIA E O MANIQUEÍSMO NO STF
A estratégia da grande mídia sobre os ministros da mais alta Corte da República utilizou a criação de rótulos, para fácil (e raso) entendimento/manipulação da classe média: de um lado, o super-herói, o protetor da sociedade. Do outro, o defensor da corrupção. Paradoxalmente, os mesmos juristas alguns meses antes estavam em posições diametralmente opostas: um seria o relapso e irascível que viajara para um tratamento de saúde e fora visto em um bar.[2] O outro, o super-homem da lei da ficha limpa. Assim, o que há de mais comum em um órgão colegiado – dois magistrados tendo divergências jurídicas – ganharia um tratamento maniqueísta e reducionista. Claro, os veículos de comunicação em massa escolhem o lado que quiserem para apresentarem como mocinho ou bandido.
LIBERDADE DE IMPRENSA OU DE OLIGOPÓLIO?
A mesma mídia corporativa, por sinal, não é nem um pouco democrática. Enquanto brada o mantra da “liberdade de imprensa”, vemos a concentração dos veículos de comunicação social nas mãos de poucos. A liberdade, para eles, é a de manter o oligopólio, já que tais corporações de maior alcance fazem parte de conglomerados que chegam a ter 74 veículos. As dez maiores possuem, juntas, nada menos que 327, segundo o site “Os Donos da Mídia” (vide aqui). Além disso, no Brasil, segundo o mesmo site (aqui), 271 políticos são sócios ou diretores de 324 veículos de comunicação. Sem falar dos casos em que há mando ou influência indireta, através de familiares ou amigos. A divisão de veículos sob influência de políticos, por partido, seria a seguinte, segundo o referido site: 1º) DEM, com 58 veículos; 2º) PMDB, com 48; 3º) PSDB, com 43; 4º) PP, com 23; 5º) PTB e PSB, com 16 cada; 7º) PPS, com 14; 8º) PDT, com 13; 9º) PL, com 12 e 10º) PT, com 10.
Cabe atentar que a Constituição da República determina que os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio (art. 220§ 5º). Outrossim, põe-se em suspeita o cumprimento do art. 54, II, a, da Constituição Federal, no sentido de que políticos não podem ser proprietários, controladores ou diretores de qualquer empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoas jurídicas de direito público, ou nela exercer função remunerada.
O FORO “PRIVILEGIADO”
Destacamos, primeiramente, a ineficácia do “foro privilegiado”. Para que se tenha uma ideia, à parte a ação penal nº 470, tramitam 170 outras ações penais originárias no STF, sem falar nos 471 inquéritos, sendo 29 ações penais e 42 inquéritos anteriores à própria AP-470.[3] Há que se lembrar que nessa ação penal serão mais de sessenta sessões somente para julgá-la, o que termina por revelar a inviabilidade de órgãos recursais para conhecer e julgar tais ações penais. A pergunta é como serão julgadas as outras 170, sem falar nas potenciais novas ações penais oriundas dos já referidos 471 inquéritos hoje tramitando? Isso sem contar o ferimento do princípio da igualdade, pois se trata de um resquício do tratamento diferenciado dado aos “fidalgos” das Ordenações.
Até hoje, passados 200 anos do STF, não se ouve falar de um político com foro por prerrogativa de função que chegou a integrar, efetivamente, o sistema carcerário nacional. Sem entrar no mérito da questão (se culpados ou não, com ou sem o errôneo uso de Malatesta e da teoria do Domínio do Fato), diante do nosso histórico e da própria delonga do julgamento da AP-470, o cenário mais provável é o de que estamos assistindo a uma exceção, a um exemplo isolado. Não há como ser diferente sem que ou o STF abdique de jugar outros feitos e passe anos somente se dedicando a julgar as ações penais já hoje existentes ou advenha uma Emenda Constitucional que extinga o foro privilegiado. Enquanto isso, meio milhão de desdentados superlotam celas infectas e continuaremos sendo o 16º país mais desigual do mundo[4] – e a centenária impunidade da política do “andar de cima” continuará sendo o suprassumo disso.
AS CORPORAÇÕES E A DOAÇÃO A CAMPANHAS POLÍTICAS
A segunda questão diz respeito à velha lógica que preside o sistema eleitoral brasileiro. Não se tocou no assunto na mídia hegemônica. Afinal, ajuda a manter os estamentos e suas dinastias eleitorais. O caudilhismo se nutre da captação ilegal de votos, pelo “toma-lá-dá-cá” no varejo. De onde vem o dinheiro? As doações empresariais são no atacado... Somadas, chegam a cifras bilionárias, na esmagadora maioria das vezes, oriundas de grandes corporações. Mas não é factível que uma corporação – que é um ente voltado para a geração de lucros aos seus dirigentes e acionistas – de repente, em um ato de ingênua bondade, resolva doar a fundo perdido milhões e milhões de reais a candidatos. A conta não fecha. A porta não bate.
Mas, mesmo assim, o sistema se perpetua e a mídia, estranhamente, silencia. Ou seria um sintoma de que ela nunca é livre de seus próprios interesses? Mas quando a boca cala, o silêncio fala. Será correto, perguntamo-nos, chamar a entrega desses valores de doação? Poderíamos passar dias procurando em manuais de gestão privada a expressão “doação a fundo perdido”. Não encontraríamos porque não faz parte do vocabulário do mercado. Seria, então, mais correto se falar em doação ou em investimento? Empresa doa ou investe? Um pouco de pragmática nos ajudaria e entender melhor: alguém já viu alguma multinacional distribuindo seus lucros nas ruas? A conclusão que tiramos é a de que esse modelo de cifras milionárias nutre o vampirismo das dinastias políticas e gera corrupção cíclica. Afinal, não há corrompido sem corruptor e vice-e-versa. E a sociedade, claro, é quem paga por isso, já que não é factível que seja diferente. E nem é aceitável que fiquemos inertes.
A NOVA CARA DO VOTO CENSITÁRIO: A CAPTAÇÃO ILÍCITA DO SUFRÁGIO
Abolimos formalmente o voto censitário em 1891. Mas ele perdura na nossa realidade política até hoje por meio da captação ilícita de votos, cujos quantitativos não raras vezes advêm do que poderíamos eufemisticamente chamar de “doações não contabilizadas”. A máxima do “one man, one vote” é deturpada pelo “toma-lá-dá-cá” que permite ao poder econômico eleger e controlar a representação (que deveria ser) popular. Tudo vira um negócio. E o voto de muitos deixa de ser um direito para se tornar um ato de obediência.
CONCLUSÃO
Longe de ser crítico e propositivo, o tratamento dado nos meios de comunicação de massa ao julgamento do Mensalão está sendo de uma clara opção pela abordagem histérica e maniqueísta. Um desserviço à democracia, na medida em que mantém incólumes as estruturas estamentais e esse histórico modo de se fazer política, danoso ao interesse público e, consequentemente, à cidadania brasileira. Não por menos a representatividade da classe política brasileira é aristocrática, refletindo nossos escandalosos índices de desigualdade social. E levantamento feito pelo portal da internet G1 (Globo)[5] apontou que a atual composição das Assembleias Legislativas está, a cada legislatura, mais elitizada. Dados levantados na reportagem apontam para o fato de que o patrimônio médio dos 1.059 deputados estaduais e distritais eleitos em 2010 era de R$ 1,039 milhão. O número de milionários na atual legislatura cresceu 80%, passando de 114 para 205 parlamentares. E o número de eleitos que se declaram políticos por profissão passou de 160 para 487.
Sem uma reforma política que proíba o investimento privado de campanhas travestido de doação e sem a efetiva punição de detentores de mandato eletivo com foro privilegiado, a política se torna, apenas, um balcão de negócio. Dá-se uma carapaça de legitimidade às dinastias políticas e seus asseclas, que vampirizam o patrimônio público e se mantêm no poder por meio da deturpação do nosso sistema representativo. Reproduz-se uma prática espúria que macula a democracia e impede o cumprimento dos fundamentos e objetivos traçados na Constituição.
Portanto, sem o enfrentamento dessas questões o julgamento do Mensalão, suspeitamos, tornar-se-á a rotulação oportunista a um único partido de uma prática que é estrutural e histórica em nosso sistema político. Mais um placebo alucinante para aliviar a dor e a revolta das massas que sofrem em um país com tantas desigualdades, hipocrisias, cinismos e contradições.
*Rosivaldo Toscano Júnior é juiz de direito no RN e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
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[1] STRECK, Lenio. O sobrevoo da receita federal. Disponível em: http://www.leniostreck.com.br/ site/o-sul/ . Acessado em: 08 nov. 2012.
[2] Como se um magistrado não pudesse, como qualquer mortal, apesar da dor, descontrair um pouco.
[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Acervo processual. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/ cms/publicacaoBOInternet/ anexo/acervoquadros.pdf. Acessado em: 08 nov. 2012.
[4] CENTRAL Inteligence Acgency. The World Factbook: distribution of family income – gini index. Disponível em: < https://www.cia.gov/library/ publications/the-world- factbook/rankorder/2172rank. html. Acessado em 08 nov. 2012.
[5] REIS, Thiago; GUIMARÃES, Thiago. Assembleias Legislativas do país ficam mais ricas e mais escolarizadas. G1. Eleições 2010. Disponível em: http://g1.globo.com/ especiais/eleicoes-2010/ noticia/2010/10/assembleias- legislativas-do-pais-ficam- mais-ricas-e-mais- escolarizadas.html. Acessado em: 19 nov. 2012.
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