O que a renúncia de Ratzinger ensina à política. Artigo de Giorgio Agamben
"Não sabemos se a Igreja será capaz de tirar proveito da lição de Ratzinger: mas certamente seria importante que os poderes laicos aproveitassem a oportunidade para se interrogarem novamente sobre a sua própria legitimidade", escreve Giorgio Agamben, professor da Universidade IUAV de Veneza, do Collège International de Philosophie de Paris, e da cátedraBaruch Spinoza da European Graduate School, na Suíça, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 16-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo Agamben, "os poderes e as instituições não estão hoje deslegitimados porque caíram na ilegalidade; ao invés, o contrário é verdade, ou seja, que a ilegalidade é tão difundida e generalizada porque os poderes perderam toda consciência da sua legitimidade".
"É inútil acreditar que se possa enfrentar a crise das nossas sociedades por meio da ação – certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que investe contra a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do direito", afirma o filósofo italiano. Pois, continua, "hipertrofia do direito, que pretende legislar sobre tudo, ao invés, trai, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial".
Eis o texto.
A decisão de Bento XVI deve ser considerada com extrema atenção por quem quer que traga no coração o destino político da humanidade. Realizando a "grande recusa", ele deu provas não de covardia, como Dante escreveu talvez injustamente sobre Celestino V, mas de uma coragem que adquire hoje um sentido e um valor exemplares.
Deve ser evidente para todos, de fato, que as razões invocadas pelo pontífice para motivar a sua decisão, certamente em parte verdadeiras, não podem, de forma alguma, explicar um gesto que, na história da Igreja, tem um significado totalmente particular. E esse gesto adquire todo o seu peso se lembrarmos que, no dia 4 de julho de 2009, Bento XVI havia deposto justamente sobre o túmulo de Celestino V, em Sulmona, o pálio que ele havia recebido no momento da investidura, provando que a decisão havia sido meditada.
Por que essa decisão nos parece exemplar hoje? Porque ela chama novamente com força a atenção para a distinção entre dois princípios essenciais da nossa tradição ético-política, dos quais as nossas sociedades parecem ter perdido toda consciência: a legitimidade e a legalidade. Se a crise que a nossa sociedade está passando é tão profunda e grave é porque ela não põe em questão apenas a legalidade das instituições, mas também a sua legitimidade; não apenas, como se repete frequentemente, as regras e as modalidades do exercício do poder, mas também o princípio mesmo que o fundamenta e legitima.
Os poderes e as instituições não estão hoje deslegitimados porque caíram na ilegalidade; ao invés, o contrário é verdade, ou seja, que a ilegalidade é tão difundida e generalizada porque os poderes perderam toda consciência da sua legitimidade. Por isso, é inútil acreditar que se possa enfrentar a crise das nossas sociedades por meio da ação – certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que investe contra a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do direito. A hipertrofia do direito, que pretende legislar sobre tudo, ao invés, trai, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial. A tentativa da modernidade de fazer coincidir legalidade e legitimidade, buscando assegurar através do direito positivo a legitimidade de um poder, é, como ficar claro pelo irrefreável processo de decadência em que as nossas instituições democráticas entraram, totalmente insuficiente.
As instituições de uma sociedade permanecem vivas somente se ambos os princípios (que, na nossa tradição, também receberam o nome de direito natural e direito positivo, de poder espiritual e poder temporal) permanecem presentes e agem nela sem nunca pretender coincidir.
Por isso, o gesto de Bento XVI é tão importante. Esse homem, que estava à frente da instituição que exibe o mais antigo e significativo título de legitimidade, revogou em questão com o seu gesto o próprio sentido desse título. Diante de uma cúria que se esquece totalmente da própria legitimidade e persegue obstinadamente as razões da economia e do poder temporal, Bento XVI escolheu usar apenas o poder espiritual, do único modo que lhe pareceu possível: isto é, renunciando ao exercício do vicariato de Cristo.
Desse modo, a própria Igreja foi posta em questão desde a sua raiz. Não sabemos se a Igreja será capaz de tirar proveito dessa lição: mas certamente seria importante que os poderes laicos aproveitassem a oportunidade para se interrogarem novamente sobre a sua própria legitimidade.
Eis o texto.
A decisão de Bento XVI deve ser considerada com extrema atenção por quem quer que traga no coração o destino político da humanidade. Realizando a "grande recusa", ele deu provas não de covardia, como Dante escreveu talvez injustamente sobre Celestino V, mas de uma coragem que adquire hoje um sentido e um valor exemplares.
Deve ser evidente para todos, de fato, que as razões invocadas pelo pontífice para motivar a sua decisão, certamente em parte verdadeiras, não podem, de forma alguma, explicar um gesto que, na história da Igreja, tem um significado totalmente particular. E esse gesto adquire todo o seu peso se lembrarmos que, no dia 4 de julho de 2009, Bento XVI havia deposto justamente sobre o túmulo de Celestino V, em Sulmona, o pálio que ele havia recebido no momento da investidura, provando que a decisão havia sido meditada.
Por que essa decisão nos parece exemplar hoje? Porque ela chama novamente com força a atenção para a distinção entre dois princípios essenciais da nossa tradição ético-política, dos quais as nossas sociedades parecem ter perdido toda consciência: a legitimidade e a legalidade. Se a crise que a nossa sociedade está passando é tão profunda e grave é porque ela não põe em questão apenas a legalidade das instituições, mas também a sua legitimidade; não apenas, como se repete frequentemente, as regras e as modalidades do exercício do poder, mas também o princípio mesmo que o fundamenta e legitima.
Os poderes e as instituições não estão hoje deslegitimados porque caíram na ilegalidade; ao invés, o contrário é verdade, ou seja, que a ilegalidade é tão difundida e generalizada porque os poderes perderam toda consciência da sua legitimidade. Por isso, é inútil acreditar que se possa enfrentar a crise das nossas sociedades por meio da ação – certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que investe contra a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do direito. A hipertrofia do direito, que pretende legislar sobre tudo, ao invés, trai, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial. A tentativa da modernidade de fazer coincidir legalidade e legitimidade, buscando assegurar através do direito positivo a legitimidade de um poder, é, como ficar claro pelo irrefreável processo de decadência em que as nossas instituições democráticas entraram, totalmente insuficiente.
As instituições de uma sociedade permanecem vivas somente se ambos os princípios (que, na nossa tradição, também receberam o nome de direito natural e direito positivo, de poder espiritual e poder temporal) permanecem presentes e agem nela sem nunca pretender coincidir.
Por isso, o gesto de Bento XVI é tão importante. Esse homem, que estava à frente da instituição que exibe o mais antigo e significativo título de legitimidade, revogou em questão com o seu gesto o próprio sentido desse título. Diante de uma cúria que se esquece totalmente da própria legitimidade e persegue obstinadamente as razões da economia e do poder temporal, Bento XVI escolheu usar apenas o poder espiritual, do único modo que lhe pareceu possível: isto é, renunciando ao exercício do vicariato de Cristo.
Desse modo, a própria Igreja foi posta em questão desde a sua raiz. Não sabemos se a Igreja será capaz de tirar proveito dessa lição: mas certamente seria importante que os poderes laicos aproveitassem a oportunidade para se interrogarem novamente sobre a sua própria legitimidade.
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