Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

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09/12/2009

Lebrun - Veja

Entrevista

"Ensinem os filhos a falhar"

Estudioso das relações familiares, o psicanalista belga
Jean-Pierre Lebrun diz que aprender a lidar com o insucesso
é fundamental para livrar-se de apuros na vida adulta

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Ronaldo Soares

Selmy Yassuda
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"Uma família harmônica não necessariamente faz de um jovem uma pessoa capaz de suportar o sofrimento inerente à condição humana"

Nos últimos trinta anos, o modelo tradicional de família passou por alterações significativas, principalmente no mundo ocidental. A ideia dos pais como senhores do destino dos filhos vem desabando progressivamente, no ritmo das transformações sociais. As consequências disso não são necessariamente ruins, como explica o psicanalista belga Jean-Pierre Lebrun, uma das principais referências na Europa no estudo sobre mudanças nas relações entre pais e filhos: "O que vale é a capacidade dos pais de fazer os filhos crescer. Esse é o bom ambiente familiar, independentemente do desenho que a família tenha". Lebrun esteve no Rio de Janeiro, para participar do 3º Encontro Franco-Brasileiro de Psicanálise e Direito. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu a VEJA.

Por que os pais hoje têm tanta dificuldade de controlar seus filhos?
Isso é reflexo da perda de legitimidade. Até pouco tempo atrás, a sociedade era hierarquizada, de forma que havia sempre um único lugar de destaque. Ele podia ser ocupado por Deus, ou pelo papa, ou pelo pai, ou pelo chefe. Isso foi se desfazendo progressivamente, e o processo se acentuou nos últimos trinta anos. Hoje a organização social não está mais constituída como pirâmide, mas como rede. E na rede não existe mais esse lugar diferente, que era reconhecido espontaneamente como tal e que conferia autoridade aos pais. As dificuldades para impor limites se acentuaram, causando grande apreensão nas pessoas quanto ao futuro de seus filhos.

Existe uma fórmula para evitar que os filhos sigam por um caminho errado?
É preciso ensiná-los a falhar. Uma coisa certa na vida é que as crianças vão falhar, não há como ser diferente. Quando os pais, a família e a sociedade dizem o tempo todo que é preciso conseguir, conseguir, conseguir, massacram os filhos. É inescapável errar. Todo mundo, em algum momento, vai passar por isso. Aprender a lidar com o fracasso evita que ele se torne algo destrutivo. Às vezes é preciso lembrar coisas muito simples que as pessoas parecem ter esquecido completamente. Estamos como que dopados. Os pais sabem que as crianças não ficarão com eles a vida inteira, que não vão conseguir tudo o que sonharam, que vão estabelecer ligações sociais e afetivas que, por vezes, lhes farão mal, mas tentam agir como se não soubessem disso. Hoje os filhos se tornaram um indicador do sucesso dos pais. Isso é perigoso, porque cada um tem a sua vida. Não é justo que, além de carregarem o peso das próprias dificuldades, os filhos também tenham de suportar a angústia de falhar em relação à expectativa depositada neles.

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"Não contribui em nada achar que, pelo fato de o filho usar drogas, tudo está perdido. Além de conviver com seu drama, ele terá de carregar sobre os ombros o peso da angústia dos pais"
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Falando concretamente, como é possível perceber essa diferença no comportamento das famílias hoje?
A mudança é visível. Na Europa, por exemplo, quando um professor dá nota baixa a um aluno, é certo que os pais vão aparecer na escola no dia seguinte para reclamar com ele. Há vinte, trinta anos, era o aluno que tinha de dar satisfações aos pais diante do professor. É uma completa inversão. Posso citar outro exemplo. Desde sempre, quando se levam os filhos pela primeira vez à escola, eles choram. Hoje em dia, normalmente são os pais que choram. A cena é comum. É como se esses pais tivessem continuado crianças. Isso acontece porque eles não são capazes de se apresentar como a geração acima da dos filhos. É uma consequência desse novo arranjo social, em que os papéis estão organizados de forma mais horizontal.

Como o senhor avalia essa mudança? Esse novo arranjo é pior do que o anterior?
Hoje os pais precisam discutir tudo, negociar o que antes eram ordens definitivas. E isso não é necessariamente algo negativo, desde que fique claro que, depois de negociar, discutir, trocar ideias, quem decide são os pais.

Essas mudanças na estrutura social podem influenciar em aspectos negativos como, por exemplo, o uso abusivo de drogas?
Não há uma relação automática. Os mecanismos pelos quais os indivíduos se tornam dependentes químicos são diversos e complexos. A psicanálise ajuda a identificar alguns deles. Vou dar um exemplo. Manter uma criança em satisfação permanente, com sua chupeta na boca o tempo todo, fazendo por ela tudo o que ela pede, a impede de ser confrontada com a perda da satisfação completa. E isso vai ser determinante em sua formação.

Mas o que essa perda tem a ver com o fato de as pessoas enveredarem por um caminho autodestrutivo?
É uma anomalia no processo de humanização. Não nascemos humanos, nós nos tornamos. Isso ocorre quando aprendemos aquilo em que somos singulares entre todos os animais que habitam o planeta. Somos os únicos capazes de falar. Não se trata apenas de aprender ortografia ou usar as palavras corretamente. Quando dominamos a faculdade da linguagem, adquirimos uma série de características muito especiais, como, por exemplo, a consciência de que somos mortais. Aprendemos a construir as pontes que levam a um entendimento superior do mundo e de nossa condição. Isso é o que nos diferencia e nos torna completamente humanos. Um desequilíbrio nesse processo pode ter consequências. É aí que entra a explicação psicanalítica para o ingresso no universo das drogas. Aprender a falar, ou tornar-se humano, é algo que não ocorre espontaneamente. É uma reação a uma perda do estado permanente de satisfação completa com a qual somos confrontados na primeira infância. Ou seja, o processo de humanização começa pelo entendimento de que jamais haverá a satisfação completa. É esse o curso saudável das coisas. Se os pais boicotam esse processo, podem estar cometendo um erro.

Com que consequências?
Isso faz com que estejamos cada vez menos preparados para lidar com o sofrimento da nossa condição humana. Há séculos que as drogas têm algo de paraíso artificial, como diz Baudelaire. Ou seja, uma forma de se refugiar da dor humana, da insatisfação. As drogas sempre serviram para evitar o confronto com esse sofrimento. Quanto menos você está preparado a suportar as dificuldades, mais está inclinado a se evadir, a recorrer a substâncias, sejam as drogas ilícitas, sejam as medicamentosas, para limitar o sofrimento que vai se apresentar. Com o desenvolvimento da farmacologia, essas substâncias se tornaram muito acessíveis. Isso pode criar distorções. É muito mais simples tomar uma Ritalina para não ser hiperativo do que fazer todo o trabalho de aprender a suportar a condição humana. Quando criança, a pessoa já precisa ser confrontada com a condição humana da perda de satisfação. Dessa maneira, na idade adulta, sua relação com o fim de uma paixão amorosa, por exemplo, tem maiores chances de ocorrer de maneira mais aceitável e menos traumática.

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"Hoje os pais precisam discutir, negociar o que antes eram ordens definitivas. Isso não é necessariamente negativo, desde que fique claro que, depois de discutir, trocar ideias, são eles que decidem"
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Por que as drogas têm apelo especial para os jovens?
Eles são mais sensíveis a esse fenômeno porque têm uma tendência espontânea a, quando se tornam adultos, ser novamente confrontados com as dificuldades da existência. É, de certa forma, a repetição daquilo que haviam vivenciado na infância, quando foram, ou deveriam ter sido, apresentados à ideia de perda da satisfação completa, de que não ficariam com a chupeta na boca a vida inteira, por exemplo. Se, no ambiente em que esses jovens vivem, há uma abundância de produtos que funcionam como um meio de evitar essas dificuldades, eles mergulham de cabeça. Como também veem nisso certo caráter transgressivo, todas as condições estão dadas para que eles recorram às drogas.

Que conselhos o senhor daria a pais que têm filhos viciados?
É preciso não achar que, pelo fato de os filhos usarem drogas, tudo está perdido. Isso não contribui em nada. Caso contrário, o jovem drogado, além de conviver com o próprio drama, terá de carregar a angústia dos pais sobre os ombros. Esse é o momento em que os pais devem aceitar que algo não funcionou direito em vez de tratar o problema como se tudo estivesse perdido. Nem sempre está.

Há alguma terapia que funcione contra a dependência química?
Cada caso requer um trabalho. Não existe terapia milagrosa. Há tentativas interessantes, de pessoas que se ocupam de refazer com o sujeito o trabalho de suportar as frustrações, as impossibilidades, os limites. Esse trabalho pode ajudar as pessoas a se livrar da dependência. Não existe até hoje uma droga que chegue a resolver o problema da droga. Momentaneamente, a pessoa pode até ficar contente se conseguir se tornar um pouco menos ansiosa, mas é preciso ver que efeito isso tem a longo prazo.

Existem dependentes irrecuperáveis?
A psiquiatria não é uma ciência universal, ela não diz o que vale para todos, ou mesmo para uma série de pacientes. É preciso trabalhar sempre caso a caso. Mas eu não diria nunca que um viciado em drogas é irrecuperável. Existem outros elementos em jogo que precisam ser considerados. Não há dependência química que não seja fruto de uma interação malsucedida entre o contexto social em que o indivíduo está inserido e o seu trajeto singular desde a infância.

Pouco mais de um mês atrás, no Rio de Janeiro, um rapaz viciado em crack matou uma amiga que tentava ajudá-lo. O pai do rapaz atribuiu a tragédia à dificuldade de internar o filho. O senhor é favorável à internação de dependentes químicos?
Essa é uma questão complicada mesmo. Na Europa, de modo geral, optamos cada vez menos pela internação de dependentes químicos. Quando a internação é necessária, esperamos que ela se dê de forma voluntária. Nos casos em que isso não é possível, a internação dura em média quarenta dias e é acompanhada de medidas administrativas para evitar abusos que já aconteceram, de internações excessivamente longas. Nesse aspecto, minha posição é como a dos europeus de maneira geral. Ficamos um pouco divididos entre manter nosso princípio democrático de que, mesmo doente, cada um tem o direito de dar sua opinião e, por outro lado, ter de reconhecer que em determinadas situações isso não é possível.

Costuma-se atribuir o mau comportamento dos filhos à falta da estrutura familiar tradicional, como a que ocorre após uma separação. Qual a exata influência que isso pode ter?
Uma família organizada de forma aparentemente harmônica não necessariamente faz de um jovem uma pessoa capaz de conviver e suportar o sofrimento inerente à condição humana. Essa capacidade pode ser pequena em famílias aparentemente realizadas, com estrutura sólida. Assim como pode ser enorme em uma família conflituosa, dividida, conturbada. Por isso, não se deve levar em conta apenas o aspecto exterior da família. O que vale é a capacidade dos pais de fazer os filhos crescer. De incutir-lhes a verdadeira condição humana. Esse é o bom ambiente familiar, independentemente do desenho que a família tenha.

O melhor mesmo, então, é aceitar que a existência é sofrida?
O processo é mesmo muito mais complexo do que ocorre com outros animais. Um cão nasce cão e será assim para o resto da vida. Um tigre será sempre tigre. Um humano, no entanto, precisa se tornar plenamente humano. É uma enorme diferença. Esse processo leva uns vinte, 25 anos e está sujeito a percalços. Na Renascença já se falava disso: não somos humanos, nós nos tornamos humanos.


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