A TODA PROVA
Poder investigatório do Ministério Público é restrito
Há legitimidade constitucional no poder de investigar do MP, pois os organismos policiais (embora detentores da função de polícia judiciária) não têm, no sistema jurídico brasileiro, o monopólio da competência penal investigatória (Concurso Público de Provas e Títulos para Ingresso na Carreira do Ministério Público do Estado de Sergipe).
Literatura e jurisprudência divergem, desde há muito, sobre a possibilidade de o Ministério Público promover, por direito próprio, sob sua autoridade e direção, investigações penais destinadas a esclarecer os fatos delituosos, a apurar as suas circunstâncias e a identificar os seus autores. Em um primeiro momento, não se admitia que os inquéritos que veiculassem investigações penais promovidas pela polícia judiciária fossem dirigidos e presididos pela autoridade ministerial, e por esta, apenas.
Um dos casos mais antigos — senão o mais antigo — a retratar essa compreensão no âmbito do Supremo Tribunal Federal é o Recurso de Habeas Corpus (RHC) 31.579[1], no qual os ministros acordaram declarar, por maioria de votos, a nulidade de um inquérito policial presidido por promotor público.
Esse entendimento foi confirmado ainda sob a égide da Constituição de 1946, nos autos do RHC 34.827, e remanesce no vigente ordenamento constitucional, como bem reconhecido pela Segunda Turma, que, em diversos julgamentos, deixou assentado que a presidência do inquérito policial constitui atribuição exclusiva da autoridade policial[2].
Em decisões mais recentes, contudo, é possível encontrar posicionamento diverso, no sentido de permitir ao Ministério Público promover, por conta própria, investigações de natureza penal. Essa possibilidade foi inicialmente reconhecida por ocasião do julgamento do RHC 48.728 (“Esquadrão da Morte”)[3], um emblemático caso de controle externo da atividade policial, no qual o Plenário reputou legítimo o oferecimento de denúncia contra delegado de polícia fundada em sindicância conduzida exclusivamente por membro do Ministério Público.
Na vigência da Constituição de 1967, com redação dada pela Emenda Constitucional 1/69, a Segunda Turma, ao apreciar o RHC 66.176[4], da relatoria do ministro Carlos Madeira, também deixou de anular denúncia oferecida contra delegado de polícia com base em dados colhidos por um promotor de Justiça. O caso retratava hipótese de conduta omissiva na apuração de um crime contra a administração da Justiça.
A matéria voltou a ser discutida no HC 91.661[5], que também versava sobre investigação penal promovida pelo Ministério Público, reconhecendo, também naquele caso - ainda que implicitamente — a legitimidade constitucional do poder investigatório do Ministério Público, especialmente por se tratar de delito previsto no art. 339, parágrafo 2º, do Código Penal, cometido por policiais.
Mas foi só no HC 89.837[6] que o Supremo se pronunciou, expressamente, sobre os limites do poder investigatório do Ministério Público.
O voto condutor desse aresto, referente a crime de tortura imputado a delegado de polícia, especificou as três únicas hipóteses em que a investigação direta pelo Ministério Público, no quadro constitucional vigente, encontra apoio legal: a) situações de lesão ao patrimônio público[7]; b) excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências arbitrárias, concussão ou corrupção[8]; c) casos em que houver uma intencional omissão da polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração da infração penal[9].
Convém observar que o excepcionalíssimo poder de investigação atribuído ao Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, devendo sua atuação dar-se de forma subsidiária, ocorrendo apenas quando não for possível ou recomendável que a condução das investigações na fase pré-processual da persecução penal sejam efetivadas pela própria polícia[10], de modo a não interferir ou afetar o exercício, pela autoridade policial, de sua irrecusável condição de presidente do inquérito policial.
Os procedimentos investigatórios criminais instaurados pelo Ministério Público, ademais, devem ser, em regra, públicos, e sempre supervisionados pelo Poder Judiciário, conclusões que não destoam do que vem sendo decidido no julgamento do RE 593.727[11], que reconheceu a repercussão geral da matéria.
* O artigo contou com a colaboração de Pierpaolo Cruz Bottini
[1] A questão foi exaustivamente apreciada pelo redator do acórdão, em brilhante e minucioso voto, que assim ficou registrado: “O Código de Processo Penal estabelece que o inquérito policial será presidido pela autoridade policial, pelo delegado. Ora, no caso, o promotor público presidiu inquérito policial. Podia fazê-lo? Não, evidentemente, não. Nem lhe dava competência o Código do Processo Criminal, nem lhe dava competência a lei de organização judiciária local. Dir-se-á: ora um funcionário de fato; ou melhor, que a ele se deveria aplicar o mesmo princípio que se aplica aos juízes incompetentes: desde que não há ato decisório, não há nulidade. Mas uma coisa é autoridade incompetente por força de investidura irregular e outra coisa é autoridade incompetente por força de falta de competência de atribuições. O promotor público, ainda que exerça parte do poder do Estado, não podia dispor de competência para presidir a inquérito policial. Logo, o inquérito foi presidido por pessoa não só incompetente, mas por autoridade nem de fato, autoridade inexistente. Dir-se-á que, se houvesse proferido decisão, seria esta nula, somente. Mas não é possível aplicar tal princípio ao caso em espécie. O preceito de lei manda que o inquérito policial seja presidido pelo delegado de polícia; é essa autoridade que, por assim dizer, colhe os elementos dos autos para a prova respectiva. Ora, uma autoridade que não tem competência, nem atribuição para tanto não pode senão chegar a uma prova inexistente, a uma prova nula, mesmo porque feita perante quem não constituía, nem poderia constituir, realmente, autoridade, perante quem não poderia presidir ao inquérito policial. Era uma autoridade que não tinha competência nem atribuição para tal. Evidentemente que essa prova colhida é uma prova inexistente, uma prova nula, porque feita perante quem não poderia recebê-la, não poderia presidi-la. A evidência é que pela ligação íntima do presidente do inquérito com as provas colhidas, que são resultado do seu esforço, da sua busca e da sua persecução, não há como reconhecer validade desses atos, dessa prova” (STF, RHC 31.579/PB, Rel. Ministro Afrânio Costa, Rel. p/ Acórdão Ministro Sampaio Costa, Plenário, julgado em 28/05/1951, DJ 25/05/1953 p. 1.432).
[2] STF, HC 84.965/MG, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, DJe 11/04/2012; RHC 81.326/DF, Rel. Ministro Nelson Jobim, Segunda Turma, julgado em 06/05/2003, DJ 01/08/2003, p. 142; STF, RE 233.072/RJ, Rel. Ministro Néri da Silveira, Rel. p/ Acórdão Ministro Nelson Jobim, Segunda Turma, julgado em 18/05/1999, DJ 03/05/2002, p. 22; STF, Inq 1.828/SP, Rel. Ministro Nelson Jobim, julgado em 29/06/2004, DJ 02/08/2004, p. 18.
[3] STF, RHC 48.728/SP, Rel. Ministro Luiz Gallotti, Plenário, julgado em 26/05/1971, DJ 20/11/1972, p. 7.668.
[4] STF, RHC 66.176/SC, Rel. Ministro Carlos Madeira, Segunda Turma, julgado em 26/04/1988, DJ 12/05/1988 p. 11201.
[5] STF, HC 91.661/PE, Rel. Ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 10/03/2009, DJe 03/04/2009.
[6] STF, HC 89.837/DF, Rel. Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 20/10/2009, DJe 20/11/2009.
[7] STF, HC 84.965/MG, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, DJe 11/04/2012 (investigação encetada sobre suposta prática de crimes contra a ordem tributária e formação de quadrilha, cometido por dezesseis pessoas, sendo onze delas fiscais da Receita Estadual, outros dois policiais militares, dois advogados e um empresário).
[8] STF HC 84.965/MG, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, DJe 11/04/2012 (investigação encetada sobre suposta prática de crimes contra a ordem tributária e formação de quadrilha, cometido por dezesseis pessoas, sendo onze delas fiscais da Receita Estadual, outros dois policiais militares, dois advogados e um empresário).
[9] Acrescente-se às referidas hipóteses o caso versado no HC 93.224, que não cuidava de qualquer investigação empreendida pelo Ministério Público, pois aquele a quem se atribuía a prática do crime tipificado no art. 4º, alínea “a”, da Lei nº 4.898/65 (abuso de autoridade) era membro do Parquet. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público incumbe expressamente ao Procurador-Geral de Justiça a realização de investigações quando se trate de acusado membro da instituição (STF, HC 93.224/SP, Rel. Ministro Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 13/05/2008, DJe 05/09/2008).
[10] STF, HC 93.930/RJ, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 07/12/2010, DJe 03/02/2011.
[11] Os Ministros Cezar Peluso, relator do recurso, e Ricardo Lewandowski, entenderam que o Ministério Público só pode exercer investigações criminais em substituição à polícia judiciária, quando tiverem por objeto fatos teoricamente criminosos praticados: a) por membros ou servidores do próprio órgão ministerial; b) por autoridades ou agentes policiais; ou, ainda, c) por terceiros, sempre que a autoridade policial, notificada sobre o caso, não instaurar o devido inquérito policial. O posicionamento do Ministro Celso de Mello alinha-se ao do Ministro Gilmar Mendes, no sentido da possibilidade de investigação por parte do Ministério Público de forma subsidiária. O Ministro Marco Aurélio não admite que o órgão ministerial possua competência para realizar diretamente investigações na esfera criminal. Para os Ministros Ayres Britto e Joaquim Barbosa, o Ministério Público tem competência constitucional para, por conta própria, e de forma independente, fazer investigações em matéria criminal (Informativos STF 325 e 671).
Aldo de Campos Costa é advogado. Foi professor substituto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e assessor especial do Ministro da Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 6 de março de 2013
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