APELAÇÃO CRIMINAL 0189866-10.2009.8.19.0001 (2009.050.07372)
APELANTES: (1) XXXXX
(2) XXXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO: 27.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DA CAPITAL
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigos 171, § 2.º, inciso V, na forma do artigo 14, inciso II, 299, caput, e 340, tudo na forma do artigo 69, todos do Código Penal.
EMENTA: APELAÇÃO. PENAL, PROCESSO PENAL E CONSTITUCIONAL. ARTIGOS 171, § 2.º, INCISO V, NA FORMA DO ARTIGO 14, INCISO II, 299 E 340, TODOS DO CÓDIGO PENAL. CONDENAÇÃO. PROVA ILÍCITA. INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO, INTIMIDADE, VIDA PRIVADA E DIREITO AO SILÊNCIO. CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO. Apelantes condenadas pela prática dos crimes definidos nos artigos 171, § 2.º, inciso V, na forma do artigo 14, inciso II, 299 e 340, todos do Código Penal. Prova ilícita. Ingresso indevido no quarto de hospedagem das acusadas. Inviolabilidade de domicílio, da intimidade e da vida privada (artigo 5.º, incisos X e XI, da Constituição da República). Rés que não foram informadas de seu direito ao silêncio (artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição da República). Apreensão dos bens falsamente furtados, portanto, ilícita. Prova oral que, decorrente exclusivamente dessa apreensão, também se revela ilícita. Desaparecimento da materialidade do crime. Absolvição. RECURSOS PROVIDOS.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº. 2009.050. 07372, em que são apelantes XXXXX e XXXXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM, por maioria de votos, os Desembargadores da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão de julgamento realizada no dia 17 de dezembro de 2009, em dar provimento ao recurso para reconhecer a ilicitude da prova e, em consequência, absolver as acusadas, nos termos do voto do Desembargador Relator.
Ficou vencido o e. Desembargador Revisor, Cairo Ítalo França David, que dava parcial provimento aos recursos para excluir a condenação pelos crimes de falsidade ideológica e comunicação falsa de crime, reduzir as penas a 4 (quatro) meses de reclusão e 3 (três) dias-multa e substituir a pena privativa de liberdade por prestação pecuniária.
Restituam-se os passaportes.
Oficie-e à Polícia Federal autorizando a saída das apelantes do país.
Presidiu a sessão o Desembargador Sérgio de Souza Verani, que também participou do julgamento como vogal.
Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 2009.
DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
RELATOR
VOTO
XXXXXX e XXXXX, cidadãs inglesas, foram processadas perante a 27.ª Vara Criminal da Comarca da Capital porque, segundo a denúncia, ao final de uma viagem que faziam pelo mundo, no dia 26 de julho de 2009, compareceram à Delegacia de Atendimento ao Turista para registrar falso furto de que teriam sido vítimas durante o trajeto que fizeram da cidade de Foz do Iguaçu até o Rio de Janeiro, a fim de obterem o valor concernente ao seguro contratado junto à empresa InsuranceandGo Insurance Services Ltd.
Destaco inicialmente que, por não comungar da posição adotada pela d. Procuradoria de Justiça em seu parecer, a qual redundaria na absolvição das acusadas, enfrento as questões processuais levantadas pela Defesa como prejudiciais à análise da correção do juízo de censura.
Do fato.
O fato descrito na denúncia, em si, é incontroverso.
Com efeito, as acusadas, fielmente patrocinadas e com o auxílio de tradutora juramentada, confessaram que, embora tivessem sido efetivamente furtadas durante a viagem de ingresso no Brasil, entre as cidades de Foz do Iguaçu e Rio de Janeiro, em Delegacia de Polícia incluíram na lista de bens subtraídos outros pertences que ainda estavam em seu poder:
(...) que, na verdade, a interroganda teve bens subtraídos quando de sua viagem de Foz do Iguaçu para o Rio de Janeiro, mais precisamente em 13/07/2009, sendo certo que resolveu acrescentar, quando do registro de ocorrência na DEAT, alguns itens que não haviam sido subtraídos; que o mesmo ocorreu com XXXXX; que, dos bens discriminados no primeiro parágrafo de fl. 02-A, somente não foram furtados uma bolsa branca marca Sansonite, um telefone celular da marca Sony Ericsson e uma câmera fotográfica da marca Canon (...)
(fls. 301/2)
(...) que efetivamente a interroganda e XXXX tiveram bens subtraídos numa viagem de Foz do Iguaçu para o Rio de Janeiro, sendo certo que isto se deu no dia 13/07/2009; que a interroganda e XXXX, contudo, resolveram acrescentar outros bens àqueles que efetivamente tinham sido subtraídos; que tem ciência de que compareceu em sede policial para comunicar o furto de bens que não haviam sido furtados, sendo certo que também comunicou o furto de efetivamente que haviam sido furtados; (...) que, dos bens discriminados à fl. 10 dos autos em apenso, somente a câmera digital não foi furtada (...)
(fls. 304/5)
Tais declarações estão em consonância com o que foi relatado pelo policial XXXXXX (fls. 292/5), que afirmou ter desconfiado das acusadas porque, apesar do furto, elas, além de estarem tranquilas, tinham em mãos os respectivos passaportes.
Toda a prova oral, portanto, integrada ainda pelos depoimentos do policial civil XXXXX (fls. 296/7) e do funcionário do albergue Stone of the Beach, XXXX (fls. 298/9), convergem no mesmo sentido: as rés, com a finalidade de obterem maior indenização do seguro contratado, incluíram na lista de bens furtados outros pertences que não haviam sido efetivamente subtraídos.
Da prova ilícita: a inviolabilidade domiciliar.
Não obstante, deve-se esclarecer que todo esse arcabouço probatório, colhido oralmente durante a instrução, decorre diretamente do fato de terem sido encontrados, dentro do quarto de albergue onde estavam hospedadas XXXX e XXXXX, aqueles bens que não haviam sido realmente furtados.
E isso se deu, é preciso destacar, em clara violação ao disposto no artigo 5.º, incisos X e XI, da Constituição da República.
Isso porque, se por um lado a prova oral é uníssona no sentido de terem as rés tentado comunicar falso furto para obterem maior valor da empresa seguradora, por outro também é incontroverso que, assim que desconfiou da atitude das acusadas, em vez de diligenciar no sentido de obter o necessário mandado de busca e apreensão, a autoridade policial determinou a XXXXX, funcionário do albergue, que entrasse no quarto onde elas estavam hospedadas para verificar se aqueles bens estavam ocultados.
É o que declara XXXXX às fls. 293/5:
(...) que, em seguida, as declarações das rés foram tomadas em termos próprios, sendo certo que, quando estavam sendo tomados os depoimentos delas, o que se deu na presença da autoridade policial, houve uma desconfiança em relação a um possível golpe do seguro, o que fez o depoente telefonar para o albergue onde elas estavam hospedadas e perguntado acerca dos bens que elas discriminaram nos documentos de fls. 10 e 11 dos autos do apenso como tendo sido furtados na viagem que teriam feito de Foz do Iguaçu para o Rio de Janeiro; que se recorda de o funcionário do albergue, que se encontra do lado de fora da sala de audiências para prestar depoimento, ter identificado, pela fresta de uma das gavetas que elas mantinham fechadas com cadeados, uma bolsa tipo mochila de cor branca (...)
As mencionadas gavetas, é necessário destacar, ficavam localizadas no interior do quarto onde as rés estavam hospedadas, como esclareceu o próprio policial ao descrever a diligência confirmatória da fraude, feita pessoalmente por ele na presença de XXXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX, que declarou o seguinte (fls. 296/7):
(...) XXXXX começou a colher os depoimentos das rés, sendo certo que no meio dos referidos depoimentos desconfiou de algo, tendo telefonado para o albergue onde elas estavam hospedadas e indagado a um funcionário se havia uma mochila branca no quarto das rés, tendo o funcionário dito que os bens das rés estavam em gavetas e que, pela fresta de uma delas, viu a referida mochila branca (...)[1]
As declarações de XXXXX, a seu turno, foram textuais nesse sentido (fls. 298/9):
(...) recebeu um telefonema do policial civil XXXXX, da DEAT, indagando se as rés, que ora reconhece nesta sala de audiências, estavam hospedadas lá, sendo certo que, em razão da resposta afirmativa, solicitou ao depoente que verificasse se no quarto delas havia uma bolsa branca; que o depoente, então, foi ao quarto das rés e, por uma fresta, já que as gavetas estavam trancadas com cadeados que só elas tinham as chaves, o depoente viu a tal bolsa branca (...)[2]
Não há dúvida, pois, de que, durante a lavratura do registro de ocorrência relativo ao furto, a linha investigativa mudou seu rumo para focar-se em possível estelionato, materializando-se no desrespeito à inviolabilidade do domicílio, à intimidade e à vida privada das acusadas, que não consentiram com o ingresso do funcionário em seu quarto.
Com efeito, releva notar, e não é novidade entre nós, que a Constituição da República consagra dentre os direitos e garantias individuais, a inviolabilidade de domicílio (artigo 5º, inciso XI), como fator de proteção à esfera de liberdade individual e à privacidade pessoal.
Nessa perspectiva Luis Gustavo Grandinetti[3] mencionou decisão da Suprema Corte Argentina, em que se afirmou que a inexistência de objeção do morador não representa consentimento ao ingresso de terceiros na casa. Sob outro enfoque, a aquiescência deve ser expressa.
Assim é porque “Direitos fundamentais valem perante o Estado, e não pelo acidente da regra constitucional”[4].
E há aqueles que, a despeito do histórico debate sobre sua anterioridade ou não ao fenômeno estatal, são considerados, ainda por Pontes de Miranda, como supra-estatais[5], dentre os quais a inviolabilidade domiciliar.
Não se trata de concebê-los como direitos naturais. Cuida-se de rechaçar o Estado como paradigma de sua existência e, ao oposto, encará-los – os direitos fundamentais – como paradigma de atuação do Estado, em qualquer das funções do poder: executiva, legislativa ou judiciária. Trata-se, pois, de repudiar qualquer forma de Estado ou regime de governo autoritário, na esteira das históricas conquistas das liberdades individuais[6].
Nesse sentido o autor assinalou:
Os direitos supra-estatais são, de ordinário, direitos fundamentais absolutos. Não existem conforme os cria ou regula a lei: existem a despeito das leis que os pretendam modificar ou conceituar. Não resultam das leis: precedem-nas; não têm o conteúdo que elas lhes dão, recebem-no do direito das gentes.[7]
É essa a natureza que a eles se atribui porque é a mesma que também se atribui à dignidade da pessoa humana, que, de maneira geral, consiste em “respeito ao ser humano” expressado “em princípios aceitos extensivamente e afirmados profundamente na natureza real dos homens, como se desenvolveram através da história para serem, hoje, parte essencial do que é considerado um ser humano normal, como postulados éticos para o Direito”[8] (grifei).
Daí porque esse princípio foi alçado à condição de estrutura sobre a qual se edifica o Estado de Direito sedimentado pela Carta Política de 1988 e a partir da qual se extraem, sem necessidade sequer de positivação, os chamados direitos fundamentais supra-estatais[9].
A esse respeito, Luigi Ferrajoli destacou que o Estado de Direito não se limita ao aspecto formal, concernente à noção de legalidade, mas possui outra noção substancial “da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade (...)”[10].
A positivação desses direitos como tais, portanto, representa, na verdade, a organização de sua proteção jurídica, cuja necessidade é reconhecida não como forma de criação de direitos, mas como técnica impeditiva do não raro abuso no exercício do poder, a exemplo do que ocorreu neste caso.
Foi nesse passo, em contexto histórico que reclamava essa verdadeira declaração de direitos – frise-se, não a sua mera definição –, que a Constituição da República elencou taxativamente as hipóteses em que é possível o ingresso em casa alheia, no inciso XI do artigo 5.º:
a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial
Aqui é preciso reconhecer que se trata – a vida privada, a intimidade (artigo 5.º, inciso X, da Constituição da República) e a inviolabilidade de domicílio – dos chamados direitos fundamentais assegurados, os quais, em contrapartida aos garantidos, entendem-se “só limitados segundo regras explícitas das Constituições e, de ordinário, só limitados nos têrmos dos textos constitucionais, ou ´segundo a lei`”[11].
Portanto, a exceção está prevista na própria norma constitucional a taxativamente admitir o ingresso na casa de outrem diante de situação fática caracterizadora do estado de flagrante delito ou desastre ou com o escopo de prestar socorro. Admite-se, ainda, como decorrência lógica da própria vedação constitucional, o ingresso mediante o consentimento de seu morador ou por determinação judicial, esta última somente durante o dia.
Pontes de Miranda, nessa perspectiva, destacou que “´Casa` (...) é a porção espacial, delimitada, autônoma, que alguém ocupa, só ou em companhia de outrem, com exclusão das outras pessoas e, pois, em virtude do princípio da inviolabilidade do domicílio, com exclusão do Estado”[12] e, evidentemente, de quaisquer outras pessoas não convidadas pelo titular do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, da intimidade e da vida privada.
Esse conceito atribuído pelo autor à “casa” contempla não só a residência e o local destinado à atividade profissional do indivíduo, como comumente se consigna na doutrina, mas também qualquer “aposento ocupado de habitação coletiva”[13] (artigo 150, § 4.º, inciso II, do Código Penal).
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus n.º90.376/RJ, manifestou-se na mesma linha:
(...) Prova penal. BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) - ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR DERIVAÇÃO) - INADMISSIBILDADE - BUSCA E APREENSÃO DE MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO - IMPOSSIBLIDADE (...) GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉ-PROCESSUAL (...) IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - PROVA ILÍCITA - INIDONEIDADE JURÍDICA - RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) - SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE "CASA" - CONSEQÜENTE NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL. (...) Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina. Precedentes (STF). (...)[14]
Na ocasião, o e. Ministro Relator Celso de Mello asseverou que “o conceito de ´casa`, para o fim de proteção jurídico-constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Lei Fundamental, reveste-se de caráter amplo (...), pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar (a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade”.
Não procede o argumento segundo o qual, por se tratar de funcionário do albergue, no caso concreto XXXXX tinha autorização para entrar no quarto das acusadas.
É o que leciona Ada Pellegrini Grinover:
(...) a inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta, sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros. Nesses casos, é irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público ou por particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido obtida com infringência aos princípios constitucionais que garantem os direitos da personalidade.[15]
Além disso, XXXX entrou no quarto de XXXXX e XXXX com o exclusivo objetivo de proceder a diligência cuja atribuição constitucional é da polícia. Agiu, portanto, se é que assim é permitido, como uma espécie de longa manus da autoridade policial.
E a atuação do Estado, não é inútil frisar, deve sempre estar em consonância com os ditames constitucionais, que exigem decisão judicial determinando busca e apreensão no local diligenciado pelo empregado do albergue.
Além disso, essa espécie de hospedagem, como se sabe, não possui sequer serviço de camareira, o que, de plano, afasta eventual alegação de que as rés consentiam com a limitação de sua intimidade por autorização contratual.
A esse respeito, insta destacar que nenhum contrato de serviços de hospedagem tem o condão de permitir que um funcionário entre no aposento ocupado pelo contratante para fins diversos daqueles estabelecidos em suas obrigações contratuais.
Sob outro enfoque, se XXXXX tinha efetivamente autorização das acusadas para entrar em seu quarto, ela se limitava à limpeza do local e, pois, excluía, por certo, a “bisbilhotagem” de suas gavetas.
Diferente seria se uma camareira, por exemplo, quando entrasse no quarto do hóspede com o exclusivo objetivo de exercer suas atividades profissionais, encontrasse, sobre a cama – exposta portanto –, uma determinada quantidade de droga, o que lhe permitiria comunicar o fato à polícia.
Não é o caso. O próprio estabelecimento comercial, a propósito, a fornecer as chaves das gavetas exclusivamente às rés (fls. 298/9), reconheceu contratualmente, ainda que de forma tácita, que aqueles compartimentos não são passíveis de manuseamento por parte de seus empregados.
Nesse contexto, o fato de XXXX e XXXXX terem mantido as gavetas trancadas revela, de maneira evidente, que não tinham interesse no conhecimento de seu conteúdo por terceiros – e pouco importa que isso tenha se dado com a finalidade de praticar um crime, pois, para investigá-lo, bastava que a autoridade policial ali comparecesse autorizada judicialmente.
Igualmente, incabível a invocação do flagrante delito como legitimador do ingresso não autorizado no quarto das acusadas, pois não havia qualquer notícia prévia do estado de flagrância senão a simples suspeita do policial XXXXX, motivada pelo fato de as acusadas estarem na posse de seus passaportes.
Por isso, não se legitima a ação policial, neste caso, pelo estado de flagrância. Para isso seria necessário que, antes, houvesse fundadas razões de que o quarto das rés funcionava como local de prática de crime(s).
O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de evitar que esse crime se consume.
Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas casas alheias, de forma aleatória, até encontrar substrato fático, consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal.
Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade, “encontrasse” à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.
Não foi esse, evidentemente, o escopo do constituinte. Pelo contrário, a norma constitucional que emerge do artigo 5.º, inciso XI, da Constituição da República visa justamente coibir essas práticas.
Assim, é ilícita a prova da falsidade do furto comunicado pelas rés.[16]
Da prova ilícita: o direito ao silêncio.
Caso vencido em relação ao reconhecimento da indevida violação ao domicílio, à intimidade e à privacidade das acusadas, a sentença condenatória, ainda assim, não pode ser mantida.
Isso porque, depois de obter conhecimento da fraude e terminar a lavratura do registro de ocorrência do falso furto, XXXXX solicitou às rés permissão para entrar em seu quarto e pediu que elas abrissem as gavetas onde estavam ocultados os bens falsamente subtraídos.
Nesse momento, tanto o mencionado policial quanto XXXX, assim como XXXX, disseram que nenhuma delas se opôs à atuação dos agentes públicos:
(...) que as rés franquearam a entrada no quarto aos policiais civis, sendo certo que tudo isto se deu na presença do funcionário do albergue; que as rés espontaneamente abriram os cadeados das gavetas (...)
(fl. 296).
A aquiescência das acusadas, porém, não é válida.
Com efeito, assim que soube, por intermédio de XXXXX via telefone, que a bolsa branca não havia sido furtada, a autoridade policial, não obstante tivesse alterado ao extremo oposto a linha investigativa que tomava até então, passando as acusadas de vítimas a investigadas, deu continuidade à lavratura do registro de ocorrência, como se de furto fosse.
É o que se infere das declarações de XXXXX (fls. 292/5):
(...) que essa informação foi solicitada pelo depoente por telefone, sendo certo que a informação foi efetivamente passada pelo funcionário do albergue por telefone, já que o depoente só se dirigiu para lá com as rés após a confecção do registro de ocorrência relativo ao suposto furto de suas bagagens; que o referido funcionário do albergue ainda salientou que as rés haviam sido vistas nos últimos três dias no albergue, razão pela qual não tinham feito viagem alguma para Foz do Iguaçu; que, após tais informações do funcionário do albergue, o depoente terminou de colher as declarações das rés, que estavam prestando na condição de lesadas e, ato contínuo, confeccionou o registro de ocorrência do suposto furto, tendo elas assinado o registro de ocorrência; (...) que também reconhece os termos de declarações de fls. 06/07 e 08/09 dos autos em apenso como sendo aqueles referentes às declarações prestadas pelas rés, na condição de lesadas, em sede inquisitorial (...)[17]
Isso veio confirmado não só pelas declarações constantes de fls. 06/9 do apenso, mas ainda por XXXXXX, que declarou que, após a informação dada via telefone por XXXXX, “XXXX continuou a colher os depoimentos das rés, sendo certo que na presença da Delegada de Polícia; que após colher as declarações das rés, foi feito o registro de ocorrência do suposto furto das bagagens”[18] (fl. 296).
Assim, embora tenham passado de vítimas a indiciadas, as rés não foram cientificadas de seu direito ao silêncio (artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição da República) e ainda foram ludibriadas, pois prestaram declarações autoincriminatórias acreditando que eram encaradas, pelo policial, como lesadas.
Nesse quadro, XXXX e XXXXX, ignorando seu direito constitucional de não produzir prova contra si, não se opuseram à solicitação do policial para entrar em seu quarto e abrir suas gavetas, onde estavam os bens ocultados.
Sob outro enfoque, a renúncia aos seus direitos constitucionais – sem dúvida possível em princípio – deu-se fora do exercício de suas liberdades individuais, o que igualmente torna a apreensão dos bens ilícita.
E a liberdade, que pressupõe o conhecimento de todas as circunstâncias fáticas envolvidas e das possíveis consequências da opção que vier a ser feita, é essencial para a validade da renúncia ao direito de não produzir prova contra si, que integra a própria personalidade do indivíduo.
E é justamente esse substrato político-jurídico que coloca, ao lado da intangibilidade do corpo, a “liberdade do acusado de encontrar uma decisão autônoma sobre se ele quer colaborar ativamente com o esclarecimento dos fatos ou não”[19] como critério norteador do princípio nemo tenetur se detegere[20].
E não é normal que, no exercício dessa liberdade, alguém indique o local onde estão as principais evidências de um crime que cometeu, quando ciente das consequências jurídicas que isso pode acarretar.
Assim, o encontro dos bens é contestável pela inidoneidade dos policiais ou da atuação deles, para cuja diligência, consoante predominante posição jurisprudencial, seria necessário que dispusessem de mandado judicial.
Não obstante, XXXXX confessa que, mesmo sabendo que se tratava de falso furto, simulou dar continuidade ao registro de ocorrência pelo crime de que as rés alegavam ser vítimas. É evidente que deste momento em diante as liberdades de XXXX e XXXX estavam periclitando.
Investigadas as acusadas, ainda que em circunstâncias manifestamente precárias, era dever dos agentes da lei alertá-las de que tinham direito ao silêncio.
Assim é que, à luz do tantas vezes citado artigo 5° da Constituição da República, em seu inciso LXIII, ao preso se informará do direito de permanecer calado. Trata-se do direito ao silêncio que constitui o pilar fundamental de outra disposição de índole constitucional, por força do artigo 5.°, § 2.°, da Carta, tal seja, o direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado, previsto na Convenção Americana dos Direitos Humanos, introduzida no ordenamento jurídico pelo Decreto 678/92. Nemo tenetur se detegere.
Ora, em primeiro lugar sabemos todos que os direitos fundamentais, classificados como liberdades públicas, são em realidade posições jurídicas de vantagem [21], estacas demarcatórias de um espaço vital mínimo, que estabelecem uma relação jurídica a princípio com o Estado, originário devedor[22].
Do devedor se espera uma postura passiva, consistente em não provocar (não agir contra) o credor do direito no sentido de dele obter alguma informação que possa futuramente prejudicá-lo.
Não que o indiciado esteja impedido de espontaneamente declarar contra si próprio. É claro que ele poderá fazer isso, que dispõe em alguma medida de seu direito fundamental, ao qual poderá legitimamente renunciar. É preciso, porém, para que a renúncia ao exercício do direito seja válida e eficaz, que o preso seja claramente informado de que é titular de um direito e em que consiste, realmente, o conteúdo deste direito.
Como sujeito de um procedimento, o investigado logo ao ser preso, no alvorecer da investigação, deve ser informado do seu direito, e não quando a prisão está já consumada e provavelmente o meio de demonstração capturado. Mas sim no exato instante em que, devido às circunstâncias, pode ver-se compelido a produzir prova contra si mesmo, cooperando inadvertidamente com o Estado, que tem o dever de investigar.
A isto a doutrina denomina de dever de instrução do direito ao silêncio, de caráter prioritário para o ordenamento jurídico, como salientou Theodomiro Dias Neto[23], porque não se pode pressupor o conhecimento do direito.
A máxima consistente em se afirmar que a ninguém é lícito invocar o desconhecimento da lei há muito não prevalece, em termos de direito penal. Basta analisarmos a disciplina jurídica do erro de proibição, para constatarmos que o direito opera com a consciência de que a maioria da população desconhece muitos dos seus direitos, quiçá quando está em oposição aos órgãos de repressão penal.
Ademais, e é o argumento saliente em termos de processo penal, não se pode presumir inequivocamente o conhecimento da lei também porque a única presunção admissível, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, é a da inocência do imputado (artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República). Em virtude disso é que se exige da acusação a prova do dolo e da culpabilidade dos acusados.
No caso concreto, a prova oral é expressa em afirmar que as acusadas não só não foram cientificadas de seus direitos constitucionais, como acreditaram que estavam colaborando não para a sua incriminação, mas para a solução do crime de que diziam ser vítimas.
Contra essa espécie de abuso, há a Constituição da República, que consagra direitos que não reconhecem limitação subjetiva ou territorial.
Assim, temos por violado o comando constitucional.
O acolhimento da tese da ilicitude da prova importa em absolvição das apelantes, mas não pelos fundamentos da apelação e do parecer do Ministério Público em segundo grau.
Com efeito, tal constatação, quer pelo reconhecimento do desrespeito à inviolabilidade do domicílio ou ao direito ao silêncio, determina a descontaminação do julgado[24], na forma do artigo 5.º, inciso LVI, da Constituição da República, por meio do desentranhamento, ainda que hipotético, de todas essas provas e do laudo de fl. 247.
É a única forma de conciliar o criticável veto à introdução do § 4.º ao artigo 157 do Código de Processo Penal pela Lei 11.690/2008 com o princípio da imparcialidade do juiz, implícito nas garantias conferidas aos Magistrados pela Constituição da República.
Com efeito, a prova obtida por meios ilícitos, mesmo antes das recentes modificações trazidas ao Código de Processo Penal, não haveria de estar presente em autos de processo, na medida em que a Constituição da República a repudiou em seu artigo 5.º, inciso LVI: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Trata-se de garantia que integra o princípio do devido processo legal, o qual se define, no aspecto formal, pela apuração da prática de uma infração penal e de sua autoria na forma legalmente prescrita, conforme destacado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello:
A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do “due processo of law”, que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo.[25]
Ada Pelegrini Grinover[26], no mesmo sentido, afirma que o direito à prova está limitado, na medida em que constitui as garantias do contraditório e da ampla defesa, de sorte que o seu exercício não pode ultrapassar os limites da lei e, sobretudo, da Constituição.
Idêntica é a lição de Antônio Magalhães Gomes Filho:
O campo das proibições de prova relacionadas à tutela de valores estranhos à economia interna do processo é vastíssimo, revelando que o objetivo de apuração da verdade processual deve conviver com os demais interesses dignos de proteção pela ordem jurídica.[27]
Por isso, a Lei 11.690/08 veio a corroborar, de forma expressa, o mandamento constitucional que determina o desentranhamento das provas obtidas por meios ilícitos, a atribuir ao artigo 157 do Código de Processo Penal a seguinte redação:
São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
No entanto, somente com a apreensão ilícita dos bens foi possível tomar os depoimentos dos policiais civis e de XXXX e lavrar o auto de prisão em flagrante. Sob outro enfoque, caso não houvessem sido encontrados os pertences não furtados das acusadas, nada existiria senão a suspeita íntima do policial XXXXXX.
A prova oral colhida durante a instrução, portanto, é exemplo das chamadas provas ilícitas por derivação, que, embora obtidas em conformidade com a lei, estão contaminadas pela ilicitude do meio por que obtida a prova originária, da qual decorreram de forma exclusiva.
Nesse sentido Aury Lopes Junior destacou:
Entendemos que o vício se transmite a todos os elementos probatórios obtidos a partir do ato maculado, literalmente contaminando-os com a mesma intensidade. Dessa forma, devem ser desentranhados o ato originariamente viciado e todos os que dele derivem ou decorram, pois igualmente ilícita a prova que deles se obteve.[28]
Assim, não há prova residual alguma da materialidade do crime, o que impõe a absolvição de ambas as acusadas.
Dos efeitos interjurisdicionais.
Convém destacar este ponto tendo em vista a transcendência da decisão, isto é, a projeção de seus efeitos no âmbito civil, no contexto da relação entre as apelantes e a empresa seguradora.
Da alegação de inexistência de crime.
A Defesa aduz que as acusadas não iniciaram os atos de execução do crime, que dependeriam da sua comunicação à empresa seguradora, e não simplesmente à polícia.
Assiste em parte razão às apelantes quando aduzem se tratar de atos preparatórios. Cuida-se, porém, de uma daquelas exceções às quais o legislador atribuiu grande valor de reprovação, a ponto de incriminá-las, apesar de não gerarem efetivo dano à vítima.
Tanto é assim que há jurisprudência defensiva da tese de que, recebido o valor do seguro, o fato passa a subsumir-se à norma incriminadora do artigo 171, caput, do Código Penal:
(...) Cuida-se, na hipótese, de verdadeira exceção ao princípio da ´especialidade` que rege os conflitos aparentes de normas penais. Isto porque, embora a norma do art. 171, § 2.º, V do CP contemple exatamente as ações físicas praticadas para o fim de fraude ao contrato de seguro, a consecução do objetivo de proveito não está abrangida no dispositivo, muito embora se cuide de situação mais grave, nem mesmo como agravante ou majorante. Por esta razão, os tratadistas entendem que, atingido o objetivo de proveito próprio, afastada fica a incidência do sispositivo específico em tela, dada sua clara redação: ´destrói, total ou parcialmente, oculta coisa própria`, ou... ´com o intuito de haver indenização ou valor de seguro` (...). A expressão ´com o intuito` pretende significar apenas as ações preparatórias da fraude e não a locupletação. A inexistência de figura especial para reprimir esta última, embora constitua falha legislativa, faz cindir, na espécie, o caput do artigo, que contempla o ardil bem sucedido. (...)[29]
Sob outro enfoque, a simples leitura do tipo penal do artigo 171, § 2.º, inciso V, do Código Penal permite apreender que se trata de crime formal, cujo momento consumativo, no caso concreto, confunde-se com o da ocultação dos bens falsamente furtados nas gavetas das rés.
É o que ensina Cezar Roberto Bitencourt:
A fraude para recebimento de seguro é crime formal, que não requer a ocorrência de dano efetivo em prejuízo do ofendido para consumar-se, algo que ocorre pela simples conduta de ocultar. Assim, o emprego do meio fraudulento é necessário e suficiente para a caracterização do crime, desde que sua finalidade seja o recebimento da indenização do seguro (elemento subjetivo especial). Enfim, consuma-se o estelionato independentemente do recebimento da indenização pretendida.[30]
Igualmente assevera Alberto Silva Franco:
O crime se consuma com a ação física, desde que provado o intuito de obter a vantagem. Não é necessário que o agente receba a indenização ou o valor do seguro.[31]
É por isso que, conforme afirmado pelo mesmo autor, a hipótese deste processo, ao contrário do que reconhecido na sentença, é de fraude contra seguro consumado.
A tentativa, nas hipóteses de caracterização desse crime, dá-se, a exemplo, quando o agente é surpreendido no momento em que joga o veículo de um penhasco com a finalidade de obter a indenização da empresa seguradora.
E, a considerar, em obediência à vedação à reformatio in pejus, correta a premissa exarada pelo juiz a quo, o simples fato de as acusadas terem comunicado o crime falso constitui o início dos atos de execução, pois, conforme contrato acostado às fls. 143/67, as rés não obteriam o valor do seguro caso não registrassem a pretensa ocorrência em Delegacia de Polícia.
Do alegado crime impossível.
Hipoteticamente, a pretensão do reconhecimento do crime impossível, a seu turno, só pode ser acolhida em relação a XXXXX, pois, segundo o contrato de fls. 143/67, traduzido juramentadamente na audiência documentada às fls. 282/91, sua apólice vigia apenas até o dia 09 de julho de 2009, antes mesmo da viagem de Foz do Iguaçu até o Rio de Janeiro, feita no dia 13 de julho, em que teria ocorrido o falso furto.
É verdade que a própria acusada aduz em seu interrogatório “que tem certeza que a apólice de fl. 105 está errada, já que a interroganda tem outra apólice com a data do término em 03/08/2009” (fl. 306).
Trata-se, porém, de confissão como qualquer outra. E é preciso compreender o lugar da confissão no sistema acusatório, adotado pelo artigo 129, inciso I, da Constituição da República.
Assim é porque a estrutura do processo penal brasileiro claramente optou pela constituição de estatuto jurídico singular peculiar aos acusados. Nesse sentido, pelo menos desde 1941 a posição jurídica do acusado (artigos 185 e seguintes do Código de Processo Penal) difere daquela ostentada por ofendidos (art. 201 do mesmo diploma) e pelas testemunhas (artigos 202 e seguintes do citado Código).
Ademais, a Constituição de 1988 assegurou aos acusados em processo criminal o direito ao silêncio (art. 5º, inc. LXIII), o que equivale ao reconhecimento de que o comportamento processual dos réus configura exercício do direito de defesa e prática do correlato direito de argumentar (alegar), de que também é titular o Ministério Público.
Nesses termos, operou-se a reforma das regras que disciplinavam o interrogatório do acusado em juízo e, mais importante, a nova redação do artigo 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal sublinhou o caráter de autodefesa que distingue o interrogatório dos demais atos processuais.
É evidente que tal mudança tem peso nas rotinas e práticas do processo penal. É significativo que a confissão, antes extraordinariamente avaliada pelos julgadores, tenha perdido seu status de prova (malgrado tenho sido assim tratada contra todas as evidências do próprio sistema do Código de Processo Penal).
Isso se tornou mais evidente a partir da Lei 11.719/08, que transferiu o interrogatório para o último momento da Audiência de Instrução e Julgamento, apesar de mantê-lo anterior ao requerimento de diligências pelas partes no procedimento ordinário[32], de forma que o acusado possa exercer sua autodefesa sem ignorar as provas produzidas durante o processo.
O período de domínio intelectual da confissão, todavia, produziu e ainda produz seus frutos. A permanência da idéia de que a confissão, especialmente em juízo, revela com segurança a responsabilidade penal daquele que confessa ainda mantém seu poder de sedução. Tanto é assim que há projetos de lei que pretendem viabilizar o julgamento sumário, a partir das evidências da prisão em flagrante associadas à confissão.
Independentemente das incontáveis discussões que o tema proporciona – e que não cabem neste voto – é indispensável, diria verdadeiramente prioritário, recolocar a confissão no lugar processual que lhe cabe no processo penal brasileiro orientado pelas garantias processuais previstas na Constituição da República e em tratados internacionais.
O réu pode calar a verdade. Pode também mentir em juízo. Não há penalidades. Sua intervenção pessoal pode estar orientada por alguma estratégia defensiva, pela disposição de diminuir seu papel no enredo criminoso ou em simples desejo de vingança. Pode ainda estar falando a verdade.
O que o juiz não pode desconhecer é que a “fala” do acusado nada prova. Quando muito indica a existência de meios de prova, convertendo-se ela própria em mera fonte de prova.
(...) o interrogatório apresenta-se como oportunidade processual em que o acusado poderá exercer a autodefesa, falando ou silenciando. Se ele fornecer elementos probatórios, por meio de suas respostas, caberá ao juiz diligenciar sobre as fontes de prova reveladas.[33]
A certeza íntima de que as pessoas somente assumem a responsabilidade por atos que tenham realmente praticado é desmentida pela experiência cotidiana. Ainda que assim não seja, esta certeza é “íntima”, isto é, não pode ser alvo de questionamento por quem quer que seja e dessa maneira não é suscetível de se submeter ao controle pelo contraditório.
Nesse contexto, sem meios de prova há tão-somente versões, e a garantia da presunção de inocência incide para afastar toda e qualquer conclusão desfavorável a acusado contra o qual não se tenha produzido prova.
Assim, como não foi trazida a mencionada segunda apólice de seguro, que teria vigência na data do fato, a dúvida instaurada impõe que se reconheça, em relação a XXXXX, o crime impossível (artigo 17 do Código Penal), por absoluta impropriedade do objeto, já que não há provas de que o contrato de seguro existia quando ela compareceu à delegacia de polícia para comunicar o falso furto.
Com efeito, não é distinta a hipótese daquela em que, com intenção de matar, alguém dispara contra a cabeça de um cadáver, fato que, na esclarecedora lição de Zaffaroni e Pierangeli, sequer caracteriza a tentativa, sendo penalmente atípico:
A tentativa é só uma ampliação da tipicidade para abranger uma etapa anterior à consumação, vale dizer, a falta do tipo objetivo da tentativa surge unicamente da antecipação cronológica da proibição que a tentativa implica, mas de modo algum se podem admitir faltas de outra natureza, porque isso implicará que, com a tentativa, se alcancem condutas que não estão tipificadas, como a perfuração de um cadáver, deitar-se com o próprio cônjuge, apoderar-se de uma coisa própria, a bestialidade, a necrofilia, etc. Em todos esses casos faltará a vida que se queria tirar,, a mulher alheia com quem se relacionar, a coisa alheia de que se desejava apoderar, o lucro indébito que se pretendia obter, a pessoa com quem se desejava o acesso carnal, mas estas faltas não obedecerão a uma antecipação cronológica da proibição, própria da tentativa, por razões totalmente diferentes e, por conseguinte, alheias à natureza da limitação que a tentativa produz no tipo objetivo. Estará faltando muito mais tipicidade objetiva do que aquela que a tentativa exige que falte.
(...)
Quando tem lugar a chamada “inidoneidade de objeto” não é possível falar de tentativa, posto que ela requer o começo de execução de um “delito”, vale dizer, de uma tipicidade objetiva, e não se começa a executar qualquer tipicidade objetiva quando não existe objeto idôneo, sem que haja interesse em se estabelecer se essa inidoneidade é “fática” ou “jurídica”: não começa qualquer tipicidade objetiva quem pretende fazer uma mulher que não se encontra grávida abortar, nem tampouco aquele que se apodera de coisa própria.[34]
Dessa forma, a absolvição de XXXXX também por esse motivo seria imperativa.
O mesmo, porém, não poderia ser dito em relação à acusada XXXX.
Isso porque, em primeiro lugar, sua apólice vigia até o dia 10 de agosto de 2009, depois da data do fato. O objeto do crime, pois, nada tem de impróprio.
Os meios de sua execução, a seu turno, também não são absolutamente inidôneos.
É verdade que as acusadas informaram o falso sinistro à polícia em prazo muito superior àquele estipulado no contrato de fls. 143/67, de 24 horas, pois compareceram em sede policial para registrar a ocorrência no dia 26 de julho de 2009, quando a viagem em que teria ocorrido o furto foi feita em 13 de julho.
No entanto, o fato de as rés terem informado à autoridade policial que haviam sido furtadas um dia antes – comprovado pelo interrogatório de XXXX e pelas declarações de fls. 06/9 do apenso –, além de demonstrar o elemento subjetivo do tipo, colocou efetivamente em risco o patrimônio da seguradora, revelando-se como manobra para obter a indenização apesar de extrapolado o prazo para a comunicação.
Igualmente, não procederiam os argumentos relacionados ao local onde estariam guardados os bens falsamente furtados e à ausência de vigilância pelas rés, que, segundo a Defesa, excluem, de plano, a possibilidade de a empresa seguradora indenizar as rés, de acordo com o contrato acostado às fls. 143/67.
Com efeito, a função garantidora do Direito Penal implica estabelecer o bem jurídico como paradigma de legitimação da intervenção do Estado sobre a liberdade individual:
A reprodução do tipo como ação indica que a norma jurídica definidora do injusto é uma norma de conduta e não uma norma meramente de reconhecimento (...). Como norma de conduta, deve estar associada a determinada finalidade: a delimitação do poder de intervenção do Estado, a qual não pode ser alcançada sem um pressuposto material que lhe trace os contornos de estabilidade. Daí a necessidade que se estabeleça, como base da ação típica, a lesão de bem jurídico.[35]
A imposição desse limite à atuação estatal, porém, ao mesmo tempo em que garante o pleno exercício da liberdade ao indivíduo, exige-lhe que aja segundo esses limites, sob pena de estabelecimento de um conflito ético inaceitável sob o ponto de vista da convivência social.
É por isso que o artigo 17 do Código Penal, adotando a teoria objetiva, firma o risco objetivo ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora como premissa do reconhecimento do crime impossível:
Na lei penal brasileira, a tentativa idônea se distingue da inidônea pelo perigo objetivo para o bem jurídico, sob o seguinte argumento: se o resultado de lesão do bem jurídico é o fundamento da punibilidade do fato, então a punibilidade da tentativa exige ação capaz de produzir o resultado típico. A exigência de perigo objetivo de lesão do bem jurídico (teoria do autor) – sem o qual não pode existir início de execução do tipo objetivo -, representa correta decisão político-criminal do legislador e, por outro lado, é compatível com a variante minoritária da teoria objetiva individual, que exige comportamento típico manifestado em ação de execução específica do tipo.[36]
No caso concreto, porém, os argumentos deduzidos pela Defesa em prol do reconhecimento da chamada tentativa inidônea dizem respeito ao mérito de futura discussão que seria travada entre as contratantes do seguro e a empresa contratada, talvez até em juízo, o que, por si só, impõe reconhecer o risco ao patrimônio da seguradora, bem jurídico tutelado pelo artigo 171, § 2.º, inciso V, do Código Penal.
Com efeito, não é incomum, em casos parecidos, em que o segurado mantém seus pertences em local não acobertado pelo seguro, o ajuizamento de ações judiciais e até mesmo o seu acolhimento, apesar da existência de cláusulas contratuais similares às que a Defesa levanta com o fim de ver ambas as rés absolvidas com fulcro no artigo 17 do Código Penal.
É verdade que havia possibilidade de a empresa vir a se certificar da verdadeira data da viagem e das condições em que as rés deixaram seus pertences no ônibus, bem como do fato de elas terem se ausentado do veículo, durante a madrugada, por algumas vezes.
Para o reconhecimento do crime impossível, contudo, “É indispensável que o meio seja inteiramente ineficaz. Se a ineficácia do meio for relativa, haverá tentativa punível”[37].
Não é caso.
Dessa forma, a única acusada que poderia ser beneficiada com o reconhecimento da tentativa inidônea é XXXXX, cuja apólice havia expirado em 09 de julho de 2009.
Posto isto, voto no sentido de dar provimento aos recursos para absolver as apelantes, tendo em vista a ilicitude da prova, restituindo-se imediatamente seus passaportes e oficiando-se à Polícia Federal.
Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 2009.
DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
RELATOR
[1] Grifei.
[2] Grifei.
[3] Processo Penal e Constituição – Princípios Constitucionais do Processo Penal. 4.ª Ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2006, p. 88-89.
[4] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Vol. V. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1974, p. 617.
[5] Idem, p. 618.
[6] LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? 7.ª Ed. Brasiliense, São Paulo, 1986.
[7] MIRANDA, Op. Cit., p. 625.
[8] ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas Ilícitas e Proporcionalidade. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007, p. 36.
[9] Idem, p. 40-42 e BALUTA, José Jairo. O ´Juiz Garantidor` e o Processo como ´Meio Respeitoso` de Garantir os Direitos Individuais. In: Doutrina. Coord.: TUBENCHLAK, James. N.º 5. Instituto de Direito, 1998, p. 141-144.
[10] Direito e Razão. Trad.: SICA, Ana Paula Zomer; CHOUKR, Fauzi Hassan; TAVARES, Juarez e GOMES, Luiz Flávio. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 790.
[11] MIRANDA, Op. Cit., p. 652.
[12] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Vol. V. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1974, p. 185.
[13] Grifei.
[14] Segunda Turma. Rel. MIn. Celso de Mello. Julgamento: 03 de abril de 2007.
[15] Liberdades Públicas e Processo Penal – As interceptações telefônicas. Saraiva. 1976. pág. 189.
[16] Precedentes desta Câmara Criminal: AP 2007.050.05649. Rel. Geraldo Prado. Julgamento: 28/02/2008; AP 2008.050.00771. Rel. Maria Helena Salcedo. Julgamento: 11/03/2009.
[17] Grifei.
[18] Grifei.
[19] Suprema Corte Alemã. Decisão BGHSt 40, 71. Apud ROXIN, Claus. “Nemo tenetur”: La jurisprudência em La encrucijada. In: Pasado, Presente y Futuro del Derecho Procesal Penal. p. 163-178.
[20] LOPES JR. Aury. Palestra proferida no dia 25/06/2009, na 13.ª Reunião do Fórum de Especialização e Atualização do Direito e do Processo Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
[21] GRINOVER, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais e o Direito de Ação. RT. São Paulo, 1973.
[22] COMPARATO, Fábio Konder. Para Viver a Democracia: Liberdades Formais e Liberdades Reais. Brasiliense. São Paulo, 1989, p. 33; HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1997, p. 116-121.
[23] DIAS NETO, Theodomiro, in O Direito ao Silêncio. Revista Brasileira de Ciências Criminais n° 19. São Paulo, 1997, p. 180.
[24] SILVA, Ticiano Alves e. O vetado § 4.º do art. 157 da nova lei 11.690/2008 e a descontaminação do julgado. IBCCRIM. 01/09/2009. Disponível em: www.ibccrim.org.br/site/artigos.
[25] RHC 90376-2/RJ. Segunda Turma. Julgamento: 03/04/2007.
[26] As Nulidades no Processo Penal. 9.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 145-146.
[27] Direito à Prova no Processo Penal. Revista dos Tribunais, 1997, p. 98.
[28] Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2007, p. 369.
[29] TACRIM-SP – AC – Rel. Carvalho Neto – RJD 1/150, RT 635/389 e JUTACRIM 97/352.
[30] Tratado de Direito Penal. V. 3. 3.ª Ed. Saraiva. São Paulo, 2006, p. 297-298.
[31] Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. V. 2. 7.ª Ed. São Paulo, 2001, p. 2896.
[32] Artigo 402 do Código de Processo Penal.
[33] QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova contra Si Mesmo (o princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). Saraiva, São Paulo, 2003, p. 90.
[34] Da tentativa – Doutrina e Jurisprudência. 7.ª Ed. RT. São Paulo, 2005, p. 73-79.
[35] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2.ª Ed. DelRey. Belo Horizonte, 2002, p. 179-180.
[36] SANTOS. Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. 2.ª Ed. Lumen Juris. Curitiba, 2007, p. 391-392.
[37] BITENCOURT, op. cit., V. 1. 11.ª, 2007, p. 405-406.
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