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20/04/2010

Eric Hobsbawn - entrevista

Por Adriane Batata

POLÍTICA EXTREMA


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UM DOS MAIS INFLUENTES HISTORIADORES VIVOS, ERIC HOBSBAWM DIZ QUE A
CRISE ECONÔMICA LEVOU À REDESCOBERTA DE MARX E QUE O EQUILÍBRIO MUNDIAL
DEPENDE DAS POTÊNCIAS EMERGENTES
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DA FOLHA (NEW LEFT REVIEW)

Aos 92 anos, o historiador britânico Eric Hobsbawm continua um feroz
crítico da prevalência do modelo político-econômico dos EUA. Para ele, o
presidente americano Barack Obama, ao lidar com as consequências da
crise econômica, desperdiçou a chance de construir maneiras mais
eficazes de superá-la.

“Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são
tremendamente encorajadoras”, diz, na entrevista abaixo. “A tentativa
dos EUA de exercer a hegemonia global vem fracassando de modo muito
visível.”

Hobsbawm discute ainda questões globais contemporâneas -como as
tentativas de criar Estados supranacionais, a xenofobia e o crescimento
econômico chinês- à luz do que expressou em livros como “Era dos
Extremos” e “Tempos Interessantes” (ambos publicados pela Cia. das Letras).

PERGUNTA – “Era dos Extremos” termina em 1991, com um panorama de
avalanche global -o colapso das esperanças de avanços sociais da era de
ouro [para Hobsbawm, 1949-73]. Quais são as mudanças mais importantes
desde então?

ERIC HOBSBAWM – Vejo quatro mudanças principais. Primeiro, o
deslocamento do centro econômico do mundo do Atlântico Norte para o sul
e o leste da Ásia. Isso já estava começando no Japão nas décadas de 1970
e 80, mas a ascensão da China desde os anos 1990 vem fazendo uma
diferença real.

Em segundo lugar, é claro, a crise mundial do capitalismo, que vínhamos
prevendo, mas que, mesmo assim, levou muito tempo para ocorrer. Em
terceiro, a derrota retumbante da tentativa dos EUA de exercer a
hegemonia global solo a partir de 2001.

Em quarto lugar, a emergência de um novo bloco de países em
desenvolvimento, como entidade política -os Brics [Brasil, Rússia, Índia
e China]-, não tinha acontecido quando escrevi “Era dos Extremos”.

E, em quinto lugar, a erosão e o enfraquecimento sistemático da
autoridade dos Estados: dos Estados nacionais no interior de seus
territórios e, em grandes regiões do mundo, de qualquer tipo de
autoridade de Estado efetiva. Isso se acelerou em um grau que eu não
teria previsto.

PERGUNTA – O que mais o surpreendeu desde então?

HOBSBAWM – Nunca deixo de me espantar com a pura e simples insensatez do
projeto neoconservador, que não apenas fez de conta que a América fosse
o futuro, mas chegou a pensar que tivesse formulado uma estratégia e uma
tática para alcançar esse objetivo. Pelo que consigo enxergar, ele não
tinha uma estratégia coerente, em termos racionais.

Em segundo lugar -fato muito menor, mas significativo-, o ressurgimento
da pirataria, algo que já tínhamos em grande medida esquecido; isso é novo.

E a terceira coisa, que é ainda mais local: a derrocada do Partido
Comunista da Índia (Marxista) em Bengala Ocidental [no leste da Índia],
algo que eu realmente não teria previsto.

PERGUNTA – O sr. visualiza uma recomposição política daquilo que foi no
passado a classe trabalhadora?

HOBSBAWM – Não em sua forma tradicional. Marx [1818-83] acertou, sem
dúvida, quando previu a formação de grandes partidos de classe em
determinado estágio da industrialização. Mas esses partidos, quando
foram bem-sucedidos, não operaram puramente como partidos da classe
trabalhadora: se queriam estender-se para além de uma classe estreita, o
faziam como partidos do povo, estruturados em torno de uma organização
inventada pela classe trabalhadora e voltada a alcançar os objetivos dela.

Mesmo assim, havia limites à consciência de classe. No Reino Unido, o
Partido Trabalhista nunca conquistou mais de 50% dos votos. O mesmo se
aplica à Itália, onde o Partido Comunista era muito mais um partido do povo.

Na França, a esquerda era baseada sobre uma classe trabalhadora
relativamente fraca, mas que conseguiu se reforçar como sucessora
essencial da tradição revolucionária.

O declínio da classe operária manual na indústria parece, de fato, ter
atingido seu estágio terminal.

Houve três outras mudanças negativas importantes. Uma delas, é claro, é
a xenofobia -que, para a maior parte da classe trabalhadora é, nas
palavras usadas certa vez por [August] Bebel, “o socialismo dos tolos”:
proteja meu emprego contra pessoas que estão competindo comigo.

Em segundo lugar, boa parte da mão de obra e do trabalho nos setores que
a administração pública britânica qualificava no passado como “graus
menores e manipulativos” não é permanente, mas temporária. Assim, não é
fácil enxergá-la como tendo potencial de ser organizada.

A terceira e mais importante mudança é, a meu ver, a divisão crescente
gerada por um novo critério de classe: a saber, a aprovação em exames de
escolas e universidades como critério de acesso a empregos. Pode-se
dizer que se trata de uma meritocracia, mas ela é medida,
institucionalizada e mediada por sistemas de ensino.

O que isso fez foi desviar a consciência de classe da oposição aos
patrões para a oposição a representantes de alguma elite: intelectuais,
elites liberais, pessoas que se erguem como superiores a nós.

PERGUNTA – Que comparações o sr. traçaria entre a crise atual e a Grande
Depressão?

HOBSBAWM – [A crise de] 1929 não começou com os bancos -eles só caíram
dois anos mais tarde. O que aconteceu, na verdade, foi que a Bolsa de
Valores desencadeou uma queda na produção, com um índice muito mais alto
de desemprego e um declínio real muito maior na produção do que havia
ocorrido em qualquer momento até então.

A depressão atual levou mais tempo sendo preparada que a de 1929, que
pegou quase todos de surpresa. Deveria ter sido claro desde cedo que o
fundamentalismo neoliberal gerou uma instabilidade enorme nas operações
do capitalismo. Até 2008, isso pareceu afetar apenas as áreas
periféricas -a América Latina nos anos 1990 e no início da década de
2000; o Sudeste Asiático e a Rússia.

Parece-me que o verdadeiro indício de algo grave acontecendo deveria ter
sido o colapso da Long-Term Capital Management [fundo de investimentos
sediado nos EUA], em 1998, que provou como estava errado o modelo
inteiro de crescimento. Mas o incidente não foi visto como tal.
Paradoxalmente, a crise levou vários empresários e jornalistas a
redescobrirem Karl Marx como alguém que tinha escrito algo interessante
sobre uma economia globalizada moderna.

A economia mundial em 1929 era menos global do que é hoje. Isso exerceu
algum efeito, é claro. A existência da União Soviética não exerceu
efeito concreto sobre a Depressão, mas seu efeito ideológico foi enorme:
significava que havia uma alternativa.

Desde os anos 1990, temos assistido à ascensão da China e das economias
emergentes, fato que vem realmente exercendo um efeito concreto sobre a
depressão atual, na medida em que esses países vêm ajudando a manter a
economia mundial muito mais equilibrada do que ela estaria sem eles.

PERGUNTA – E o que dizer das consequências políticas?

HOBSBAWM – A Depressão de 1929 levou a um desvio avassalador para a
direita, com a exceção notável da América do Norte, incluindo o México,
e da Escandinávia.

O efeito da crise atual não é tão nítido. Podemos imaginar que grandes
mudanças políticas devem ocorrer não apenas nos EUA ou no Ocidente, mas
quase certamente na China.

PERGUNTA – O sr. antevê que a China continue a resistir ao declínio?

HOBSBAWM – Não há nenhuma razão em especial para prever que a China pare
de crescer de uma hora para outra. A depressão causou um choque grave ao
governo chinês, na medida em que paralisou muitas indústrias,
temporariamente. Mas o país ainda se encontra nos estágios iniciais do
desenvolvimento econômico, e há espaço enorme para expansão.

É claro que o país ainda enfrenta grandes problemas; sempre há pessoas
que se perguntam se a China vai conseguir continuar unida. Mas acho que
as razões reais e ideológicas para que as pessoas desejem que a China se
mantenha unida continuam muito fortes.

PERGUNTA – Que avaliação o sr. faz da administração Obama?

HOBSBAWM – As pessoas ficaram tão satisfeitas com a eleição de um homem
como ele, especialmente em um momento de crise, que pensaram que
certamente seria um grande reformador, que faria o que Roosevelt
[1933-45, responsável pelo New Deal, série de programas econômicos e
sociais contra a Grande Depressão] fez.

Mas Obama não o fez. Ele começou mal. Se compararmos os primeiros cem
dias de Roosevelt aos primeiros cem dias de Obama, o que salta à vista é
a disposição de Roosevelt em aceitar assessores não oficiais, em
experimentar algo novo, comparada à insistência de Obama em se conservar
no centro. Acho que ele desperdiçou sua chance.

PERGUNTA – A solução de dois Estados, conforme visualizada no momento, é
uma perspectiva digna de crédito para a Palestina?

HOBSBAWM – Pessoalmente, duvido que ela exista no momento. Seja qual for
a solução possível, nada vai acontecer enquanto os americanos não
decidirem mudar totalmente de posição e aplicar pressão sobre Israel.

PERGUNTA – Existem lugares do mundo nos quais o sr. acha que projetos
positivos e progressistas ainda estejam vivos ou tenham chances de ser
reativados?

HOBSBAWM – Na América Latina, com certeza, a política e o discurso
público geral ainda são conduzidos nos velhos termos do iluminismo
-liberais, socialistas, comunistas.

Esses são os lugares onde se encontram militaristas que falam como
socialistas -que “são” socialistas. Encontram-se fenômenos como [o
presidente] Lula, baseado em um movimento da classe trabalhadora, e [o
presidente boliviano Evo] Morales.

Para onde isso vai levar é outra questão, mas a velha linguagem ainda
pode ser falada, e os velhos modos políticos ainda estão disponíveis.

Não estou inteiramente certo quanto à América Central, embora existam
indícios de um ligeiro “revival” da tradição da revolução no próprio
México -não que isso vá muito longe, na medida em que o México já foi
virtualmente integrado à economia americana.

É possível que projetos progressistas possam renascer na Índia, devido à
força institucional da tradição secular de Nehru [que se tornou premiê
após a independência do país, em 1947]. Mas isso não parece penetrar
muito entre as massas.

Além disso, o legado dos velhos movimentos trabalhistas, socialistas e
comunistas na Europa continua bastante forte.

Desconfio que, em algum momento, a herança do comunismo, por exemplo nos
Bálcãs ou até mesmo em parte da Rússia, possa se manifestar de maneiras
que não podemos prever. O que vai acontecer na China eu não sei. Mas não
há dúvida de que eles [os chineses] estão pensando em termos diferentes,
não em termos maoístas ou marxistas modificados.

PERGUNTA – O sr. sempre foi crítico do nacionalismo como força política.
Também se manifestou contra violações de soberania nacional cometidas em
nome de intervenções humanitárias. Após a falência do internacionalismo
nascido do movimento trabalhista, que tipos são desejáveis hoje?

HOBSBAWM – Em primeiro lugar, o humanitarismo, o imperialismo dos
direitos humanos, não tem muito a ver com internacionalismo. É
indicativo ou de um imperialismo renascido, que encontra nele uma
desculpa adequada para cometer violações de soberania de Estados -podem
ser desculpas absolutamente sinceras-, ou então, o que é mais perigoso,
é uma reafirmação da crença na superioridade permanente da região que
dominou o planeta do século 16 até o final do século 20.

O internacionalismo, que é a alternativa ao nacionalismo, é uma coisa
espinhosa. Ou é um slogan politicamente vazio, como foi, concretamente
falando, no movimento trabalhista internacional -não queria dizer nada
específico-, ou é uma maneira de assegurar uniformidade para
organizações centralizadas e poderosas como a Igreja Católica ou a
Internacional Comunista.

O internacionalismo significava que, como católico, você acreditava nos
mesmos dogmas e participava das mesmas práticas, não importa quem você
fosse ou onde vivesse. O mesmo acontecia, teoricamente, com os partidos
comunistas. Não é realmente isso o que queríamos dizer com
“internacionalismo”.

O Estado-nação foi e continua a ser o quadro em que são tomadas todas as
decisões políticas, domésticas e externas. É possível que o islã
missionário e fundamentalista constitua uma exceção a essa regra,
abarcando Estados, mas isso ainda não foi demonstrado concretamente.

PERGUNTA – Há obstáculos inerentes a qualquer tentativa de extrapolar as
fronteiras do Estado-nação?

HOBSBAWM – Economicamente e na maioria dos outros aspectos -inclusive
culturalmente, até certo ponto-, a revolução das comunicações criou um
mundo genuinamente internacional, no qual há poderes de decisão que se
transnacionalizam, atividades que são transnacionais e, é claro,
movimentos de ideias, comunicações e pessoas que são mais facilmente
transnacionais do que antes.

Na política, contudo, não se vê nenhum sinal de que isso esteja
acontecendo, e é essa a contradição básica no momento. Uma das razões
pelas quais não vem acontecendo é que, no século 20, a política foi
democratizada em grau muito grande -a massa da população comum se
envolveu nela. Para essa massa, o Estado é essencial para suas operações
cotidianas normais e para suas possibilidades de vida.

Tentativas de fragmentar o Estado internamente, pela descentralização,
foram empreendidas, em sua maioria nos últimos 30 ou 40 anos, e algumas
delas não deixaram de ter algum sucesso -na Alemanha, com certeza, a
descentralização vem tendo alguma medida de sucesso e, na Itália, a
regionalização vem sendo benéfica.

Mas as tentativas de criar Estados supranacionais não têm funcionado. A
União Europeia é o exemplo mais óbvio disso.

Ela foi prejudicada, até certo ponto, pelo fato de seus fundadores terem
pensado precisamente em termos de um Superestado análogo a um Estado
nacional, apenas maior -sendo que essa não era uma possibilidade, creio,
e hoje com certeza não é.

PERGUNTA – O nacionalismo foi uma das grandes forças motrizes da
política no século 19 e em boa parte do século 20. Que o sr. diz da
situação atual?

HOBSBAWM – Não há dúvida alguma de que o nacionalismo foi, em grande
medida, parte do processo de formação dos Estados modernos, que exigiu
uma forma de legitimação diferente da do Estado tradicional teocrático
ou dinástico. A ideia original do nacionalismo era a criação de Estados
maiores, e me parece que essa função unificadora e de expansão foi muito
importante.

Um exemplo típico foi o da Revolução Francesa, na qual, em 1790, pessoas
apareceram dizendo: “Não somos mais delfineses ou sulistas -somos todos
franceses”.

Em uma etapa posterior, dos anos 1870 em diante, vemos movimentos de
grupos no interior desses Estados impulsionando a criação de seus
Estados independentes.

Era reconhecido, mesmo que não pelos próprios nacionalistas, que nenhum
desses novos Estados-nações era, de fato, étnica ou linguisticamente
homogêneo.

Mas, depois da Segunda Guerra [1939-45], os pontos fracos das situações
existentes foram enfrentados, não apenas pelos vermelhos, mas por todos,
pela criação proposital e forçada da homogeneidade étnica. Isso provocou
uma quantidade enorme de sofrimento e crueldade e, no longo prazo,
também não funcionou.

Não posso deixar de pensar que a função dos Estados separatistas
pequenos, que se multiplicaram tremendamente desde 1945, mudou. Para
começo de conversa, eles são reconhecidos como existentes.

Antes da Segunda Guerra, os Miniestados -como Andorra, Luxemburgo e
todos os outros- nem sequer eram vistos como parte do sistema
internacional, exceto pelos colecionadores de selos. A ideia de que
tudo, até a Cidade do Vaticano, hoje é um Estado, potencialmente membro
das Nações Unidas, é nova.

A função histórica de criar uma nação como Estado-nação deixou de ser a
base do nacionalismo. Pode-se dizer que não é mais um slogan muito
convincente.

Hoje, porém, o fator xenofóbico do nacionalismo é cada vez mais
importante. Quanto mais a política foi democratizada, maior foi o
potencial para isso. Trata-se de algo muito mais cultural que político
-basta pensar na ascensão do nacionalismo inglês ou escocês nos últimos
anos-, mas nem por isso menos perigoso.

PERGUNTA – O fascismo não incluía essas formas de xenofobia?

HOBSBAWM – O fascismo ainda foi, até certo ponto, parte da investida
para criar nações maiores. Não há dúvida de que o fascismo italiano foi
um grande passo à frente na conversão de calabreses e úmbrios em
italianos; mesmo na Alemanha, foi apenas em 1934 que os alemães puderam
ser definidos como alemães, e não alemães pelo fato de serem suábios,
francos ou saxões.

É verdade que os fascismos alemão e europeu central e oriental foram
acirradamente contrários a outsiders -judeus, em grande medida, mas não
apenas eles.

E, é claro, o fascismo forneceu uma garantia menor contra os instintos
xenofóbicos.

PERGUNTA – As dinâmicas separatistas e xenofóbicas do nacionalismo atuam
hoje nas margens da política mundial?

HOBSBAWM – Sim, embora existam regiões em que o nacionalismo causou
danos enormes, como no sudeste da Europa.

Ainda é verdade, é evidente, que o nacionalismo -ou o patriotismo, ou a
identificação com um povo específico, que não precisa necessariamente
ser definido por critérios étnicos- seja um enorme fator de legitimação
dos governos.

Isso é claramente o caso na China. Um dos problemas da Índia, hoje, é
que não existe nada exatamente assim por lá.

PERGUNTA – Como o sr. prevê a dinâmica social da imigração contemporânea
hoje? Haverá a emergência gradual de outro caldeirão cultural na Europa,
não dessemelhante ao americano?

HOBSBAWM – Mas o caldeirão cultural nos EUA deixou de sê-lo desde os
anos 1960. Ademais, no final do século 20, a migração já era algo
realmente muito diferente das migrações de períodos anteriores, em
grande medida porque, ao emigrar, as pessoas já não rompem os vínculos
com o passado no mesmo grau em que o faziam antes.

É possível continuar a ser guatemalteco mesmo vivendo nos EUA. Também há
situações como as da UE, nas quais, concretamente, a imigração não gera
a possibilidade de assimilação. Um polonês que vem para o Reino Unido
não é visto como nada além de um polonês que vem trabalhar no país.

Isso é claramente novo e muito diferente da experiência de pessoas da
minha geração, por exemplo -a geração dos emigrados políticos, não que
eu tenha sido um-, na qual nossa família era britânica, porém
culturalmente nunca deixávamos de ser austríacos ou alemães; mas, apesar
disso, acreditávamos realmente que deveríamos ser ingleses.

Acredito realmente que é essencial conservar as regras básicas da
assimilação -que os cidadãos de um país particular devem comportar-se de
determinada maneira e gozar de determinados direitos, que esses
comportamentos e direitos devem defini-los e que isso não deve ser
enfraquecido por argumentos multiculturais.

A França integrou, apesar de tudo, mais ou menos tantos de seus
imigrantes estrangeiros quanto os EUA, relativamente falando, e, mesmo
assim, o relacionamento entre os locais e os ex-imigrantes é quase
certamente melhor lá. Isso acontece porque os valores da República
Francesa continuam a ser essencialmente igualitários e não fazem nenhuma
concessão pública real.

Seja o que for que você faça no âmbito pessoal -era também esse o caso
nos EUA no século 19-, publicamente esse é um país que fala francês. A
dificuldade real não será tanto com os imigrantes quanto com os locais.
É em lugares como Itália e Escandinávia, que não tinham tradições
xenofóbicas prévias, que a nova imigração vem criando problemas sérios.

PERGUNTA – Hoje é amplamente disseminada a ideia de que a religião tenha
retornado como força imensamente poderosa. O sr. vê isso como um
fenômeno fundamental ou mais passageiro?

HOBSBAWM – Está claro que a religião -entendida como a ritualização da
vida, a crença em espíritos ou entidades não materiais que
influenciariam a vida e, o que não é menos importante, como um elo comum
entre comunidades- está tão amplamente presente ao longo da história que
seria um equívoco enxergá-la como fenômeno superficial ou que esteja
destinado a desaparecer, pelo menos entre os pobres e fracos, que
provavelmente sentem mais necessidade de seu consolo e também de suas
potenciais explicações do porquê de as coisas serem como são.

Existem sistemas de governo, como o chinês, que não possuem
concretamente qualquer coisa que corresponda ao que nós consideraríamos
ser religião. Eles demonstram que isso é possível, mas acho que um dos
erros do movimento socialista e comunista tradicional foi optar pela
extirpação violenta da religião em épocas em que poderia ter sido melhor
não o fazer.

É verdade que a religião deixou de ser a linguagem universal do discurso
público; e, nessa medida, a secularização vem sendo um fenômeno global,
embora apenas em algumas partes do mundo ela tenha enfraquecido
gravemente a religião organizada.

Para as pessoas que continuam a ser religiosas, o fato de hoje existirem
duas linguagens do discurso religioso gera uma espécie de esquizofrenia,
algo que pode ser visto com bastante frequência entre, por exemplo, os
judeus fundamentalistas na Cisjordânia -eles acreditam em algo que é
evidentemente tolice, mas trabalham como especialistas nisso.

O declínio das ideologias do iluminismo deixou um espaço político muito
maior para a política religiosa e as versões religiosas de nacionalismo.
Mas muitas religiões estão claramente em declínio.

O catolicismo está lutando arduamente, mesmo na América Latina, contra a
ascensão de seitas evangélicas protestantes, e tenho certeza de que está
se mantendo na África apenas graças a concessões aos hábitos e costumes
sociais que eu duvido que tivessem sido feitas no século 19.

As seitas evangélicas protestantes estão em ascensão, mas não está claro
até que ponto são mais que uma minoria entre os setores sociais com
mobilidade ascendente, como era o caso antigamente com os não
conformistas na Inglaterra.

A única exceção é o islã, que vem continuando a se expandir sem nenhuma
atividade missionária efetiva nos últimos dois séculos.

Parece-me que o islã possui grandes trunfos que favorecem sua expansão
contínua -em grande medida, porque confere às pessoas pobres o
sentimento de que valem tanto quanto todas as outras e que todos os
muçulmanos são iguais.

PERGUNTA – Não se poderia dizer o mesmo do cristianismo?
HOBSBAWM – Mas um cristão não crê que vale tanto quanto qualquer outro
cristão. Duvido que os cristãos negros acreditem que valham tanto quanto
os colonizadores cristãos, enquanto alguns muçulmanos negros acreditam
nisso, sim. A estrutura do islã é mais igualitária, e o elemento
militante é mais forte no islã.
Recordo-me de ter lido que os mercadores de escravos no Brasil deixaram
de importar escravos muçulmanos porque eles insistiam em rebelar-se
sempre. Esse apelo encerra perigos consideráveis -em certa medida, o
islã deixa os pobres menos receptivos a outros apelos por igualdade.
Os progressistas no mundo muçulmano sabiam desde o início que não
haveria maneira de afastar as massas do islã; mesmo na Turquia, tiveram
que encontrar alguma forma de convivência -aliás, esse foi provavelmente
o único lugar onde isso foi feito com êxito.

PERGUNTA – A ciência foi uma parte central da cultura da esquerda antes
da Segunda Guerra. O sr. acha que o destaque crescente das questões
ambientais deverá reaproximar a ciência da política radical?
HOBSBAWM – Tenho certeza de que os movimentos radicais vão se interessar
pela ciência. O ambiente e outras preocupações geram razões
fundamentadas para combater a fuga da ciência e da abordagem racional
aos problemas, fuga que se tornou bastante ampla a partir dos anos 1970
e 80. Mas, com relação aos próprios cientistas, não creio que isso vá
acontecer.
Diferentemente dos cientistas sociais, não há nada que leve os
cientistas naturais a se aproximarem da política. Historicamente
falando, eles, na maioria dos casos, têm sido apolíticos ou seguiram a
política padrão de sua classe.

PERGUNTA – Em “Tempos Interessantes” [publicado em 2002], o sr.
expressou reservas ao que eram, na época, modismos históricos recentes.
O sr. acha que o cenário historiográfico continua relativamente inalterado?
HOBSBAWM – Minha geração de historiadores, que de modo geral transformou
o ensino da história, além de muitas outras coisas, procurou
essencialmente estabelecer um vínculo permanente, uma fertilização
mútua, entre a história e as ciências sociais; era um esforço que datava
dos anos 1890.
A disciplina econômica seguiu uma trajetória diferente. Dávamos como
certo que estávamos falando de algo real: de realidades objetivas,
embora, desde Marx e a sociologia do conhecimento, soubéssemos que as
pessoas não registram a verdade simplesmente como ela é.
Mas o que era realmente interessante eram as transformações sociais. A
Grande Depressão foi instrumental nesse aspecto, porque reapresentou o
papel exercido por grandes crises nas transformações históricas -a crise
do século 14, a transição ao capitalismo.
Éramos um grupo que procurava resolver problemas, que se preocupava com
as grandes questões. Havia outras coisas cuja importância diminuíamos:
éramos tão contrários à história tradicionalista, à história dos
governantes e figuras importantes, ou mesmo à história das ideias, que
rejeitávamos isso tudo.
Em algum momento da década de 1970, ocorreu uma mudança acentuada. Em
1979-80 a [revista de história] “Past & Present” publicou uma troca de
ideias entre Lawrence Stone e mim sobre o “revival da narrativa” -”o que
está acontecendo com as grandes perguntas “por quê’?”.
Os historiadores oriundos de 1968 não se interessavam mais pelas grandes
perguntas -pensavam que todas já tinham sido respondidas. Estavam muito
mais interessados nos aspectos voluntários ou pessoais. O [periódico]
“History Workshop” foi um desenvolvimento tardio desse tipo.
Por outro lado, houve alguns avanços positivos. O mais positivo destes
foi a história cultural, que todos nós, inegavelmente, tínhamos deixado
de lado. Não prestamos atenção suficiente à história do modo como ela de
fato se apresenta a seus atores.

PERGUNTA – Se o sr. tivesse que escolher tópicos ou campos ainda
inexplorados e que representam desafios importantes para historiadores
futuros, quais seriam?
HOBSBAWM – O grande problema é um problema muito geral. Segundo padrões
paleontológicos, a espécie humana transformou sua existência com
velocidade espantosa, mas o ritmo das transformações tem variado
tremendamente.
Os marxistas focaram, com razão, as transformações no modo de produção e
em suas relações sociais como sendo geradoras de transformações históricas.
Contudo, se pensarmos em termos de como “os homens fazem sua própria
história”, a grande questão é a seguinte: historicamente, comunidades e
sistemas sociais buscaram a estabilização e a reprodução, criando
mecanismos para prevenir-se contra saltos perturbadores no desconhecido.
Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir a
transformações dinâmicas se adaptam a um modo de produção cuja essência
é o desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?
Os historiadores marxistas poderiam beneficiar-se da pesquisa das
operações dessa contradição fundamental entre os mecanismos que promovem
transformações e aqueles que são voltados a opor resistência a elas.

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Esta entrevista foi publicada originalmente na edição de
janeiro/fevereiro da revista britânica “New Left Review”.
Tradução de Clara Allain.

Leia a íntegra da entrevista: http://www.folha.com.br/101031

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2 comentários:

  1. Excelente! E mesmo com essa idade permanece impressionantemente lúcido! Será que conseguiremos nos manter um tantinho assim quando chegarmos aos 90?! rs

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  2. Oi Alex.
    Adoro esse cara. Fui parar no Birkbeck College justamente porque estava na contra-capa do Era dos Extremos que era lá que ele dava aula. Bom, nunca o vi por lá mas estudava ao lado da sala que ainda levava o nome dele na porta. Sempre preferia pensar que de vez em quando ele ainda passar por lá para alguma leitura.
    Tô agora num cronograma forte de leitura que inclui os 4 volumes dele. Preparação para o Rio Branco né... Ele me deixa louca às vezes citando países que nunca ouvi falar, mas é lucidez garantida e certo 'british humor' que vale à pena. Às vezes too british mas ainda assim ótimo.
    Bj,
    Vanessa Pedro.

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