Rumo à praia dos Juizados Especiais Criminais: sem garantias, nem pudor
Alexandre Morais da Rosa*
“Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”
Tancredi
“Todos los actos de drama de la historia mundial se han desarorollado ante un coro popular que rie.” Mikhail Bakhtin
Sumário: I – Uma cena singular: o biquíni, a calcinha e o vento intruso; II – Na balada do “Manifesto contra os juizados especiais criminais” (Miranda Coutinho); III – A eficiência e o ‘Complexo de Nicolas Marshall’; IV – Mais do mesmo; V – Para terminar de onde partirmos: “Garantismo neles!”. Palavras chaves: Garantismo. Juizados Especiais.
I – Uma cena singular: o biquíni, a calcinha e o vento intruso
1. A cena é singular: – assisti da sacada do apartamento em Balneário Camboriú/SC – janeiro de 2004 , dia quente de sol, mãe e filha caminhavam lado-a-lado em direção à praia; a mãe de cerca de 35 anos, cadeirinha na mão e biquíni “asa delta”, cavado, o qual deixa para imaginação o estritamente essencial, enquanto a filha de cerca de 12 anos andava ao seu lado de saia rodada e “top”. Até aí nada demais. Eis que de repente surge uma rajada de vento intrusa que levanta a saia da menina, acompanhado de um “grito” assustado da mãe, seguido de um olhar panorâmico para ver se alguém havia visto as “calcinhas brancas” da filha. Seguiu-se ao evento uma forte repreensão da genitora: “onde já se viu ficar mostrando as calcinhas” e, um olhar assustado da menina.
2. Imediatamente lembrei-me do convite de Alexandre Wunderlich para escrever algumas palavras sobre os Juizados Especiais Criminais e esta cena não poderia melhor representar o que se “assiste” na prática desta inovação constitucional. Decerto há uma certa perplexidade no leitor, a qual irei, se possível, retirar pouco-a-pouco, se é que conseguirei.
II – Na balada do “Manifesto contra os juizados especiais criminais” (Miranda Coutinho)
3. Miranda Coutinho em seu “Manifesto contra os juizados especiais criminais”[1]desnuda a situação do Direito Penal brasileiro que sofre um processo de maturação sumária de alguns laboratórios restritos, sem qualquer preocupação acerca da produção democrática da legislação, admitindo-se, sem maiores reflexões, a “novidade”. É preciso reconhecer que não houve o devido debate democrático – Habermas[2] – para implementação dos Juizados Especiais, sendo que mais uma vez o Congresso Nacional, na ânsia de dar uma resposta simbólica à impossibilidade de estabilização social – fruto da exclusão reinante (Dussel[3]) –, acabou repristinando (Streck), na via dos Juizados Especiais, “tipos penais” em total desuso (Kant de Lima). Partindo-se do modelo Garantista – Ferrajoli - de Direito Penal Mínimo[4], ou seja, como última ratio, os princípios da lesividade, necessidade e materialidade estão flagrantemente violados pela Lei n. 9.099/95. A regulamentação de condutas deve se ater à realização dos Princípios Constitucionais do Estado Democrático de Direito, construindo-se, desta forma, um modelo minimalista de atuação estatal que promova, de um lado, a realização dos Princípios/Direitos Fundamentais, e de outro, impeça suas violações, como de fato ocorre com a explosão legislativa penal contemporânea.
4. Dito de outra forma, há uma patente utilização ideológica na manutenção dos sujeitos em fila (Legendre[5]), especialmente em nome da doutrina da tolerância zero[6], como se a simplificação de procedimentos pudesse representar a panacéia de toda-e-qualquer-situação social, as quais estavam sendo despenalizadas[7], na esteira das Regras de Tóquio, e agora foram canalizadas para via dos Juizados Especiais Criminais, escondendo nessa sumarização a deficiência teórica tanto do Poder Legislativo como dos atores jurídicos; além de uma legitimação simbólica do sistema punitivo, como afirma Cirino dos Santos[8].
5. Em tempos de crise generalizada da ‘segurança pública’, muito em decorrência do modelo adotado no Brasil[9], as “inovações” trazem consigo a marca da “redenção”. Os discursos ingênuos e otimistas passam a mover a “turba” (Ramidoff[10]) dos neuróticos clivados sedentos por um paranóico salvador, sob o lema: “Os Juizados Especiais Criminais irão dar maior celeridade tanto na apuração como na resposta estatal de delitos de menor potencial ofensivo”. Para tanto, o sistema apresentou novas vedetes (transação, suspensão do processo, novo procedimento), destacando-se, dentre elas, a “transação penal” que, salvo alguns poucos estudos sérios, como de Geraldo Prado[11], acabou sendo retransmitida de forma bancária (Paulo Freire), aos “nefelibatas” (Lyra Filho) de plantão, repetindo-se os termos da lei. Resultado disso é que não se sabe ainda o que se constitui o fundamento e nem mesmo a dimensão do instituto, como bem destacou Miranda Coutinho em seu Manifesto. A lógica é a do maquinista que não sabe como funciona o trem e se restringe a apertar o botão, não se preocupando em entender como nada mais funciona, isto porque enquanto o botão estiver funcionado, tudo bem. Ouso dizer que nem se podia esperar outra coisa.
6. A par da deficiência dos “atores jurídicos” em poderem refletir sobre alguma coisa - lembro-me de diversos colegas que esperaram ansiosamente pela edição de algum livro editado pelo senso comum teórico (Warat) que pudesse, enfim, dizer o que a lei diz.... E, como os membros do “Monastério de Sábios” acabaram escrevendo obras rapidamente – afinal, a vendagem e o lucro são imediatos – pouca coisa pode ser acrescida aos termos da lei, salvo uma ou outra referência ao modelo americano, mas sempre ressaltando que o brasileiro é diferente... Mesmo repetindo-se a lei, a falta (Lacan) estava aplacentada e podia-se, enfim, aplicar a lei.
7. É evidente que na prática forense remanesce uma incapacidade de cunho positivista rasteiro (Streck[12]), permeada por certo constrangimento devido ao desconhecimento de instrumentos necessários à implementação das promessas da modernidade e Constitucionais, especificamente no processo penal das garantias penais e processuais[13]. Também é constatável a ausência de comprometimento político dos juristas, sob a cômoda alegação da necessidade de demissão valorativa. O reconhecimento da existência de um ser antes do pesquisador/intérprete, implica a admissão da influência de valores na elaboração teórica e decisões, afastando, portanto, o mito da neutralidade. Essa contaminação pelos valores desmascara a dita neutralidade impossível de ser obtida, mas cantada em prosa e verso como sendo pressuposto da realização científica e da decisão. De fato, a discussão teórico-prática encontra-se inserida no contexto da ação e, portanto, permeada indissociavelmente pelos valores. A demissão (in)consciente desse habitus[14] de fazer ciência e direito é condição de possibilidade para compreensão (Heidegger), não necessariamente completa, da realidade que nos circunda. A própria opção da neutralidade implica a aderência aos valores hegemônicos. É que a regra ou o fato só existem após interpretados e, assim, por estarem imbricadas aos indivíduos, inexistem condições do prometido despojamento. Tal construção tem o escopo, no fundo, de levar à pasteurização dos valores do jurista, ou seja, a extirpação do germe valor[15].
6. Ao acreditar que se demitiu dos seus valores, automaticamente acopla e assume os hegemônicos, reproduzindo o status quo. Por deficiência técnica e de vontade, na prática jurídica, acabam-se reeditando os velhos conceitos, sem qualquer oxigenação constitucional (controle material da constitucionalidade, inclusive em face dos princípios)[16] ou mesmo valoração crítica da lei[17]. Vigora, na sua plenitude, como bem destaca Arruda Jr[18], um fetiche pelo invólucro. Esse fetiche se dá tanto em relação às leis, cumprindo-se somente por serem leis, sem qualquer ponderação sobre a validade material e também, até em maior grau, devido a incapacidade hermenêutica dos atores jurídicos (Streck[19]), com recurso step by step aos ditos doutrinadores renomados e a jurisprudência consolidada numa busca do “ideal do eu” sem fim[20].
7. O jurista tradicional, vinculado que está ao positivismo rasteiro, informado por apropriação aparentemente despolitizada de Weber, acaba manifestando-se como um jurista autista, longe do mundo da vida, agarrado na segurança do mundo lógico e crente - porque só pode ser fé - que cumpre seu papel de dizer o Direito[21]. Esse jurista(sic) geléia geral acaba, portanto, não dizendo o Direito, mas o que mandam que diga: é incapaz de pensar, pasteurizado de valores, é o jurista papagueador.
8. Assim é que em nome da “constitucionalização” (às avessas e rasteira) do processo penal, o sistema de garantias preconizado pela própria Constituição foi mandado às favas. E os argumentos malabaristas para aceitar o nóvel instrumento de “controle social” (com as implicações daí advindas), bem serviu e serve para a “estrutura”. Aquela “aparafusada” que foi dada pela edição da Lei de Contravenções Penais na sociedade então urbana, para conter a população rural que migrava para cidade, foi reeditada não mais na via penal, mas sim na via processual, com o foco de abrangência mais amplo. Os crimes e contravenções são os mesmos; o que muda é a eficiência do medo, da exclusão e da sanção. Enfim, a sanção mais perto da população excluída de forma mais eficiente. Aí reside a verdadeira eficiência dos Juizados Especiais Criminais.
9. O pior de tudo isto é que os novos arautos defensores dos Juizados Especiais, sem que tenham qualquer modelo de legitimação do Direito Penal numa sociedade complexa e às margens do capitalismo, acabam se acoplando ao modelo de maneira irrefletida, mas com “unhas e dentes”. Exercer as funções nos JECrim passa a ser uma atividade voltada aos anseios “de defesa social”, na linha mais eficiente, ou seja, aplicar uma sanção que pela rapidez e, na grande maioria das vezes, inconstitucionalidade, deveria receber o “certificado ISO 9002”.
III – A eficiência e o ‘Complexo de Nicolas Marshall’
10. A sociedade, anota Miranda Coutinho[22], procedeu a um câmbio epistemológico, abandonando a relação causa-e-efeito para engolir a eficiência como parâmetro de atuação, erigida até a princípio constitucional (CF/88, art. 37, caput). Essa busca, ou melhor, compulsão por eficiência faz com que exista a pretensão de melhoria na qualidade (total) dos processos em nome do consumidor, transformando unidades jurisdicionais em objeto de “ISOs” e outros mecanismos articulados para dar rapidez às demandas[23]. O Processo e o Direito Penal não ficam à margem dessa questão, implementando-se tutelas de urgência, mecanismos de abreviação dos processos, mesmo que à custa do direito de defesa e do devido processo legal. O que vale, pois, é a eficiência da condenação, muitas vezes, na linha dos tribunais nazistas[24], nos quais a condenação e execução eram sumárias. É importante destacar que Cappelleti[25] já havia indicado os perigos de tal efetividade que move a turba histérica de movimentos contemporâneos na busca de preencher a falta constitutiva de segurança pelo agigantamento do modelo repressor, avivado em discursos da Lei e da Ordem e encontrado sob a figura do “Complexo de Nicolas Marshall”[26].
11. Talvez muitos não se recordem do Juiz Nicolas Marshall. Por isso vale a pena lembrar que durante certo tempo foi exibido um seriado de TV no qual o Juiz (Nicolas Marshall) era um respeitável e honrado magistrado durante o dia, cumprindo as leis em vigor, os prazos processuais, os direitos dos acusados e, no entanto, no período da noite, longe do Tribunal, com roupas populares, cabelos soltos - já que os tinha compridos -, decidia “fazer Justiça”. O seriado, por isso, denominava-se “Justiça Final”. Pretendendo o bem da sociedade e, antes das vítimas – evidente -, procurava por todas as formas aniquilar, matar e “resolver” os casos criminais (leia-se “criminosos”) que conhecia, ao arrepio da Lei, claro. Acreditava que a Justiça ordinária era incapaz de “dar a devida resposta aos criminosos” e, então, por suas mãos, enfim, aplicava a (sua boa) Justiça. Era um espécime que mesmo exercendo funções estatais, preferia, se esgueirando no submundo, protagonizar a função de Justiceiro incontrolado, movido por paixões pessoais. Esse seriado retirado do fundo baú faz surgir uma reflexão importante atualmente: Considerando que os resultados de controle social da atuação como Juiz não resultam no que se esperava, será que está justificada a atuação como vingador social?
12. A resposta é negativa! O preço de se viver em democracia é o respeito pela diferença e proibição da vingança privada. O Estado é quem assume a legitimidade para aplicar qualquer sanção, mediante um Juiz Imparcial, não se podendo admitir a vingança pessoal, sob pena de configuração de crime (CP art. 345). Todavia, diante da ineficiência dos mecanismos de controle existentes, muito em decorrência do modelo repressor adotado, o qual reproduz a injustiça social reinante, valendo por todos a crítica formulada pelo saudoso Professor Alessandro Baratta, acabam surgindo aqueles que “sabem o que é melhor para sociedade” e buscam aplicar as penas pelas próprias mãos: surgem os Juízes Justiceiros, inspirados no herói Nicolas Marshall. Cuida-se, no fundo, do “Complexo de Nicolas Marshall”. Esse complexo atua na maioria dos casos de forma inconsciente na busca legítima de se cumprir o papel jurisdicional. Acaba se instalando na prática jurídica nos espaços de discricionariedade (ilegítimos) abertos na legislação, tão bem criticados por Ferrajoli (Direito e Razão), os quais deixam para “bondade” do órgão julgador a aplicação da Lei.
13. O problema é saber, como diz Miranda Coutinho, qual é o critério, ou seja, o que é a ‘bondade’ para ele. Um nazista tinha por decisão boa ordenar a morte de inocentes; e neste diapasão os exemplos multiplicam-se. Em um lugar tão vago, por outro lado, aparecem facilmente os conhecidos ‘justiceiros’, sempre lotados de ‘bondade’, em geral querendo o ‘bem’ dos condenados e, antes, o da sociedade. Em realidade, há aí puro narcisismo; gente lutando contra seus próprios fantasmas.” Resultado disso é que os Vingadores Sociais, muitos deles usurpando da parcela de poder estatal que lhes é conferida como Juízes, ou seja, no dever constitucional de garante dos Direitos Fundamentais e Humanos, nem precisam tirar suas becas para ceder espaço ao “Complexo de Nicolas Marshall”; o fazem em suas decisões mediante recursos retóricos aceitos pelo senso comum teórico (Warat), em meras aplicações de lógica dedutiva no âmbito penal. Dentre estes existem dois, os quais classifico utilizando a boa dogmática (não resisto): o doloso, que conhece a teoria do delito, imputação objetiva, tipo do injusto, culpabilidade, dentre outras discussões contemporâneas, mas mesmo assim acredita que somente desta forma se faz Justiça. E o segundo, o culposo que, por incapacidade teórica e de vontade acaba reeditando o raciocínio dedutivo em nome da “manutenção da paz social”, sendo incapaz de discutir seriamente qualquer das questões antes indicadas. É o Juiz papagueador (aprende para repetir, somente). E, ao final, a pergunta que remanesce é a formulada por Agostinho Ramalho Marques Neto: quem nos salva da bondade dos bons (juízes)?. Cuidado ao pisar no tapete....
14. Entretanto, não se pode romper com as regras do jogo democrático em nome da rapidez, eficiência, porque como afirma Gonçalves “economia e a celeridade do processo não são incompatíveis com as garantias das partes, e a garantia constitucional do contraditório não permite que seja violado em nome do rápido andamento do processo.”[27] O Direito Processual possui limites democráticos e fundamentais e esse reconhecimento de certo grau de ceticismo é condição de possibilidade para um fundamento democrático, dado que há muito tempo questões jurídicas deixaram de ser problema do Monastério dos Sábios[28] para se tornarem questões de cidadania, de democracia, abertas aos atores do mundo da vida[29]
15. E o Direito Penal, neste projeto, possui um papel fundamental na manutenção do sistema, posto que mediante a legitimação do uso da coerção, impõe a exclusão do mundo da vida com sujeitos engajados no projeto social-jurídico naturalizado, sem que se dêem conta de seus verdadeiros papéis sociais, situação reeditada por Eichmann[30] (em Jerusalém) e tão bem retratada por Kafka em sua Colônia Penal e no Processo.
16. É que o procedimento adotado perante os Juizados Especiais além de “repristinar” uma parcela considerável de pequenos delitos e contravenções já sepultados pela própria evolução social, devolveu aos braços da Justiça Penal, ações do mundo da vida que se resolviam por outras esferas. De outro lado, diante das dificuldades de “acesso à Justiça”, qualquer briga de vizinhos, discussão ou querela cível, acaba sendo maquiada como uma “agressão verbal”, “calúnia” ou “ameaça” e vira Termo Circunstanciado, com audiência e tudo. Tenho verificado na minha prática essa realidade de que questões civis e de família acabam sendo canalizadas para os JECrim, com os estigmas daí decorrentes.
IV – Mais do mesmo.
17. Por outra face, a perplexidade hermenêutica era e é tão grande que os famosos encontros de “Coordenadores dos Juizados Especiais”, envolvendo representantes da maioria dos Estados da Federação passaram a se arvorar como os legítimos representantes hermenêuticos, chegando ao ponto de emitirem “Enunciados”, seguidos ingenuamente por outros desavisados. Faço essa afirmação porque participei desses encontros, em especial um em São Paulo - 2000, onde pude perceber a inexistência de discussões teóricas e práticas sérias, constituindo-se em mais um “Monastério de Sábios”. As questões eram tratadas de forma contingente, sem qualquer pretensão democrática (Habermas), isto é, com a participação social. Os magistrados, entre si, buscavam a “melhor interpretação” para normas da Lei n. 9.099/95, sem a participação da academia, dos advogados, promotores. Cumpre lembrar que as discussões se prendiam ao ultrapassado paradigma da Filosofia da Consciência, na ânsia – sempre vã – de encontrar a “vontade da norma” ou a “vontade do legislador”, ou seja, pura Metafísica, tão bem criticada por Lenio Streck. E o pior é que ainda se continua procedendo desta forma e a “turba” dos que buscam sanções mais graves, encabeçados pelo “Movimento da Lei e da Ordem”, consegue incorporar soldados nas fileiras, com sérias repercussões no resultado destes “conclaves” e, portanto, na maneira como se implementa os Juizados Especiais Criminais no país.[31]
18. Logo, não se pretende aqui nenhuma inovação; o que se busca é que a Lei n. 9.099/95 possa ser aplicada partindo-se de um olhar constitucionalizado. Dito de outra forma, as ‘garantias penais e processuais’, tidas corretamente por Ferrajoli como Direitos Fundamentais, devem nortear a aplicação e a hermenêutica dos Juizados Especiais, evitando o açodamento da construção democrática, construída sobre muito sangue derramado. Mas então é preciso saber diferenciar direito de garantia, garantias penais e garantias processuais, e aí... e aí... a coisa complica...
19. Um exemplo real[32] acontecido em algum lugar deste país desde 1995, cuja versão original devo ao colega crítico Paulo de Tarso Brandão: Em nome da eficiência, uma audiência de 10 minutos; Violência no lar: lesões corporais leves do marido na mulher. Chegam as duas partes pobres, sem defensores, claro; cada qual expõe em dois minutos suas posições. O Juiz (leigo - no sentido que se quiser) do alto de sua cadeira diz: Indago às partes sobre a possibilidade de uma composição amigável. Os envolvidos nada entendem, porque não é para entender mesmo. Resultado, ficam em silêncio. O condutor do ato vira-se para o digitador – sob o olhar curioso dos envolvidos -, e dita: Proposta a conciliação, restou inexitosa. Após, vira-se para mulher e novamente se manifesta: A vítima deseja representar criminalmente o autor do fato? Novo silêncio. Ele – perdendo um pouco a paciência – pergunta: A senhora quer processá-lo? Então recebe a resposta: Eu quero meus direitos, eu quero meus direitos. Imediatamente dita: A vítima representou criminalmente o autor do fato. Na seqüência surge a proposta de transação penal de uma cesta básica, novamente formulada ao autor do fato: (Juiz) O Ministério Público formulou proposta de transação penal consistente no pagamento de uma cesta básica, no valor correspondente a um salário mínimo, a ser recolhida em favor do Lar dos Desesperados. Novo silêncio. Então, para acabar de vez o ato, já que a pauta é grande, diz diretamente: Paga um salário mínimo e se livra do processo. No que o autor do fato responde sem pestanejar: Se eu pagar não sou processado, fechado. E, assim, a audiência termina após serem assinados os termos, com um cínico final: Podem ir, está resolvido (!?).
20. Enquanto no processo penal (dito) comum ainda se tem um pouco de pudor, no sentido de se garantir a presença de defensor, mesmo que formal (ou virtual, passa para assinar depois...), defesa prévia, ouvida de testemunhas, denúncia e sentença, nos Juizados Especiais Criminais, sob o pano de fundo dos Princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (Lei n. 9.099/95, art. 2o), vale tudo para diminuir o número de processos, mesmo que ao custo da violação das garantias processuais e penais. E isto não dá para tolerar. Ressalto a existência de Juizados Criminais Constitucionalizados.
V – Para terminar de onde partirmos: “Garantismo neles”
21. No paradigma garantista, o magistrado, como os demais atores jurídicos, assume posição de garante, passando a tutelar não somente a formalidade, mas também (e principalmente) o conteúdo constitucional, fazendo a devida oxigenação constitucional. Ferrajoli anota: “a sujeição do juiz à lei já não é de fato, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sim sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja coerente com a Constituição. E a validade já não é, no modelo constitucionalista-garantista, um dogma ligado à existência formal da lei, mas uma sua qualidade contingente ligada à coerência — mais ou menos opinável e sempre submetida à valoração do juiz — dos seus significados com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos.”[33] É a partir dessa nova compreensão do papel do juiz e na mesma linha dos demais atores jurídicos no Estado Democrático de Direito e, assim, do reconhecimento de suas funções de garantidores dos Direitos Fundamentais inseridos ou decorrentes da Constituição Federal da República, que o ordenamento infraconstitucional deve ser aferido. Com efeito, essa oxigenação constitucional pressupõe a compreensão hermenêutica da própria Constituição, principalmente em face da Constituição Federal de 1988, que elencou diversos direitos e garantias no âmbito penal e processual penal anteriormente só-negados, os quais demandam, passados 16 anos, concretização.
22. Esse situação, pelo que percebo, reitera o visto de minha sacada: é plenamente autorizado pelo senso comum andar de biquíni minúsculo, mostrando boa parte do corpo, sem maiores pudores na praia dos Juizados Especiais, porque aqui vale a informalidade, a simplicidade, etc.. - para que garantias penais e processuais? - enfim, vale tudo, mas cinicamente não se admite, no processo penal comum, que o vento levante a saia e mostre a calcinha. Onde já se viu uma condenação sem defensor? Afinal, somos os pudicos de ontem, vestidos com as roupas contemporâneas, esquecendo-se todavia de quem importa.... Cuidado com o vento intruso...
23. Por isso iniciei e termino com Tancredi: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?” [34]
* Durante muito tempo sofreu de “normalpatia” (L.F. Barros).
[1] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. “Manifesto contra os juizados especiais criminais (uma leitura de certa "efetivação" constitucional)”. In: SCAFF, Fernando Facury (org.). Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 347-438.
[2] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, vol. II, p. 190.
[3] DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis : Vozes, 2002.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 85: No caso do direito penal mínimo, a atuação se dá no sentido de que “nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune.
[5] LEGENDRE, Pierre. O amor do censor. Rio de Janeiro : Forense, 1983, p. 7. “A submissão se propaga, quando se torna desejo de submissão, quando a grande obra do poder consiste em fazer-se amar.”
[6] WACQUANT, Loïc. “A tentação penal na Europa” e “A Ascensão do Estado Penal nos EUA”. Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro : Revan, 2002, p. 7-39.
[7] GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. São Paulo: RT, 1999.
[8] SANTOS, Juarez Cirino dos. Política Criminal: realidade e ilusões do discurso penal. In: http://www.cirino.com.br/principal.htm , 24.11.2003.
[9] Consultar: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica – do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1997; STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri – Símbolos & Rituais. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1998; e BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro : Freitas Bastos Editora, 1999; DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia & Racismo. Curitiba: Juruá, 2002; RAMIDOFF, Mário Luiz. Trajetórias Jurídicas: Desafios e Expectativas. Florianópolis : Habitus, 2002, p. 39-60.
[10] RAMIDOFF, Mário Luiz. “Direito Penal Juvenil : quem garante os jovens desta bondade punitiva”. In: Revista da ESMESC – Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, vol. 15; Florianópolis, p. 2003, p. 151-167.
[11] PRADO, Geraldo. Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
[12] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2000.
[13] Conferir: CARVALHO, Salo de. “Teoria Agnóstica da Pena: O Modelo Garantista de Limitação do Poder Punitivo. In: Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2002, p.3-43; CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (orgs.). Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2002; BONATO, Gilson Bonato (org.). Direito Penal e Processo Penal: uma visão garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001; COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre; Livraria do Advogado, 2000.
[14] BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A Reprodução – elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982, p.15-75, definem habitus como: “uma formação durável e transportável, isto é um conjunto de esquemas comuns de pensamento, de percepção, de apreciação e de ação.”
[15] PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1997.
[16] ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? Florianópolis: Habitus, 2003.
[17] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro : Renovar, 2001, p. 5-9.
[18] ARRUDA JR, Edmundo Lima. “Weber e Marx, anípodas? Fragmentos para pensar o Direito” In: ARRUDA JR, Edmundo Lima (org.). Max Weber – Direito e Modernidade. Florianópolis : 1996, p. 48 e 69.
[19] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2000, p.57-68.
[20] CARVALHO, Amilton Bueno de. “O Juiz e a Jurisprudência – Um Desabafo Crítico.” In: BONATO, Gilson (org.). Garantias Constitucionais e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 1-12.
[21] ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazerm : o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1990, p. 64.
[22] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. “Crime continuado e unidade processual”. In: Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva. SHECAIRA, Sérgio Salomão (org.). São Paulo : Método, 2001, p. 196: “Empurrados para o mercado por um câmbio epitemológico tanto duvidoso quanto desconhecido, consumimos tudo como se fosse fast food; e não temos, talvez até por uma certa cegueira, olhado as consequências, mormente aquelas que reclamam análises de longo prazo. Que digam as crianças e os adolescentes (não eram o futuro da nação?), o meio ambiente, e assim por diante.”
[23] PINHEIRO, José Rodrigues. A qualidade total no Poder Judiciário. Porto Alegre : Sagra Luzzatto, 1997.
[24] VERISSÍMO, Luis Fernando. Eficiência. Disponível na internet: http://www.estado.estadao.com.br/edicao/pano/99/11/29/pol947.html, 19.08.2003: “Nos documentários sobre a ascensão do nazismo na Alemanha e suas conseqüências não faltam cenas de horror, culminando nas imagens que marcaram o século como cicatrizes, as dos campos de extermínio. Aquelas usinas de morte metódica, onde a desumanidade encontrou a eficiência industrial e dramatizou-se como em nenhum outro lugar - salvo, talvez, em Hiroshima e Nagasaki -, a grande questão não discutida deste século, a da neutralidade moral da ciência. Mas eu me lembro de ver uma cena de documentário em que não apareciam corpos empilhados nem fornos crematórios, mas era terrível de outra maneira: a cena de um réu sendo humilhado por um juiz nazista. Um homem preso por alguma ofensa ao poder, diante do seu último recurso contra a prepotência de um sistema, descobrindo uma Justiça que marcava sua adesão ao sistema ostentando a prepotência. Descobrindo-se perdido. Não era uma denúncia ou uma simples reportagem, era um filme de propaganda nazista, feito para dar satisfação a um público impaciente com firulas jurídicas e a lentidão da Justiça. Feito para mostrar que a eficiência também chegava aos tribunais, que os juízes também estavam afinados com os novos tempos. Muitas vezes se abusa da analogia nazista, recorrendo-se a comparações descabidas, mas toda vez que vejo um ato de prepotência, mesmo contra criminosos provados, ou ouço alguém propor uma sumarização dos ritos da Justiça, me lembro daquela cena. O que se quer, claro, é uma Justiça aparelhada, ágil e eficiente no melhor sentido - no de garantir justiça, não o de desprezar direitos para mostrar resultados a um público assustado com tanta corrupção e insegurança depois de anos de pseudo-social-democracia. O que certamente não se quer é ver a Justiça substituída por qualquer forma de justiceirismo, se é que existe a palavra, como a de CPIs muito entusiasmadas.”
[25] CAPPELLETTI, Mauro. GARTH Acesso à Justiça. Porto Alegre : Sérgio Fabris, 1988.
[26] ROSA, Alexandre Morais da. O juiz e o complexo de Nicolas Marshall. Disponível na internet: http://www.ibccrim.org.br, 23.07.2003.
[27] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 125.
[28] WARAT. Luis Alberto. Introdução ao Estudo do Direito, vol. I. Porto Alegre ; Sergio Fabris, 1994, p. 57: “A ciência jurídica, como discurso que determina um espaço de poder, é sempre obscura, repleta de segredos e silêncios, constitutiva de múltiplos efeitos mágicos e fortes mecanismos de ritualização, que contribuem para a ocultação e clausura das técnicas de manipulação social. Respaldado na funcionalidade de suas próprias ficções e fetiches, a ciência do direito nos massifica, deslocando permanentemente os conflitos sociais para o lugar instituído da lei, tornando-os, assim, menos visíveis.”
[29] CATTONI, Marcelo. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 14-15: “A sede de eficácia, de Justiça, nem sempre é acompanhada pela devida reflexibilidade diante das questões jurídicas.”
[30] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo: Cia das Letras, 1999. p. 60: Faz uma reflexão sobre a incapacidade do homem de pensar criticamente a lei. Eichmann era um excelente funcionário público abarrotando os ‘fornos’? Nossos juízes será que não são Eichmanns ao mandarem as pessoas para presídios onde o resultado é o mesmo.... morte!
[31] Destaco que os magistrados, por certo, estão de boa-fé e na melhor das intenções. Estou criticando a estrutura.
[32] Deixo claro, com L. F. Barros, que essa é uma crítica de ficção em que, como em todas as outras do gênero, quaisquer semelhanças com situações e personagens reais foi cuidadosa, meticulosa e intencionalmente planejada. Todas as dessemelhanças com a bizarra realidade dos personagens e teorias aqui apresentados devem-se apenas à falta de habilidade descritiva do autor.
[33] FERRAJOLI, Luigi. “O Direito como sistema de garantias”. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades (org.). O novo em Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.90-91.
[34] P.S. Caro Luis Guilherme Vieira, este texto é para o nosso “Movimento Anti-Terror”, que bem poderia se denominar “Movimento pela Vergonha na Cara”.
PORRA! Muito "carinho" por esse artigo, eis que a partir dele virei teu fan.
ResponderExcluirAtual, mesmo.
Não tenho convivência o suficiente para me manifestar em relação ao dia a dia dos JECrim, mas conhecendo a autoridade acadêmica de quem escreve, não ouso discordar.
ResponderExcluirNo entanto, chamo a atenção a um momento anterior a este. Onde estão as garantias fundamentais do indivíduo na fase pré-processual? Ou melhor, e nas Delegacias, esqueceram de avisar aos DOUTORES Delegados que alí também existe a Constituição?
Fico pensando qual seria a melhor maneira de se fazer aplicar a Constituição dentro das DElegacias. Acho que a solução mais utópica era uma completa troca de pessoal. Pessoas realmente capacitadas para a aplicação das garantias fundamentais do indivíduo.
Claro q isso não dá pra fazer. Não dá pra jogar todo mundo fora, mas acho que pensar em soluções paupaveis e efetivas já é uma boa oportunidade para uma discussão.