Caros colegas. O evento em Porto Alegre - Fórum Mundial dos Juízes - foi o sintoma de que se pode acreditar, ainda. Mesmo contra o pensamento único. Segue o texto, mesmo sem a redação final. Abs
Franchising Judicial ou de como a magistratura perdeu o dignidade por seu trabalho, vivo?
“E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social...” Raul Seixas.
Alexandre Morais da Rosa[1]
1. Para iniciar nosso debate farei uma indagação simples, até ingênua, partindo de um exemplo. Consta na Wikipédia que: “Havainas é uma marca brasileira de chinelos de borracha produzidas pela São Paulo Alpargatas, uma empresa do Grupo Camargo Corrêa. A marca, que possui participação de 80% no mercado brasileiro de chinelos de borracha, comercializa cerca de 162 milhões de sandálias anualmente, dos quais 10% para mais de 80 países dos cinco continentes, podendo ser encontrada em mais de 200 mil pontos de venda. As exportações chegam a 22 milhões de pares (somente nos Estados Unidos está presente em 1.700 pontos de venda). A cada três brasileiros, dois em média consomem um par de "Havaianas" por ano. As vendas da sandália de borracha Havaianas, produto de sucesso da Alpargatas, já representam metade do faturamento da companhia, que no ano passado foi de R$ 1,6 bilhão. O investimento em marketing da marca, de 12% a 13% do faturamento, tem mantido a Havaianas em trajetória de crescimento. O percurso para a sandália ganhar status de marca fashion foi longo. Ele começou a ser traçado em 1994, quando a marca estava em crise, com queda de vendas. A empresa reagiu e lançou, com uma grande campanha de marketing, a Havainas Top, um novo modelo de sandálias de uma única cor. De 1994 a 2000 o produto foi aos poucos "sofisticado" pela empresa em campanhas e em muitos lançamentos. Foi quando modelos e celebridades começaram a desfilar com a sandália nos pés. As exportações aceleraram e a marca ganhou espaço em revistas e nas principais vitrines de moda no mundo.”
2. Imaginemos que qualquer um de nós foi escolhido para ser Presidente da fábrica que produz as sandálias “havaianas”. Para se chegar a tal posto, claro, não se fez concessões “abusivas” aos direitos dos trabalhadores, mas sim aos acionistas da empresa que “acreditaram” nas possibilidades de “Boa Governança”. Pois bem, dia destes sentei-me ao lado de um destes “técnicos de automação” durante um voo. Conversamos amenidades até que ele começou a falar do projeto que estava trabalhando, diria eu, “efusivamente”. Contou-me que a fábrica das Havaianas, em Campina Grande, na Paraíba, era feita de maneira quase manual, com “muitos empregados” e com um “custo de produção” muito alto. A nova fábrica que por minha incompetência não descobri onde é, precisará de poucos trabalhadores e, assim, diminuirá, os custos da produção. A pergunta que faço é: quem de nós, na condição de presidente, não optaria por este modelo mais eficiente? Quem não optar – e na verdade não há opção – perderá o emprego. Isto me fez lembrar o fato de dia destes, também, fui ao Banco depositar uns cheques e aproveitei para dar um olá para o gerente de minha conta. Conversamos banalidades e entreguei os cheques – os juristas diriam cártulas. Qual não foi a minha surpresa quando ele disse que já voltaria. Levantou-se e foi fazer o depósito no caixa eletrônico, entregando-me o comprovante de depósito. Perguntei-lhe o motivo e ele, sem peias, disse-me: estás vendo a caixa do banco. Respondi que sim. Continuou: entre as minhas metas está o aumento dos depósitos no caixa eletrônico. Se eu não cumprir as metas, perco o emprego. Se eu cumprir as metas, ela perde. Entendeu?, perguntou ele. Disse: perfeitamente.
3. Este dois exemplos do cotidiano podem, quem sabe, apresentar uma das chaves do que se passa no contexto brasileiro não só no “trabalho objetivado”, mas também sobre a impossibilidade econômica do “trabalho vivo” no contexto do pensamento único neoliberal. A par disto, também, cabe refletir sobre o que se passa nos últimos anos no campo da Administração Pública e, especialmente, no Poder Judiciário. Dito diretamente: é preciso entender que o Poder Judiciário deixou de ocupar um lugar de “instituição” para se postar como uma mera “empresa” encarregada da solução de conflitos ao menor “custo coletivo”, atendendo a uma lógica pragmática do custo-benefício.
4. Jean Pierre Lebrun aponta que “instituir” significa um lugar de exceção, de primeira vez, de alguma noção de hierarquia que não se perde em consensos horizontais habermasianos, enfim, um lugar de comando no qual a diferença dos lugares promova um certo respeito pelo dito. Não se trata, claro, de resgatar a legitimidade do lugar autoritário, nem muito menos aceitar a “democracia sem fricções”, onde tudo é deliberado em um “ética discursiva”. Isto seria desconsiderar que para além do pano de fundo discursivo há normas constitutivas e ideológicas, jogadas no campo do político. Entretanto, este possível lugar de Referência, anteriormente ocupado pelo Estado, diante do desmonte neoliberal, não pode ser substituído pelo Mercado, como Davos não cansa de dizer que é viável. Slavoj Zizek, neste sentido, adverte que na matriz Davos e Porto Alegre se afirmaram como cidades gêmeas da anti x globalização. Enquanto Davos promove encontros “seguros” em que as discussões eram conduzidas para o convencimento de que a globalização é o melhor para o mundo, Porto Alegre procurava demonstrar que a globalização neoliberal leva a morte. O que não se percebe é que a promessa de morte fascina, sabia o velho Freud. Houve, assim, na última década, uma transferência paulatina, inclusive das personalidades, do foro de Porto Alegre para Davos, quando não aparições performáticas em Porto Alegre, rumo a Davos. Mais uma vez o pensamento único prevaleceu... (Rui Cunha Martins).
5. Retomando o argumento, pode-se dizer que os “Aparelhos Ideológicos” (Athusser) hoje são governados por práticas de gestão administrativas da eficiência, cujo preço democrático é percebido por poucos. E os que percebem, de alguma maneira, encontram-se coarctados na possibilidade de resistência. O sintoma disto pode ser visto pelos inúmeros Relatórios que o Conselho Nacional de Justiça - CNJ obriga a preencher a todo o momento. O culto pela “avaliação”, até porque não se sabe, de fato, quais são os critérios de quem analisa, se é que analisa, ganha contornos patológicos nesta virada de século, tudo em nome da “Boa Governança”. Cada vez mais os magistrados são obrigados a enquadrar suas atividades em fichas técnicas de cumprimento de obrigações conforme o Protocolo, também editado ou reiterado pelo CNJ, com o primeiro reflexo de se jogar conforme as regras do jogo, a saber, cada vez mais só se valoriza o que gera bônus, transformando a atividade jurisdicional em uma verdadeira atividade de “franqueado jurisdicional”. Claro que abusos acontecem no Poder Judiciário. Contudo, eles não podem ser o “Cavalo de Tróia” da eficiência. O resultado mais evidente é a “homogeneização” das decisões, voluntariamente ou de maneira forçada (Súmulas, Reclamação, Recusa recursal, etc.), com a transformação dos antigos juízes em meros gestores de unidades jurisdicionais. Aliás, quem não cumpriu a Meta 2 do CNJ preencheu uma proposta de gestão do acervo para 2010.
6. Aldacy Rachid Coutinho, professora de Direito do Trabalho da UFPR, aponta que dentre as diversas questões ocultas na atualidade, algumas podem e devem ser enfrentadas. Não se pode mais fingir cinicamente que não se sabia! Passamos de um Judiciário em que a figura do juiz era autônoma para uma “jurisdição monitorada”. Basta perceber que os Tribunais controlam desde a quantidade de julgados até o numero de audiências designadas, bem assim indaga o motivo de não se marcar, eventualmente, audiências em alguns dias... Este tipo de ingerência abusiva implica na adoção eficientista da magistratura, numa verdadeira confusão do que se configura o “trabalho” da magistratura. A lógica, perdoem-me a possível ingenuidade, é a conversão do que ainda restava – para usar categorias fora de moda – de “trabalho jurisdicional vivo” em “trabalho jurisdicional objetivado”, bem demonstra Leonardo Wandelli. É impossível continuar-se a fingir/negar/mascarar a quantidade de colegas nossos que se tornaram dependentes químicos (fluoxitina, ritalina, cocaína, maconha, psicofármacos em geral), com irritação desmesurada, separações, assédio moral contra servidores da Justiça e familiares, terceirização das decisões (nunca se viu tanta dependência aos ditos assessores)... Há uma verdadeira perda das referências simbólicas que antes seguravam a atividade jurisdicional, podendo-se arriscar uma verdadeira “Síndrome do Pânico Jurisdicional - SPJ”. Entenda-se por esta SPJ a verdadeira substituição da atividade jurisdicional por um “curto-circuito” da atividade ritualizada de julgar, transferida para decisões já-dadas, de maneira acelerada, cuja angústia dispara o pânico. Jorge Forbes fala “da angústia própria à decisão. Não há decisão que não seja arriscada e que não induza à perda. O mal chamado estresse nada mais é do que a consequência do medo de decidir, que provoca o empanturramento de opções.” É que o sujeito juiz encontra-se num dilema: se decide como deve decidir, com reflexão e enunciação, demora mais do que o Sistema exige, e traz consigo a acusação de julgar contra o que já está estabelecido, dando falsas esperanças....; se decide como já-está-decidido apaga seu nome da decisão, a saber, não faz diferença quem assina, pois qualquer um poderia assinar esta decisão (sic) sem enunciação. E uma das características da Modernidade foi a de legar o lugar da enunciação, a saber, de alguém pontuar do lugar do juiz, transformada hoje em dia numa verdadeira lógica de “Franchising”, modo pelo qual a administração da Justiça, via Análise Econômica do Direito – Law and Economics, promove um sistema de decisões judiciais fixadas, ex ante, pelo franqueador. A licença da marca é previamente valorizada – uma decisão do TST, do STJ ou STF, a qual implica num reconhecimento do valor da decisão no mercado jurisdicional, sob o pálio de uma efusiva e – arrisco – canalha “eficiência”.
7. Como exemplo desta lógica homogeinizante pode-se invocar o processo eletrônico, o qual pode ter funções democráticas, mas na lógica que está sendo pensado servirá para dar “conforto jurisdicional ao julgador, dado que as “fórmulas” estarão, em breve, pré-dadas pelo Franqueador e o trabalho do Juiz-Franqueado será o de mero alimentador do Sistema, então, economicamente eficiente. A resistência de alguns setores da magistratura é tida como de gente ultrapassada, conservadora, quando, na verdade, é gente que procura demonstrar que não quer ser um franqueado. Contudo, estes resistentes, estão perdendo a batalha em nome da “segurança jurídica” e diminuição do “custo país”.
8. Com isto, em breve, da velha tarefa de julgar sobrarão apenas lembranças nostálgicas? O ambiente democrático que permeava o Poder Judiciário é tomado por um totalitarismo em que, diante da “burocratização eficiente” da atividade, pouca democracia se poderá buscar (Marco Marrafon). O tempo de um magistrado cada vez mais será tomado pelo preenchimento de infinitos relatórios de gestão, sistemas de monitoramento, coerções de uniformidade, e a consequência é que não restará, parafraseando Lebrun, nem tempo, nem espaço, e sobretudo desejo para que alguns assumam essa função, de tanto que estarão sujeitos a tarefas de controle e de gestão. Dito diretamente: Gestão sem Jurisdição. Alguns poderão objetar que não é assim, nem que os passos dados na história recente indicam neste sentido. Por isto vale a pena insistir nos sintomas de tal caminhar, lembrando-se sempre que os modelos totalitários sempre se impuseram em nome do combate à corrupção, como no golpe de 1964.
9. Mas não é só isto. Há mais. Por que o subsídio dos juízes brasileiros, após a EC 45, é um dos maiores da América Latina? Ao pensar sobre este tema cabe a advertência de Milton Friedman: não existe lanche grátis! Dito de maneira mais direta: alguma coisa se esconde por detrás deste movimento, manifestamente ideológico. No pós Constituição de 1988 o Judiciário passou a responder com maior veemência às demandas populares, especificamente no cumprimento das promessas da Modernidade, na efetivação dos Direitos Fundamentais (Lenio Streck, Ingo Sarlet). Embora não tenha sido a pretensão do próprio Poder Judiciário, no pós/88 (Werneck Vianna), a magistratura passou a ser a alavanca de modificacões estruturais, com o aumento do “custo país”, a saber, a atividade econômica precisava compor o “custo da produção” com o fator Poder Judiciário, manifestado pelo binômio “previsibilidade” e “eficiência”. Isto porque houve uma postura de parcela significativa da magistratura no sentido da Justiça Social.
10. Cabe marcar que o “Princípio da Eficiência” produziu um câmbio epistemológico do Direito, tornando a forma de pensar a partir de meios, reproduzindo vítimas. Claro. Vítimas de um modelo de Estado do Bem Estar Social não realizado e que se encontra, paradoxalmente, em desconstrução. Dito de outra maneira, o Estado Social é imaginariamente desfeito sem nunca ter sido, efetivamente, erguido. Trata-se da destruição de ruínas-sociais. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho sustenta: “Neste quadro, não é admissível, em hipótese alguma, sinonimizar efetividade com eficiência, principalmente por desconhecimento. Afinal, aquela reclama uma análise dos fins; esta, a eficiência, desde a base neoliberal, responde aos meios.” O discurso neoliberal promove, assim, uma “despolitização da economia”, como argumenta Zizek, abrindo espaço para que o significante da eficiência penetre no jurídico como sendo a nova onda redentora, verdadeiro “grau zero” (Barthes) da releitura do Direito. A economia acaba se tornando algo praticamente sagrado da “Nova Ordem Mundial”, sem que se possa fazer barreira pelo e no Direito (Avelãs Nunes). A eficiência inserida no caput do art. 37 da Constituição da República, percebida desde o ponto de vista de Pareto, Coase ou Posner, passa a ser o critério pelo qual as decisões judiciais devem, necessariamente, submeter-se. Não se trata mais de num cotejo entre campos – econômico e jurídico –, mas na prevalência irrestrita da relação custo-benefício. Este discurso maniqueísta entre eficientes de um lado e ineficientes de outro, seduz aos incautos de sempre, os quais olham, mas não conseguem perceber o que se passa. A questão é mostrar que este é um falso dilema, adubado ideologicamente (Julio Cesar Marcellino Jr). Sair deste quadro de idéias colonizadas é tarefa individual. Faz-se ao preço de um estudo sério que não se apazigua com frases feitas emitidas pelo senso comum teórico (Warat) e vendidas no mercado de decisões judiciais. Até porque as utopias da Modernidade não geram mais o engajamento de justificar uma razão para morrer. Um fim último, perdido no mercado das pequenas satisfações pulsionais diárias, efêmeras, cuja satisfação não implica na prometida completude. Mesmo neste quadro parece que o engajamento se perde na preguiça e ausência de esperança de um projeto coletivo. O individualismo hedonista, nesta quadra, no campo do Direito Estético de hoje, esbarra no muro das lamentações, sempre. Os sonhos coletivos viraram souvernirs, mercadorias. Camisetas de “Che Guevara” sem que saiba quem é, ou o que representou... são um exemplo limítrofe.
11. Com efeito, a resposta ao questionamento, já antevista no Documento 319 do Banco Mundial, passava por Reformas pontuais e silenciosas (Gerivaldo Neiva). Não sem razão a publicação da FGV e do Ministério da Justiça (I Prêmio Innovare) sobre o Judiciário chama-se: A Reforma Silenciosa da Justiça. Antônio Gramsci apontava que a cooptação dos intelectuais pelo Sistema Hegemônico era uma das estratégias de poder utilizadas para domesticar o pensamento crítico. A atualidade desta categoria se manifesta na maneira pela qual as decisões no âmbito do Poder Judiciário brasileiro se apresentam. O cotejo do Documento n. 319 do BID, dentre outros, aliada a frase de Milton Friedman de que o Direito é por demais importante para ficar nas mãos dos juristas bem demonstra a pretensão de pensamento único, neoliberal, em que o Poder Judiciário é metaforizado como uma grande orquestra, a saber, por um maestro (STF), com músicos espalhados nos diversos “instrumentos”. Estes músicos, ainda que arregimentados, eventualmente, por sua capacidade técnica e de reflexão, ficam obrigados a tocar conforme indicado pelo maestro, sob pena de exclusão da “Orquestra Única”. Não há outra para concorrer; ela é a portadora da palavra. Diz a Verdade. Ainda que alguns dos músicos pretendam uma nota acima ou abaixo da imposta, não lhe dão ouvidos, porque o diálogo é prejudicado. O slogam é: toque como queremos ou se retire. A “Orquestra do Poder Judiciário” ainda está em formação e a harmonia pretendida pelos donos do poder foi se adaptando por Emendas Constitucionais e Reformas Legislativas. Primeiro, claro, a (in)eficiência de um Poder paquidérmico, caro, oneroso, devolvido a sua grande missão: garantir os contratos e a propriedade privada, em nome da confiabilidade no mercado internacional. Para tanto foram articuladas diversas técnicas: 1) Súmula vinculante: por ela o maestro (STF) pode impor, definitivamente, a nota a ser tocada, retificando a interpretação mediante uma simples Reclamação, podendo, ainda, responsabilizar o músico juiz faltoso; 2) Reformas legislativas: a) abreviação do julgamento, mesmo sem o estabelecimento do contraditório; b) Relativização da coisa julgada inconstitucional (Paolo Otero iniciou e ganhou fôlego no Brasil), a qual quebra a ficção que se estabelece o Processo: a coisa julgada, bem sabia Carnelutti. A ficção maior do sistema, a coisa julgada, virou, também, flexível. Há uma reflexibilidade no ar... c) Repercussão Geral, em que se decide em bloco os temas ditos mais relevantes; d) jurisprudência dominante (CPC, art. 557); f) Súmula impeditiva de recurso (CPC, art. 518); g) julgamento do mérito sem processo (CPC, art. 285-A); ..., com o toque fundamental.
12. O fundamental, neste contexto, é a aplicação das lições de Gramsci, a saber, era preciso cooptar os atores judiciais, e a melhor maneira de assim proceder é pagando bem. Diz o ditado popular que pagando bem mal não tem. E a sabedoria popular, no caso, pode ser invocada, porque com ela, entende-se o motivo de o subsídio dos magistrados ser o teto do funcionalismo. Assim, de um momento para o outro, sem alarde, a classe dos juízes, então pertencente ao que se denominava de média, ganhou um up-grade; passou a fazer parte da Elite que consome e, então, passa a defender seus privilégios, os quais acabam se confundindo com os demais, ou seja, grande parte é farinha do mesmo saco. O lanche (subsídio e auxílio moradia), pois, não foi de graça! Pagou-se com a possibilidade do fim da Independência e da Democracia. O resultado efetivo foi um grande “cala a boca” nos juízes que passaram, não raro, a adotar uma postura mais complacente, sem alardes, nem contestações… de ver a banda passar cantando coisas de amor…
13. Isto contracena com o quadro de músicos formados por, pelo menos, dois corpos distintos. O primeiro de velhos músicos, na sua maioria acostumados e desde antes cooptados pelo poder, sem qualquer capacidade crítica e que ocupam os Tribunais da Orquestra. Talvez os “ceguinhos”, “catedráulicos” e “nefelibatas” apontados de Lyra Filho. Os segundos, mais jovens, bem demonstrou Werneck Vianna, fruto de uma pedagogia bancária (Paulo Freire), sem fundamentação filosófica adequada, alienados da dimensão humana e capazes de decorrar milhões de regras jurídicas, somente (Lédio Andrade e Horácio Rodrigues). Logo, incapazes, na sua maioria, de qualquer resistência constitucional, até porque formados na cultura manualesca. A ambos grupos, todavia, deve-se acrescentar dois fatores: a) a sedução cooptativa de um subsídio polpudo. Imaginariamente aderidos, vestem ou querem vestir Prada por possuírem, agora, condições financeiras de consumir. Curtir a vida de maneira diversa dos magistrados antes da Constituição/88. Viajam, compram, estão preocupados no consumo de objetos da moda. Aceitam facilmente o convite para adentrar neste mercado de ilusões, ficando, pois, na mais ampla “ausência de gravidade”, bem demonstrou Charles Melman. Os novos carros do mercado, a nova coleção da estação ocupa o lugar de algo que pode importar, “consumindo”, por assim dizer, o sujeito do enunciado. Torna-se uma maria-vai-com-as-outras. Pensar e resistir, para que? Quer gozar!; b) Este poder gozar, entretanto, cobra um preço. A alienação da capacidade crítica e uma obscena pretensão de eficiência, de quantidade, na melhor linha da Análise Econômica do Direito (Posner), implica o apagar do sujeito. O sintoma desta situação se mostra na aderência sem precedentes aos precedentes, numa americanização da “Orquestra Judiciária Brasileira”. De outro lado, também, cabe apontar que o poder gozar exige, cada vez mais, números de julgamentos, apresentações sinfônicas perfeitas, conforme a partitura, sem limites. Bulimina, stress, cardiopatias, baixa auto-estima, adições, dentre outras saídas, quando não budismo, induísmo, seitas, Juízes de Jesus, acabam se instalando.
14. Christophe Dejours aponta o dilema contemporâneo do trabalho: entre o “desespero” e o “reencantamento”. Isto se aplica do trabalho da magistratura. Após a CR-88, cabe insistir, o trabalho da magistratura modificou-se brutalmente. Antes decidiam-se questões individuais e em velocidade morosa, por assim dizer. No pós/88 o Poder Judiciário é demandado por questões sociais, com a aplicação horizontal dos direitos fundamentais, ingerências na liberdade de contratar (CDC, função social dos contratos e da propriedade, dentre outras questões), com muita aceleração. Daí, em muito, o mal-estar da magistratura individualmente entendida. Claro que ao se falar do coletivo invoca-se o individual (Agostinho Ramalho Marques Neto). Não porque são idênticos, pois cada singularidade é específica, mas justamente porque no enredo destas novas demandas, uma surge como fundante do outro campo, dado que não faz sentido falar-se em exterioridade neste lugar. A atuação do magistrado na seara trabalhista era a de aplicar no caso específico o direito incidente, no paraíso positivista da subsunção da regra geral a um caso específico. Entretanto, nos dias de hoje, com a constitucionalização da vida cotidiana, com o trabalho passando a ser produto de um mercado sem fronteiras e sem limites, via processo flexionado e célere, as coordenadas simbólicas da resposta se modificaram. De um lado o protagonismo na realização do Estado Democrático de Direito e, por outro, o aumento da angústia da função, do “desespero”.
15. Não se trata do aspecto negativo da perda da função, mas das consequências que a função implica em sujeitos que enunciam, do seu lugar. E, claro, há um ser humano no lugar de juiz, cujas relações familiares, de identificação individual e política são atingidas diretamente pelo exercício (in)autêntico da magistratura. Mas discutir o lugar do magistrado é tarefa proibida nos diz Pierre Legendre. Ideologicamente é melhor não deixar ver o sujeito que se esconde por detrás da toga. Problematizar este lugar é uma atividade clandestina, de borda, que procura dialogar com o imaginário social e o real de um sujeito. Enfim, há uma centralidade para o sujeito em seu reconhecimento diretamente ligado à sua atividade judicante, cujo afastamento não pode ser universalizado. A saber, não se trata de um sujeito diverso, totalmente diferenciado no Foro e outro no seu dia-a-dia. O exercício da magistratura causa um efeito decorrente da função. Isto é das leis da linguagem. Não se trata de um conteudismo, ou seja, de um conteúdo que possa ser colocado em todo o que exerce a magistratura. Não! A questão passa sobre os efeitos que o discurso promove no sujeito e seu lugar, bem assim sobre as possibilidades de “reencantamento”.
16. Resistir a isto, todavia, é ir contra a maré das “Almas Belas” (Zizek), gente que em nome do politicamente correto, da aceitação das ditas evoluções sociais, aceita deferir toda-e-qualquer-pretensão para não posar de reacionário, totalitário e conservador. Aceita o jogo do mercado, fabricando e vendendo decisões conforme a moda da estação. Trata-se de um lugar, um lugar que deveria ser de Referência, um lugar cuja função é a de dizer, muitas vezes, Não, disto eu não participo! Entretanto, para que se possa dizer Não é preciso se autorizar responsável, embora o discurso do senso comum o desresponsabilize, coisa que a grande maioria não se sente, por se estar eclipsado em nome do direito do conforto. Este lugar do Julgador precisa ser ocupado com responsabilidade pelo que se passa na sociedade. Não para se tornar o salvador, o novo Messias, e sim para recolocar o Direito no lugar da Referência, de limite. Por aí se pode entender, quem sabe, pelo qual as posturas reacionárias, de indiferença, voltaram com todo o vigor. Pode ser que agora os juízes brasileiros estejam mais interessados nas viagens das próximas férias, em trocar de carro, em comprar as roupas da moda, porque, enfim, na contabilidade do capital, este foi o preço que se pagou. Existem, claro, os que se dão conta e que precisam apontar para isto. A estes se dirá que perderam o juízo... A grande maioria dos Juízes brasileiros não sei se vestem Prada, mas com certeza querem vestir!
17. Um exemplo disto pode ser indicado. O enfrentamento da questão por políticas judiciais de “punitive demages”, ou seja, de decisões que além da reparação apliquem ‘sanções pedagógicas’, só aparentemente resolvem a questão. Implicam na aparente solução. Entretanto, no contexto dos “litigantes habituais”, esta condenação será “contabilizada” nos “custos de produção” e servirá apenas para uma pequena parcela beneficiada, bem como para aplacar a “sede de Justiça Social” de alguns aplicadores do Direito. O pano de fundo da questão não é tocado. E ouso dizer: não pode. Tocar na matriz da questão é impossível por dois fundamentos básicos. O primeiro é que o modelo capitalista mantêm, mesmo nesta compreensão, intocável a troca do trabalho por dinheiro, e estas decisões servem, no fundo, para relegitimar o sistema. O segundo é o de que se atacada a matriz do problema a Justiça do Trabalho perderá, em curto prazo, o glamour. Esta última afirmação é forte e precisa ser lida sem o primeiro sentimento de auto-preservação. Enfim, superada, de fato, a compreensão do trabalho objetificado, no horizonte, a Justiça do Trabalho perde seu sentido. Enfim, se é manipulado, mesmo com as melhores intenções. O sistema neoliberal colocará, no fim, dois freios. O primeiro pelos Tribunais Superiores, como já aconteceu nos EUA e, por último, contabilizará as condenações nos “custos” futuros. A vitória, pois, é de Pirro.
18. Parece, assim, complicado em falar em Não desde dentro da Orquestra. Porque assim proceder pode significar a impossibilidade de gozar na esfera privada, mediante a mais-valia cobrada na esfera pública, tornando-se quase que o músico solista, incapaz de fazer frente à Orquestra Total. Fundar uma Orquestra paralela é impossível. Talvez, então, seja necessário sabotar a Orquestra Principal, assumindo-se, com Gramsci, a condição de intelectual orgânico. A questão é saber se se pode pedir dos magistrados brasileiros isto? Neste estado de coisas, talvez, o ato que se possa fazer seja o de apontar para a cooptação e mostrar que ao mesmo tempo em que os atuais ganharam tudo, os novos magistrados, pós 2004, não terão mais aposentadoria integral, justamente foram estes que deram os aneis. A questão é que quando se dá os aneis, não raro, a mão vai junto..., dia Ângela Konrath.
19. O que se pode pedir ao Poder Judiciário e aos magistrados em 2010? Não mais do que eles podem dar. Esta advertência de Avelãs Nunes precisa ser levada a sério. A escolha está aí: ou o magistrado aceita a lógica de um Presidente das Havaianas/Gerente de Banco, ou garante a dignidade da função. Umberto Eco, em recente entrevista, disse: “Em 1931, o fascismo impôs aos professores universitários – 1200 na época – um juramento de fidelidade ao regime. Apenas 12 recusaram e perderam seus empregos. Talvez os 1.188 que ficaram tivessem razões nobres. Mas os 12 que disseram não salvaram a honra da universidade, definitivamente, a honra do país.” Pensar novas coordenadas de atuação, bem assim sustentar posturas críticas desde dentro do Poder Judiciário, sem medos, nem acovardamento, na perspectiva do “reencantamento” é a aposta desta mesa. Por fim, caso tudo que falei tenha sido apenas uma projeção sem sentido para os outros, terei pelo menos a companhia imaginária de Barthes que disse: "A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões.
[1] Realizou estágio de pós-doutoramento em Direito pela Faculdade de Direito de Coimbra e UNISINOS. Doutor em Direito (UFPR). Juiz de Direito. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado da UNIVALI e da UFSC. alexandremoraisdarosa@gmail.com. (http://lattes.cnpq.br/4049394828751754).