É no momento de fazer cumprir a pena que o Estado deve se revelar como exemplo de obediência aos direitos constitucionalmente garantidos, sob pena de ser ele o maior exemplo de violador daquilo que apregoa e deve defender com máxima firmeza
No Rio Grande do Norte, quando aplicada pena no regime semi-aberto ou fechado, o Juízo da condenação fica responsável pela captura do condenado. De outro tanto, a LEP determina que compete apenas ao Juízo da Execução Penal conhecer até mesmo da extinção da punibilidade e da detração. Assim, cria-se um regramento anômalo e paradoxal, pois o Juízo condenatório tem apenas o dever de prender, sem poder se pronunciar sobre qualquer benefício a que faça jus o condenado. O condenado ao regime semi-aberto ou fechado fica em uma espécie de limbo jurídico do momento da prisão pelo Juízo condenatório até o instante em que a documentação referente à execução penal seja autuada e registrada no Juízo da Execução Penal. E não raras vezes transcorrem vários dias. Mas o desamparo de quem cumpre pena aqui não se resume a isso.
A situação já foi até pior. Houve tempo, há não mais que três anos, em que se exigia o recolhimento do condenado à prisão até mesmo nos casos de regime aberto! O condenado ficava dias e mais dias preso em delegacia (em um regime pior do que o fechado) para depois cumprir a pena no regime devido. Um paradoxo difícil de entender. Tal prática claramente inconstitucional foi abolida, mas ainda há resquícios de um pragmatismo distanciado da Constituição.
Quando condeno alguém, o que geralmente ocorre em audiência, converso ele e tenho como regra estabelecer um prazo para que possa espontaneamente comparecer para dar início ao cumprimento da sanção criminal. Geralmente vinte dias, com folga o suficiente para o trânsito em julgado e a confecção dos documentos necessários para remessa à Vara da Execução Penal.
Pode até parecer insólito tal procedimento para o senso comum, mas mesmo em se tratando de condenação nos regimes semi-aberto e até mesmo fechado, há o comparecimento espontâneo do condenado na maior parte das vezes. O argumento que utilizo é simples: melhor vir aqui, discretamente, do que passar pelo constrangimento da polícia indo à sua casa, na frente dos parentes, amigos e vizinhos, para prendê-lo. E eles vem – saco de roupas e pertences pessoais à mão –, para dar início ao cumprimento da pena.
Como sabia que o apenado não poderia começar a cumprir a pena em regime mais gravoso, resolvi inovar, encaminhando diretamente o condenado para o estabelecimento prisional com atribuição para o cumprimento de pena em regime semi-aberto, ao invés de uma delegacia de polícia, como era de costume. Entretanto, tal prática durou pouco tempo, sob o argumento de que os Juízes condenatórios não poderiam ter ingerência sobre estabelecimentos penais.
Após alguns meses e outros tantos hábeas corpusimpetrados, chegou-se ao entendimento de que se criaria um espaço na colônia penal para recebimento dos apenados. Mas a prática de por inicialmente em um regime de reclusão continuou a mesma, mudando-se apenas o local.
Infelizmente, vários condenados com emprego certo que se apresentaram espontaneamente restaram desempregados depois, uma vez não se aceitava o imediato início do cumprimento da pena no regime devido. Ficavam dias retidos - seja na delegacia ou no pretenso espaço dedicado ao regime semi-aberto - até que o Órgão encarregado da custódia informasse à Vara das Execuções Penais e lá se desse o desembaraço burocrático.
Já assisti a choros dolorosos de condenados e familiares desiludidos por saberem que o emprego será perdido, pois geralmente as empresas não mais aceitam quando sabem da condenação, e uma ausência demorada ao trabalho termina por ocasionar ou a demissão ou a ciência de que faltou por estar preso, também gerando o desemprego.
Entendo que, em se tratando de comparecimento espontâneo, deveria ocorrer de imediato sua submissão ao regime devido, notadamente quando o acusado já traz comprovação de emprego. Por que manter preso por alguma burocracia um indivíduo que, espontaneamente, compareceu para cumprir a pena, demonstrando senso de responsabilidade?
Em recente conversa com o magistrado titular da Vara das Execuções Penais – a quem desde já louvo pela coragem de enfrentar a tão difícil e corajosa tarefa de conduzir uma Vara com milhares de processos –, ele reconheceu que mesmo os condenados ao regime semi-aberto com emprego certo e que se apresentam espontaneamente no estabelecimento prisional ainda passam até uma semana trancafiados, haja vista a necessidade de obtenção de documentos relativos aos seus antecedentes criminais. O receio seria o de soltar (isto é, deixá-lo sair durante o dia para trabalhar) um apenado que tivesse contra si um mandado de prisão por um outro processo.
Contudo, não me quedo à burocracia estatal. E por isso tecerei as considerações abaixo.
O paradigma reinante no imaginário do senso comum teórico dos juristas ainda é o anterior à Constituição de 1988. Cumprir à risca o que determina a Lei das Execuções Penais:
Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.
Segundo ela, primeiramente o condenado deve ser preso, mesmo se apresentado espontaneamente, para só depois se verificar qual o regime a ser aplicado e em qual estabelecimento prisional.
Esquece-se, contudo, que a LEP, embora um avanço para a época (1984), foi pensada e elaborada sob um regime ainda autoritário. A lei 7.210/84 é anterior à efetiva redemocratização do Brasil e foi assinada, inclusive, pelo último ditador do Brasil, o general João Batista Figueiredo. Era natural, assim, que ela não estivesse ao alcance dos ditames de uma Carta democrática como foi a de 1988, que viria à luz pouco mais de 4 anos depois.
Outrossim, o sistema de penas no Brasil de 1984 era fortemente encarcerador, um vez que somente as penas privativas de liberdade não superiores a um ano eram passíveis de substituição por restritivas de direito. Além disso, apenas o sursis, hoje em desuso, possibilitava a suspensão do cumprimento da pena em sanções até dois anos. Com o advento da lei 9.714/98, que ampliou as penas restritivas de direito ao quantum de até quatro anos de sanção, houve a modificação do paradigma legal, com vistas a compatibilizá-lo com a Constituição de 1988 e até mesmo com a lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais.
Alia-se a isso ao fenômeno da baixa constitucionalidade, advindo do paradigma positivista legalista, que ainda não rompeu com o apego à lei estritamente e em si considerada, e nem se deu conta de que sempre e, inexoravelmente, deve ser feito um juízo de validade do texto legal infraconstitucional perante a Constituição, na hora da criação da norma para o caso concreto. Isto quer dizer, no caso em concreto, saber se o art. 105 da LEP foi recepcionado pela Constituição de 1988.
Há uma razão de ordem prática que, aliada à baixa constitucionalidade, talvez explique a manutenção desse estado de coisas: imagina-se que é mais prático segregar o condenado numa delegacia ou em local separado do que dar início imediato ao cumprimento da pena diretamente no estabelecimento prisional adequado. Isso porque ele ficaria preso aguardando a expedição dos documentos necessários e da obtenção das certidões respectivas, relativas à existência de outras ordens prisão contra o condenado, para só então ter direito ao cumprimento no regime determinado, evitando, assim, algum retrabalho com recapturas.
Sob a ótica dos Direitos Fundamentais, porém, essa praticidade não pode ser exercida em prejuízo da dignidade da pessoa humana. Não por menos o artigo inaugural de nossa Constituição determina que a República Federativa do Brasil tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).
Não foram poucos os relatos de condenados que, inclusive, perderam o emprego em razão do tempo de indevido encarceramento em regime de reclusão. E todos nós sabemos os efeitos deletérios e desagregadores da perda de um ofício laboral. E também estamos cientes do efeito estigmatizador da pena e seus reflexos no fechamento de oportunidades de trabalho. E, claro, todos nós sabemos das consequências para a própria sociedade nos casos em que não há ressocialização dos apenados.
Na prática, agindo como age o senso comum teórico, sob o eufemismo de que seriam poucos dias recluso de modo inadequado (leia-se inconstitucional), fazemos, no caso de condenado com emprego certo, com que ele fique, primeiramente, em regime incompatível com o que ficou estabelecido na sentença, e o empurramos para a marginalidade, para o ciclo vicioso da reincidência, uma vez que o desagregamos da vida em sociedade – haja vista o alto índice de demissão entre eles.
Mesmo que por um dia, não devemos admitir violações a direitos fundamentais. E muito menos em nome da praticidade ou de uma pretensa segurança jurídica que, na prática, demonstra-se despicienda em razão da espontaneidade do comportamento do próprio apenado. Ora, se mesmo sabendo que vai ser preso ele vem cumprir a pena, qual motivo teria de deixar de comparecer nos poucos dias que mediarem o início da execução e eventual chegada de notícia sobre outro mandado de prisão ou mesmo condenação que apenas se torna hipoteticamente possível?
O mais grave é constatar a violação de tantos direitos fundamentais em razão da segregação em regime diverso, mesmo que por poucos dias. A saber:
VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA ANTERIORIDADE DA LEI PENAL
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Manter o condenado a regime semi-aberto no regime mais gravoso fere os princípios da legalidade e da reserva legal, pois não há previsão legal para que esse estado de coisas permaneça.
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DE TRATAMENTO DESUMANO
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
Se o condenado deve ser submetido ao cumprimento da pena em um regime, nem por um dia sequer deve ficar em outro mais gravoso. A nem preciso acostar os inúmeros julgados determinando isso, uma vez que se trata de questão pacífica em todos os tribunais.
VIOLAÇÃO À COISA JULGADA
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
Não cabe ao Juízo das Execuções Penais violar a coisa julgada, ainda que por pouco tempo. Também não preciso aqui acostar os inúmeros julgados determinando isso, uma vez que se trata de questão pacífica em todos os tribunais.
VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DA AMPLA DEFESA
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
A colocação de alguém em regime mais gravoso do que o determinado na sentença deve ser precedida de um procedimento previsto em lei, em contraditório, e sob as hipóteses previstas também na LEP, o que não está ocorrendo – regressão de regime.
Assim, em sendo o caso de condenado que comparece espontaneamente, comprovando o emprego por declaração do empregador ou pela carteira assinada, deveria de imediato ter direito a saída para trabalhar.
Sob o pretexto de um pretenso risco em abstrato de fuga em caso de alguma outra condenação sequer conhecida, não se pode macular a Constituição.
É no momento de fazer cumprir a pena que o Estado deve se revelar como exemplo de obediência aos direitos constitucionalmente garantidos, sob pena de ser ele o maior exemplo de violador daquilo que apregoa e deve defender com máxima firmeza.
*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior
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