Entrevista Mireille Delmas-Marty
"Todos nós podemos nos tornar suspeitos sob vigilância"
19/03/2010
O direito penal desumanizou-se, explica a professora do Collège de France. Enquanto se desenha uma cultura do medo, do terrorista ou do criminoso, o Estado de Direito deriva rumo à repressão.
Por Jean-Baptiste Marongiu
Por que a lei francesa de 2008, relativa à detenção de segurança, marca uma etapa fundamental no que a senhora chama de "desumanização" do direito penal?
Esta lei permite manter um condenado em detenção, após a execução de sua pena, por um ano, renovável indefinidamente, tendo como exclusivo critério a sua periculosidade. Ele não é punido pelo seu crime, mas sim neutralizado, como se faria a um animal perigoso. A lei ainda se faz acompanhar de uma radicalização do controle social, com o desenvolvimento sem precedentes de arquivos de dados pessoais e de biometria, organizando a traçabilidade das pessoas de acordo com o modelo de traçabilidade das mercadorias. Todos nós podemos nos tornar suspeitos sob vigilância.
Diz a senhora que, após os atentados de 11/9/2001, o Estado de exceção avança cada vez mais sobre o Estado de Direito, nos Estados Unidos e alhures.
O 11/9 é a marca de uma reviravolta. Nos Estados Unidos, a proclamação do estado de guerra permitiu a suspensão do Estado de Direito, o que levou a legitimar a tortura e outras formas extremas de desumanização: lembre-se destes homens encerrados em gaiolas em Guantanamo, ou dos prisioneiros com coleiras em Abou Ghraib... É verdade que o estado de exceção supõe-se provisório. Mas, tratando-se do terrorismo global, que não tem começo nem fim, este estado tende a tornar-se permanente, sobretudo porque a "suspensão" faz-se acompanhar de um "desvio" do Estado de Direito, por meio da transferência de poderes ao Exército, ou mesmo às sociedades militares privadas. À parte tais excessos, parecem quase generalizados no mundo, não apenas em matéria de terrorismo, o enrijecimento da repressão e uma extensão da prevenção, como se os atentados de Nova Iorque tivessem eliminado um tabu e livrado as autoridades políticas, simbólica e juridicamente, da obrigação de respeitar os limites próprios ao Estado de Direito. Na França, trata-se, sobretudo, de contorná-los, multiplicando os regimes excepcionais, e evitando a consulta a autoridades independentes, como a Comissão nacional consultiva de direitos humanos, ou a Comissão nacional de informática e liberdades.
A senhora fala de interdependência entre perigos tão diversos como o terrorismo, as mudanças climáticas, as doenças epidêmicas...
O medo alimenta o medo. Há uma porosidade entre o medo que se sente em relação ao outro – que se trate do terrorista, do criminoso ou do estrangeiro – e o medo de um mundo que é percebido como cada vez mais perigoso em escala planetária: terrorismo global, ciber-
Original em francês: http://www.lesinrocks.com/actualite/actu-article/article/nous-pourrions-tous-devenir-des-suspects-sous-surveillance/
criminalidade, mudança climática, riscos econômicos, financeiros, ecológicos, tecnológicos; tudo se mescla para desenhar os contornos de uma sociedade do medo. Ainda mais porque, no plano jurídico, o Estado foi ultrapassado, no sentido próprio (os riscos, tornados planetários, evidentemente não param na fronteira de cada Estado) e no figurado (nenhum Estado dispõe, sozinho, de respostas eficazes).
Dividido entre a liberdade e a segurança, entre o local e o global, o que foi feito do Direito?
Ele está passando de uma representação simples, identificada com o Estado, a um sistema muito mais complexo, a um só tempo evolutivo e interativo, na medida em que as interações multiplicam-se em diferentes níveis (nacional, regional – como a Europa, mundial). Elas ocorrem tanto por meio de hierarquia de normas, por exemplo, entre o direito francês e o europeu, como por simples trocas horizontais – tais como um "diálogo entre juízes", por exemplo, quando a Corte Suprema dos Estados Unidos cita a Corte Européia dos Direitos Humanos, ou o inverso. Instala-se, assim, uma ordem jurídica nem puramente nacional, nem verdadeiramente mundial, que eu propus chamar de "pluralismo ordenado". Dois termos tradicionalmente antinômicos: se há pluralismo, é porque há ordens, e se havia uma ordem mundial, ela não poderia ser plural. No entanto, vemos emergir sob os nossos olhos, em torno de princípios comuns, a possibilidade de uma ordem não uniforme, mas pluralista, que associaria um direito com vocação mundial aos direitos nacionais e aos direitos regionais em plena expansão.
Vai-se rumo a um direito das migrações?
A questão das migrações é um teste decisivo para a emergência em escala mundial de uma comunidade de destino. A transformação de uma sociedade do medo numa comunidade não virá nem só dos Estados, nem só dos juristas, mas de uma tomada de consciência dos cidadãos. Nós estamos longe disto: mesmo a Europa, aberta em seu interior, fecha-se ao exterior como uma fortaleza. Somente quando o sentimento de pertencer a uma mesma comunidade tiver progredido, o direito poderá contribuir plenamente à sua realização. É preciso preparar os instrumentos necessários para tanto. Por exemplo, um projeto de Convenção sobre os "migrantes ambientais", lançado por ONGs, compreende o direito de ser acolhido fora de seu país e de a ele retornar quando possível.
A senhora consagrou seis anos de cursos no Collège de France e três obras às "forças imaginativas do Direito". O direito como criação artística?
Eu não sei se o direito é uma arte; em todo caso, é um domínio no qual é preciso inovar, logo, agir com imaginação. Os antigos modelos são inadaptados, pois a realidade mudou. Para escapar à metáfora arquitetural que impregna toda a linguagem jurídica, com suas bases, seus pilares, fundações, direitos fundamentais, etc., e tentar expressar esta instabilidade do direito, eu propus aquela, um pouco provocativa, das "nuvens ordenadas". Mas o tempo está mais para tempestade!
Tradução de Deisy Ventura para o blog http://educarparaomundo.wordpre
Tentativa de pensar o Direito em Paralaxe (Zizek) alexandremoraisdarosa@gmail.com Aviso: quem não tiver coragem de assinar os comentários aos posts, nem precisa mandar, pois não publico nada anônimo. Recomendo ligar para o Disk Denúncia...
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29/04/2010
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Aos interessados,lançado foi na França em fevereiro o último livro da Delmas-Marty chamado "Libertés et sûreté dans un monde dangereus"...vale a leitura! principalmenete das partes 1 e 2 que se chamam "Dangers pour les personnes et transformations du contrôle social" e "Dangers pour les États et mutations de État de droit".
ResponderExcluirGuto jobim.