A inconstitucionalidade dos julgamentos na Justiça Militar.
Não se pretende com as presentes linhas apontar a Justiça Militar como inconstitucional. Pelo contrário, está disposta no texto originário da Constituição Republicana de 1988, art. 92, VI[1], razão pela qual mostra-se completamente desarrazoada qualquer arguição nesse sentido.
A existência da referida justiça se mostra necessária pela natureza da matéria que examina, sem afastar, porém, por si só, os argumentos favoráveis à apreciação dos crimes e questões administrativas militares pela Justiça Comum, através da fusão das duas Cortes. Isso porque há no mundo globalizado e complexo do atual século da informação, questões de grandes especificidades e envergadura, as quais exigem dos magistrados vastos conhecimentos em áreas muito mais distantes da jurídica, como, por exemplo, economia e finanças.
A existência da Justiça Militar está muito mais voltada à ligação da matéria examinada com a vida militar e seus princípios fundantes, que são a hierarquia e disciplina. Os crimes militares nada mais representam do que infrações disciplinares de maior vulto, os quais colocam em xeque os pilares castrenses.
Exige-se, assim, uma justiça especializada e destacada das demais, a fim de que os atos praticados em detrimento da administração militar possam ser julgados dentro de uma margem reduzida de tempo para que não venha trazer prejuízos à disciplina interna e nem tampouco que a autoridade militar possa ter a sua hierarquia contestada. Maior exemplo da celeridade desejada é o fato do militar que tenha contra si um processo penal militar ficar impedido de obter promoção, em análise a contrário sensu do disposto no art. 18, 'c', da Lei 5.821, de 1972[2], tendo em vista o estreito liame paradigmático estabelecido entre a conduta tida como crime militar e aquela disciplinarmente esperada do soldado e prevista nos regulamentos internos da Força.
Por outro lado, mostra-se de duvidável envergadura constitucional a existência dos Conselhos Militares de Justiça, com competência para judicar na seara castrense, descritos no art. 400[3]do Código de Processo Penal Militar, cuja publicação se deu no ano de 1969, formados por 04 militares, em patentes maiores do que o réu e o Juiz-Auditor Militar.
A Constituição fixou a existência da Justiça Militar, art. 92, mas deixou a cargo da lei ordinária a normatização da mesma, o que acabou gerar a recepção formal do decreto-lei 1002/69, que criou o Código de Processo Penal Militar.
A mesma constituição garantiu aos juízes togados, art. 95, I, II e III[4], as prerrogativas necessárias ao desempenho das atividades judicantes com total isenção, quais sejam: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, além da exigência de acesso por concurso público.
As garantias “têm assim como condão conferir à instituição a necessária independência para o exercício da jurisdição, resguardando-a das pressões do Legislativo e do Executivo, não se caracterizando, pois, os predicamentos da magistratura como privilégio dos magistrados, mas sim como meio de assegurar o seu livre desempenho, de molde a revelar a independência e autonomia do Judiciário. Hamilton, no Federalista, comparava as garantias dos juízes às do Presidente da República norte-americana. Dizia que os juízes, por serem vitalícios, necessitam de garantias mais fortes e duradouras que o Presidente[5]”.
São medidas que asseguram também aos jurisdicionados a certeza da existência de um Estado de Direito, no qual as normas são aplicadas independentemente das partes envolvidas no processo judicial.
Ao examinar-se os Conselhos de Justiça, em especial, os militares que os compõem, depreende-se que não há qualquer prerrogativa funcional a eles estendida, nem tampouco houve por parte da Constituição qualquer alusão à possibilidade de se ter na seara castrense julgamentos por juízes sem a necessária independência, bem como sem a admissão por concurso público. Ainda que a Constituição tenha denegado à lei ordinária a regulação da Justiça Militar, não poderia esta criar a possibilidade de uma jurisdição afastada das linhas mestras descritas na carta magna.
O constituinte sempre que desejou exceções, na questão jurisdicional, sobretudo nas garantias em comento e na admissão por concurso público, o fez de forma expressa, como no caso Tribunal do Júri, art. 5º, XXXVIII[6], e ainda no modificado art. 126[7], que previa a figura dos juízes classistas, no âmbito da Justiça Laboral. O mesmo entendimento se dá no tocante ao Juizado Especial ao criar os juízes leigos, art. 98, I[8] .
Não é exagero lembrar que os Conselhos de Julgamento na Justiça Militar, art. 28 da lei 8457/90, são competentes para determinar uma pessoa criminosa ou inocente, na quantidade e forma da pena, decidir pelas decisões cautelares, pela aplicação das penas privativas de liberdade, dentre outras medidas judiciais[9]. Os militares contam sempre em com larga maioria (4), em detrimento ao voto unitário do juiz togado.
Se ao magistrado comum foi necessária a expressa determinação das prerrogativas com o escopo de se evitar pressões externas, inclusive políticas ou de superiores, no caso dos militares as garantias mostram-se muito mais prementes para que possam decidir de acordo somente com a consciência, analisando-se as provas constantes nos autos, sem qualquer tensão de se confrontar com eventuais contrariedades aos interesses da corporação e ainda dos superiores, sobretudo de um comandante que foi afetado por um conduta infracional.
Nesse diapasão, a composição dos Conselho de Justiça Permanente de apenas oficiais superiores, sem a presença de praças, não só confirma a premissa acima mencionada, como também se traduz numa afronta ao princípio da isonomia, vez que retira a possibilidade dos praças serem julgados por seus pares, em confronto ao espírito que norteia os julgamentos por juízes não togados.
As praças não podem compor Conselhos de Justiça o que configura uma violação ao princípio da igualdade. Para dar atendimento ao princípio do julgamento do acusado por seus pares, as praças deveriam compor o Conselho de Justiça Permanente desde que tivessem graduação superior a do acusado em observância ao princípio da hierarquia[10].
A tranquilidade necessária aos julgadores fez com que a Constituição assegurasse garantias que os isolassem de qualquer possibilidade de influência em suas decisões, dotando-os de independência política.
Mas de nada valeria tal independência jurídica, tal independência funcional, se os juízes não fossem cercados de reais garantias. Não basta tornar a função independente; é preciso que os homens que a exerçam também o sejam. Poder-se-ia pensar que o simples fato de ser o Juiz juridicamente independentemente seria o necessário para que pudesse desempenhar sua função com destemor e sem receios. Sua idoneidade moral e retidão de caráter far-lhe-iam respeitada a independência. Mas, sabendo o Estado que o altruísmo não capacita ninguém a administrar justiça, procurou cercar os Magistrados de reais garantias, imunizando-os contra qualquer ato de coação indireta ou mesmo represália. (...) Atentando para tais circunstâncias procurou o Estado tornar realidade a sua independência jurídica, dando-lhe garantias concretas que o tornam politicamente independente. Que garantias são essas? A vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos[11].
A ausência de garantias aos militares julgadores se mostra ainda grave por ser os militares representantes do ofendido na Justiça Militar, ou seja, a organização militar, cuja ressonância das faltas cometidas reverberam nos seios dos quartéis e nos comandos, por conseguinte, colocam em detrimento os princípios pelos quais foram educados e comprometidos em defender, que são a hierarquia e disciplina militar. Assumiram o dever de defender os pilares castrenses.
Outro agravante é o fato que as decisões dos Conselhos de Justiça são revisadas por Tribunais que possuem composição com maioria de militares do mais alto posto, como, por exemplo, o STM, que é constituído por Almirantes, Brigadeiros ou Generais, além de civis em minoria, os quais se cientificarão das decisões tomadas pelos subalternos[12].
Ora, os julgadores militares dos Conselhos de Justiça mantêm-se vinculados à hierarquia militar, ou seja, estão subordinados administrativamente àqueles que irão revisar as decisões judiciais por eles prolatadas. Assim, falta também a independência jurídica. Poderão sofrer de seus superiores, ainda que de forma transversa, consequências administrativas, máxime por, eventualmente, ir de encontro a alguma decisão solidificada dos Tribunais Superiores, repise-se, compostos de superiores hierárquicos.
Assim, se a independência jurídica protege o Magistrado contra ingerências de quaisquer outros órgãos do próprio Poder Judiciário, com maior razão o ampara contra expansões indevidas dos demais órgãos que compõem os outros Poderes.
Por isso dizia Hippel que o Juiz que atua conforme o dever não tem superiores no exercício de suas obrigações funcionais[13].
Ressalta-se que as Constituições italiana e alemã prescreveram, de forma inequívoca, a subordinação única dos magistrados à lei[14].
Assim, mostra-se o Código de Processo Penal Militar, na parte que estabeleceu os Conselhos de Justiça, não recepcionado materialmente pela Constituição Republicana de 1988, pela inexistência de conformidade dos mesmos com a isenção necessária e esperada dos julgadores, visto que as prerrogativas do art. 95 não se aplicam aos militares que os compõem.
Poder-se-ia argumentar que a existência dos mencionados Conselhos foi ratificada em lei ordinária, de n° 8457, no ano de 1992, o que traria uma conformação com o texto constitucional, sobretudo pela existência das Comissões de Constituição e Justiça nas Casas Legislativas do Congresso Nacional. Porém, as mesmas razões da não recepção do CPPM pela atual Constituição Republicana informam a inconstitucionalidade da aludida lei.
Afora as declarações repetidas pelo E. STF de inconstitucionalidade de leis promulgadas após a Constituição de 1988, chama atenção na referida lei que a propositura de seu projeto foi realizada pelo E.STM, cuja composição é por maioria de militares, o que, por si só, deixa clara a intenção de manter sob o controle castrense as decisões no âmbito penal militar. Há o entendimento por parte dos militares que as questões afetas à vida militar devem ser analisadas pelos próprios pares, já que entendem melhor as minúcias da administração de uma força armada e ainda possuem o conhecimento prático da primazia da hierarquia e disciplina militar, afastando-se, assim, as ingerências externas.
Outra questão que deve ser lembrada é que o projeto que resultou na lei acima mencionada foi apresentado no ano de 1990, ou seja, época em que se iniciou, após 20 anos de regime autocrático, um governo eleito democraticamente. Havia, então, uma transição em seu limiar, com regras tácitas de harmonia entre a sociedade civil e a Instituição militar, através da garantia de não interferência do poder civil na administração militar.
Nesse sentido, gize-se que o referido projeto sofreu apenas 6 emendas na Câmara dos Deputados e nenhuma no Senado Federal, o que denota a preocupação de se manter preservado o entendimento do alto oficialato militar acerca da composição, processamento e julgamento dos processos naquela Justiça Especializada.
Tal isolamento ainda se agravou pelo total distanciamento dos Direitos Penal e Processual Penal do mundo acadêmico e sobretudo da sociedade civil como um todo, fato este perceptível na ausência quase que absoluta de mudanças nos Códigos Penal e Processual Militar ao longo desses 40 anos de existência. Predomina-se, portanto, uma legislação criada em plena ditadura militar, como também o entendimento no Congresso Nacional de ideias esposadas pelos Ministros Militares pertencentes no E STM, cujas formações foram formatadas em contextos de sobreposição das Instituições militares, além das demais autoridades militares.
É possível ainda vislumbrar a não recepção pela atual Constituição do Conselho Militar pela ausência de conhecimentos jurídicos dos militares julgadores, sem que tenha sido esta possibilidade excepcional, pela exigência do concurso público aos magistrados, expressada no texto da constituição. Praticam todos os atos, em igual medida e peso, dos juízes, inclusive, a difícil dosimetria da pena.
Nesse contexto, conclui-se que a única possibilidade para que a Justiça Militar possa funcionar hoje concatenada com os anseios de uma constituição garantista e republicana é a efetivação da jurisdição apenas pelos juízes togados, selecionados através de concursos públicos, instrumentalizados com as garantias dos membros da magistratura.
[1] Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário:
VI - os Tribunais e Juízes Militares;
[2] Art 18. O oficial será ressarcido da preterição desde que seja reconhecido o seu direito à promoção, quando:
c) for absolvido ou impronunciado no processo a que estiver respondendo;
[3] Art. 400. Tendo à sua direita o auditor, à sua esquerda o oficial de pôsto mais elevado ou mais antigo e, nos outros lugares, alternadamente, os demais juízes, conforme os seus postos ou antigüidade, ficando o escrivão em mesa próxima ao auditor e o procurador em mesa que lhe é reservada — o presidente, na primeira reunião do Conselho de Justiça, prestará em voz alta, de pé, descoberto, o seguinte compromisso: "Prometo apreciar com imparcial atenção os fatos que me forem submetidos e julgá-los de acôrdo com a lei e a prova dos autos." Êsse compromisso será também prestado pelos demais juízes, sob a fórmula: "Assim o prometo."
[4] Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.
[5] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 466.
[6] É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados (...).
[7] Art. 116. A Junta de Conciliação e Julgamento será composta de um juiz do trabalho, que a presidirá, e dois juízes classistas temporários, representantes dos empregados e dos empregadores.
Parágrafo único. Os juízes classistas das Juntas de Conciliação e Julgamento serão nomeados pelo Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, na forma da lei, permitida uma recondução.
[8] A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;
[9] Art. 28. Compete ainda aos conselhos:
I - decretar a prisão preventiva de acusado, revogá-la ou restabelecê-la;
II - conceder menagem e liberdade provisória, bem como revogá-las;
III - decretar medidas preventivas e assecuratórias, nos processos pendentes de seu julgamento;
IV - declarar a inimputabilidade de acusado nos termos da lei penal militar, quando constatada aquela condição no curso do processo, mediante exame pericial;
V - decidir as questões de direito ou de fato suscitadas durante instrução criminal ou julgamento;
VI - ouvir o representante do Ministério Público sobre as questões suscitadas durante as sessões;
VII - conceder a suspensão condicional da pena, nos termos da lei;
VIII - praticar os demais atos que lhe forem atribuídos em lei.
[10] ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Competência da Justiça Militar. In Revista Jus Vigilantibus. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/558. Acesso em 10 de dezembro de 2009.
[11] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 305/306
[12] Art. 3° O Superior Tribunal Militar, com sede na Capital Federal e jurisdição em todo o território nacional, compõe-se de quinze ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército e três dentre oficiais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, e cinco dentre civis.
§ 2° Os Ministros militares permanecem na ativa, em quadros especiais da Marinha, Exército e Aeronáutica.
[14] Art. 97, § 1º, da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha: “os juízes são independentes e subordinados unicamente à lei”.
Art. 104 da Constituição Italiana: “a magistratura constitui uma ordem autônoma e independente de todo outro Poder”.