Texto publicado sexta, dia 28 de janeiro de 2011
Entrevistas
"A globalização destruiu totalmente o social"
Aos 85 anos de idade, o sociólogo francês Alain Touraine é um dos pensadores contemporâneos que há mais tempo oferece ideias originais para explicar o que acontece por este vasto mundo. Ainda nos anos 60, quando a fumaça saindo das chaminês era sinal de pujança econômica, ele foi dos primeiros a falar de uma sociedade pós-industrial, em que os serviços e não a industria seria a locomotiva do crescimento. Hoje em dia ele é um dos mais argutos intérpretes da recente crise global que abalou as finanças internacionais e fala de um mundo em que a sociedade e a política perdeu espaço para a economia. Para ele, depois que a globalização destruiu o social, são forças não-sociais, como a ecologia, o novo feminismo e o individualismo que devem moldar a sociedade moderna.
Sobre essas ideias versa a entrevista que Alain Touraine concedeu à jornalista Leila Sterenberg, do programa Milênio, do canal de televisão por assinatura Globo News, levada ao ar no último dia 17 de janeiro, e que a Consultor Jurídicotranscreve a seguir:
Leila Sterenberg — Heidegger, Derrida, Foucault, McLuhan, Bauman. Uma lista hipotética dos pensadores mais importantes da segunda metade do século 20 pode ser tão extensa quanto inglória, mas o nome do sociólogo francês Alain Touraine certamente estará nela. Criador do conceito de sociedade pós-industrial, que caracteriza a substituição de uma economia baseada na indústria para outra em que o setor de serviços tem um peso maior, Touraine foi um dos primeiros intelectuais a exercer um olhar crítico sobre os processos de privatização, internacionalização do capital, liberalismo econômico, mudanças sociais, tudo aquilo que seria chamado, décadas depois, de globalização. Com uma produção intelectual extensa — publicou cerca de 40 livros — ele se debruçou sobre analises que vão do movimento de maio de 68 e o seu comunismo utópico até discussões sobre a laicidade do Estado e a capacidade das sociedades em aceitar a diferença. Sua obra mais recente Après la Crise (Depois da Crise, em português), trata dos rumos da economia de mercado. É observador atento do que se passe no Brasil. Em sua visita mais recente fez críticas ao sistema político brasileiro, mas se mostrou otimista em relação a nosso futuro. Aos 85 anos o professor Alain Touraine é lúcido, franco e gentil. Ele recebeu a equipe do Milênio no Rio de Janeiro.
Leila Sterenberg — Em seu último livro, Après la Crise, o senhor explica como a crise econômica age nas tendências de longo prazo que transformam a sociedade. E o senhor veio ao Brasil para um seminário com o tema “A Queda e o Renascimento das Sociedades Ocidentais”. A crise econômica mundial que começou nos EUA em 2008 faz parte desse processo de queda e renascimento, e nós, neste momento, ainda estamos em queda ou já estamos no processo de renascimento?
Alain Touraine — O que eu quis dizer é que uma crise é algo normal, meu Deus! Nós podemos cair, um motor pode entrar em pane, nós podemos fazer uma bobagem. O que eu acho é que aquilo que estamos vivendo é bem mais do que uma crise. É algo de longo prazo com o qual vamos conviver, e que é a separação completa da economia e da sociedade. E eu ainda acrescento a isso, como consequência, a destruição do que chamamos de sociedade, já que o que chamamos de sociedade são instituições que usam recursos, com os quais fazemos escolas, estradas, sistemas de previdência social, aviões, o que se quiser. Bem, o que nós vivemos por trás da crise é a globalização, ou seja, o fato de que a economia mundial hoje está essencialmente ligada às finanças. A existência de empresas, em si, não é um problema. Mas nós não estamos mais em mundo de empresas, estamos em um mundo de mercado, de mercado globalizado, e ninguém pode controlar isso. Obama, com a ajuda dos europeus, conseguiu impedir a catástrofe, mas não conseguiu mudar o sistema, e os europeus conseguiram ainda menos. Consequentemente podemos dizer que, hoje, o sistema econômico-financeiro mundial não está controlado e não é controlável. Em outras palavras, a ideia de reforma social desapareceu, não faz mais sentido. Nós não podemos mais reformar isso.
Leila Sterenberg — As manifestações populares na Europa por causa das medidas de austeridade, o próprio crescimento da extrema direita na Europa, a posição ferrenha a Barack Obama nos EUA, representada pelo Tea Party, e o populismo nem sempre democrático na América Latina, tudo isso faz parte do mesmo fenômeno, são facetas dele?
Alain Touraine — Podemos dizer que sim, mas em nível bem geral. Porém, é preciso avaliá-los separadamente. O que me impressiona na Europa, há alguns anos, é o silêncio. Antes, havia lutas sociais contra a transnacionalização da produção etc. Desde 2007, desde que eclodiu a crise, não vemos quase nada. E o que aparece não são contraprojetos ou críticas, pois o pensamento político chegou a zero. O que aparece são condutas de recusa. Às vezes, uma recusa da extrema esquerda, mas, na maioria das vezes, é uma recusa da extrema direita. O maior movimento de opinião política da Europa hoje em dia é a xenofobia, em especial nos países do norte, nos países avançados, que tiveram reformas social-democráticas etc. Assusta-nos ver como foi na Suécia, que era o país social-democrata por excelência. Há alguns anos, era governada pela direita, mas acaba de incorporar a extrema direita à maioria parlamentar. E há um movimento que podemos chamar de fascista — embora a palavra não queira dizer muita coisa hoje em dia — extremamente xenófobo na região belga de Flandres. Eu não falo do Bloco Flamengo, que é a esquerda. Extrema esquerda ou extrema direita, pouco importa, mas a forma extremada do movimento flamengo. Hoje, não existem mais projetos sociais, não existe mais debate social. Que país discute a educação? Só dizem que vai mal. Que país discute a democracia? Só dizem que não existe mais. Entende? Estamos em uma situação histórica que, a meu ver, marca o fim daquilo que foi o modelo europeu, sob o qual muitas pessoas ainda vivem no mundo, de um jeito ou de outro, inclusive o Brasil, e a pergunta que fica é: hoje existem forças capazes de resistir ao vasto poder da economia financeira global? Esse é o problema. E, para dificultar ainda mais a solução do problema, eu acrescento: quais são as forças que não podem mais ser sociais, já que a globalização fez desaparecer, destruiu totalmente, o social? Então, são necessárias forças não sociais. Essa é a minha preocupação.
Leila Sterenberg — E quais seriam as forças não sociais?
Alain Touraine — Então, vamos lá. Eu vejo três forças em ação, mas uma delas, no momento está congelada, não atua. A força não social que tem mais importância hoje, inclusive no Brasil, é a ecologia. A ecologia não é algo social, é a vida ou a morte do planeta. Não é um problema cultural, mas de sobrevivência. Não é um problema social. E a prova disso é que vemos pessoas sensíveis ao tema da ecologia na direita, na esquerda, no centro, isso não importa. Os alemães são muito sensíveis ao tema, os americanos e os ingleses também. Discute-se isso na China, nas reuniões internacionais. Isso, a meu ver, é a primeira grande coisa. Que é real, presente. O segundo fator com o qual eu continuo a contar bastante – eu até escrevi um livro sobre isso há não muito tempo – é o novo feminismo. As mulheres conseguiram seus direitos etc., mas, quando conversamos com as mulheres hoje, quando trabalhamos com as mulheres, qualquer tipo de mulher, seja ela funcionária, operária, professora etc., elas representam efetivamente um novo modelo de sociedade. As mulheres têm esse modelo e o expressam facilmente, mas elas sumiram da vida política, e os estudos sobre as mulheres são sempre sobre violência, violência e violência. Antes, era a violência brutal. Agora, é o incesto, o estupro pelo marido... Ou seja, as formas mais extremas de violência que há. E não falamos mais de mulheres que atuam, como agente de mudança. O terceiro elemento é, no fundo, o mais interessante, porque é o mais decisivo, é o individualismo. O individualismo, por definição, não é social, pois se trata de definir o indivíduo de outra forma que não socialmente. Às vezes, o resultado é ruim, como o comunitarismo: todos somos iguais, homogêneos, com a mesma identidade. Deixemos isso de lado, pois é fácil julgá-lo, e é algo negativo. Vocês tem uma afirmação que sumiu por 150, 200 anos, que é a afirmação dos direitos. Os direitos, naturalmente, políticos, sociais, hoje em dia, direito à cultura, os direitos das mulheres, das minorias etc. Mas isso tudo se juntou e se tornou um princípio fundamental, que é lutar pelo direito de ter direitos. Essa frase não é minha, mas de Hannah Arendt, e eu acho que ela resume bem a força moral, ética e política que se constituiu em torno desse tema do valor universal não social, mais que social... Quando digo mais que social, quer dizer, por exemplo, que isso não está nos códigos, mas na Constituição, ou seja, acima do nível da lei ordinária. Então, eu queria dizer que, se vocês conseguirem desenvolver a estimular ainda mais a consciência ecológica, se vocês forem cada vez mais sensíveis à violência contra os seres humanos, de todos os tipos... Pois o mundo está cheio de massacres e genocídios, de gente morrendo de fome ou que são deixadas a morrer de fome. Então, aí, surge a pergunta: como isso tudo pode caminhar junto? E torna-se necessário um instrumento político para ligar isso tudo, mas, aí, nós não temos. Mesmo quando falamos de democracia, não sabemos mais do que falamos.
Leila Sterenberg — E o que o senhor pensa do Brasil politicamente, porque o senhor declarou que temos um sistema político horrível, corrupto. O que o senhor acha da maturidade democrática do Brasil?
Alain Touraine — Eu acho que historicamente, falando, o Brasil teve um sistema político horrível, com um populismo no limite do ridículo. Janio Quadros e Jango não foram muito brilhantes. Foi o colapso do sistema político, e, por muito tempo, houve incidentes famosos no Congresso, violência etc. Mas é preciso lembrar que o Brasil viveu 16 anos de uma formidável consolidação. Fernando Henrique Cardoso reconstruiu as instituições, começou a fazer as pessoas entrarem em uma casa reconstruída, e Lula, em seu segundo mandato, incluiu muitas outras pessoas. Então, o Brasil de hoje é um país que dispõe de uma infraestrutura e também de uma riqueza econômica que não tem nada a ver... O Brasil se tornou uma grande potência. O BRIC não quer dizer grande coisa, pois os países são muito diferentes uns dos outros, mas o Brasil é realmente uma grande potência. Mas com um sistema político que continua fraco. Não vou citar nenhum partido, mas há grandes partidos no Brasil aos quais nem adianta perguntar qual é seu programa, pois ele será “x” ou “y”, em aliança com este ou aquele partido.
Leila Sterenberg — Foi por isso que o senhor disse que existe o risco de o Brasil regredir?
Alain Touraine — Existe, perfeitamente, mas existe em todos os países... Existe um risco grande, depois desse esforço de consolidação, de reconstrução do Brasil e também de um período muito favorável do ponto de vista econômico, de vocês terem uma pressão do tipo populista. Com a saída de Lula – ou não, mas, em todo caso, fora da cadeira presidencial -, não sabemos se esse sistema político será capaz de resistir às demandas, de não ceder às pressões indiscriminadas, sejam elas boas ou ruins. Eu estou otimista. Mais uma vez, eu acho que o Brasil de hoje, dentre os novos grandes países, as novas grandes potências, é o país que tem mais argumentos nas mãos e que mais tem construído uma civilização. Isso me impressiona muito no Brasil. É verdade que a opinião pública reconhece os países que criam símbolos e aqueles que não criam. Se você diz “Uruguai”, tudo bem que é um país pequeno, mas nada nos vem à mente. Se você diz “Brasil”, imediatamente... Entende? De “Garota de Ipanema” até "Lula", passando por várias coisas, as escolas de samba etc.
Leila Sterenberg — O futebol!
Alain Touraine — E o futebol, claro. Mas, enfim, há vários símbolos nacionais, e eu acho que, hoje, estamos em um ponto em que a consciência nacional é fundamental para a modernização de um país?
Leila Sterenberg — Como o senhor vê a nova presidente?
Alain Touraine — Eu não vejo, pois não a conheço. Ninguém a conhece, ela tem um passado que foi lembrado, ela provavelmente é uma pessoa mais política. A ideia que me vem em mente é que Lula era – falando da pessoa – um sindicalista, e ela é uma política. E, sendo política, deve ser mais radical, enquanto, com um sindicalista como Lula, era possível negociar. E ele negociou em nível mundial, foi um negociador formidável. Então, obviamente, deve haver um crescimento da vontade política, dos esforços necessários e, consequentemente, uma certa tensão política. Mas eu acho que a tensão política é algo positivo.
Leila Sterenberg — Com uma mulher que quase se tornou presidente da França, Ségolène Royal, o senhor escreveu em 2008 o livro Si La Gauche Veut dês Idées” (Se a esquerda quisesse ideias, em português), com propostas para uma nova esquerda na França. Ele chama a atenção para um nome que é cada vez mais forte no Partido Socialista, que é o de Dominique Strauss-Kahn, que é o diretor-geral do Fundo Monetário Internacional. É possível que vejamos, em 2012, um candidato do Partido Socialista saído do primeiro escalão do FMI e...?
Alain Touraine — O que não é uma garantia de esquerda.
Leila Sterenberg — Pois é. Há um paradoxo nisso?
Alain Touraine — Há um paradoxo. Que vou resumir da seguinte maneira: atualmente, a lógica das coisas é que Sarkozy perca. Ele é muito impopular, só tem 25% a 30% de apoio. A coisa pode mudar em um ano, mas, atualmente, ele é muito impopular. Qual é a dificuldade que há pela frente? Pela primeira vez, a ideia de um presidente de esquerda não é um sonho, é uma realidade. Qual é a dificuldade? Para que haja um presidente de esquerda, o presidente, o candidato, não pode ser demais à esquerda e seu programa tem que ser bem de esquerda. Porque as pessoas têm muita raiva do governo atual. Como reunir o centro-esquerda e a esquerda da esquerda? Você falou de Strauss-Kahn, mas, no Partido Socialista, não há operários. Há alguns patrões, há vários engenheiros, mas não operários. Então, é um partido que não tem base hoje em dia. Porque as classes médias intelectuais, que votam no Partido Socialista, são vítimas da evolução social atual e dos esforços financeiros necessários que sobrecarregam os médios, não os pequenos, que não têm dinheiro, nem os grandes, que dão um jeito para não pagar imposto ou para pagar menos do que deveriam. Então, ainda há uma fragilidade da oposição socialista. Mas ela é menos absoluta na Itália.
Leila Sterenberg — O que está acontecendo?
Alain Touraine — Há um esgotamento dos modelos políticos, e eu acho que a responsabilidade dos intelectuais nisso é muito grande, porque, em uma país como a França ou a Itália, um pouco no Brasil, muito na Argentina, na Venezuela e em outros países, os intelectuais fizeram a política do pior. Na América Latina, a maioria dos intelectuais disse: “Nós dependemos do capitalismo internacional, então não podemos fazer nada.” Os intelectuais franceses gostam muito de falar o mesmo: “Não podemos fazer nada. Somos dominados, manipulados etc.” E essa atitude é desastrosa politicamente e faz com que exista ainda em países como a França, todo um vocabulário político que data de 100 anos atrás — ou, no mínimo, 50 anos, mas está mais para 100 anos — e que não tem nenhuma capacidade de mobilização. Nós não podemos sobreviver às mudanças atuais sem idéias novas de uma maneira que corresponda à realidade e que inspire confiança. Então, o que eu diria hoje do mundo ocidental é que essas doenças são bem menos doenças da mão, das pernas ou dos pés, do que são da cabeça. Em outras palavras, se eu assumo uma posição radical ou até excessiva sobre a situação, dizendo que há todo um sistema que ruiu do ponto de vista econômico, é preciso ver que o grande obstáculo hoje em dia – como eu dizia, um pouco para o Brasil, mas muito mais para os europeus – é a renovação das idéias e do pessoal, dos político, dos intelectuais, dos sindicatos, de tudo. A Europa é uma região sem voz, que não fala. Hoje, eu tenderia mais a dizer que, se o modelo europeu – ou seja, a união da sociedade e da economia, com a política unindo tudo isso -, se o modelo europeu puder renascer, neste momento, é mais provável que seja fora da Europa. Na Europa, eu estou pessimista, pois, afinal de contas, fatos são fatos, o mundo está em pleno crescimento, com exceção da Europa, dos EUA e de parte do mundo árabe. Em outras palavras, os europeus e os americanos – mas os europeus mais claramente – giram em torno de 0% a 1% de crescimento, enquanto o mundo todo cresce a 5%, e a China cresce a 8%, 9%, 10%. Se pensarmos em 10, 20 anos, vemos uma reversão completa.
Leila Sterenberg — Esse crescimento da China, que, aliás, não é uma democracia, o senhor tem medo desse crescimento?
Alain Touraine — Não, eu nunca tenho medo do crescimento. Eu acho que o crescimento é sempre bom, e vocês, latinos-americanos, em especial, vivem da China atualmente. A Argentina vive completamente da China. O Brasil vende para a China alimentos, mas também metais. A vantagem do Brasil é que ele criou um mercado interno, ele implantou uma indústria, e, nos últimos 15 anos, também houve um grande movimento de integração de parte da população. Mas a África só vive... E a África hoje tem uma taxa de crescimento, ao menos aparente... É preciso levar em conta que a população cresce muito rápido. Mas a África está se recuperando, e são os chineses que administram o comércio internacional dos países africanos. Eu poderia encontrar exemplos em toda parte, mas eu acho que, em escala mundial, para salvar um modelo que podemos chamar de “civilizado”, hoje, os olhares se voltam em especial para a Índia e o Brasil.
Sobre essas ideias versa a entrevista que Alain Touraine concedeu à jornalista Leila Sterenberg, do programa Milênio, do canal de televisão por assinatura Globo News, levada ao ar no último dia 17 de janeiro, e que a Consultor Jurídicotranscreve a seguir:
Leila Sterenberg — Heidegger, Derrida, Foucault, McLuhan, Bauman. Uma lista hipotética dos pensadores mais importantes da segunda metade do século 20 pode ser tão extensa quanto inglória, mas o nome do sociólogo francês Alain Touraine certamente estará nela. Criador do conceito de sociedade pós-industrial, que caracteriza a substituição de uma economia baseada na indústria para outra em que o setor de serviços tem um peso maior, Touraine foi um dos primeiros intelectuais a exercer um olhar crítico sobre os processos de privatização, internacionalização do capital, liberalismo econômico, mudanças sociais, tudo aquilo que seria chamado, décadas depois, de globalização. Com uma produção intelectual extensa — publicou cerca de 40 livros — ele se debruçou sobre analises que vão do movimento de maio de 68 e o seu comunismo utópico até discussões sobre a laicidade do Estado e a capacidade das sociedades em aceitar a diferença. Sua obra mais recente Après la Crise (Depois da Crise, em português), trata dos rumos da economia de mercado. É observador atento do que se passe no Brasil. Em sua visita mais recente fez críticas ao sistema político brasileiro, mas se mostrou otimista em relação a nosso futuro. Aos 85 anos o professor Alain Touraine é lúcido, franco e gentil. Ele recebeu a equipe do Milênio no Rio de Janeiro.
Leila Sterenberg — Em seu último livro, Après la Crise, o senhor explica como a crise econômica age nas tendências de longo prazo que transformam a sociedade. E o senhor veio ao Brasil para um seminário com o tema “A Queda e o Renascimento das Sociedades Ocidentais”. A crise econômica mundial que começou nos EUA em 2008 faz parte desse processo de queda e renascimento, e nós, neste momento, ainda estamos em queda ou já estamos no processo de renascimento?
Alain Touraine — O que eu quis dizer é que uma crise é algo normal, meu Deus! Nós podemos cair, um motor pode entrar em pane, nós podemos fazer uma bobagem. O que eu acho é que aquilo que estamos vivendo é bem mais do que uma crise. É algo de longo prazo com o qual vamos conviver, e que é a separação completa da economia e da sociedade. E eu ainda acrescento a isso, como consequência, a destruição do que chamamos de sociedade, já que o que chamamos de sociedade são instituições que usam recursos, com os quais fazemos escolas, estradas, sistemas de previdência social, aviões, o que se quiser. Bem, o que nós vivemos por trás da crise é a globalização, ou seja, o fato de que a economia mundial hoje está essencialmente ligada às finanças. A existência de empresas, em si, não é um problema. Mas nós não estamos mais em mundo de empresas, estamos em um mundo de mercado, de mercado globalizado, e ninguém pode controlar isso. Obama, com a ajuda dos europeus, conseguiu impedir a catástrofe, mas não conseguiu mudar o sistema, e os europeus conseguiram ainda menos. Consequentemente podemos dizer que, hoje, o sistema econômico-financeiro mundial não está controlado e não é controlável. Em outras palavras, a ideia de reforma social desapareceu, não faz mais sentido. Nós não podemos mais reformar isso.
Leila Sterenberg — As manifestações populares na Europa por causa das medidas de austeridade, o próprio crescimento da extrema direita na Europa, a posição ferrenha a Barack Obama nos EUA, representada pelo Tea Party, e o populismo nem sempre democrático na América Latina, tudo isso faz parte do mesmo fenômeno, são facetas dele?
Alain Touraine — Podemos dizer que sim, mas em nível bem geral. Porém, é preciso avaliá-los separadamente. O que me impressiona na Europa, há alguns anos, é o silêncio. Antes, havia lutas sociais contra a transnacionalização da produção etc. Desde 2007, desde que eclodiu a crise, não vemos quase nada. E o que aparece não são contraprojetos ou críticas, pois o pensamento político chegou a zero. O que aparece são condutas de recusa. Às vezes, uma recusa da extrema esquerda, mas, na maioria das vezes, é uma recusa da extrema direita. O maior movimento de opinião política da Europa hoje em dia é a xenofobia, em especial nos países do norte, nos países avançados, que tiveram reformas social-democráticas etc. Assusta-nos ver como foi na Suécia, que era o país social-democrata por excelência. Há alguns anos, era governada pela direita, mas acaba de incorporar a extrema direita à maioria parlamentar. E há um movimento que podemos chamar de fascista — embora a palavra não queira dizer muita coisa hoje em dia — extremamente xenófobo na região belga de Flandres. Eu não falo do Bloco Flamengo, que é a esquerda. Extrema esquerda ou extrema direita, pouco importa, mas a forma extremada do movimento flamengo. Hoje, não existem mais projetos sociais, não existe mais debate social. Que país discute a educação? Só dizem que vai mal. Que país discute a democracia? Só dizem que não existe mais. Entende? Estamos em uma situação histórica que, a meu ver, marca o fim daquilo que foi o modelo europeu, sob o qual muitas pessoas ainda vivem no mundo, de um jeito ou de outro, inclusive o Brasil, e a pergunta que fica é: hoje existem forças capazes de resistir ao vasto poder da economia financeira global? Esse é o problema. E, para dificultar ainda mais a solução do problema, eu acrescento: quais são as forças que não podem mais ser sociais, já que a globalização fez desaparecer, destruiu totalmente, o social? Então, são necessárias forças não sociais. Essa é a minha preocupação.
Leila Sterenberg — E quais seriam as forças não sociais?
Alain Touraine — Então, vamos lá. Eu vejo três forças em ação, mas uma delas, no momento está congelada, não atua. A força não social que tem mais importância hoje, inclusive no Brasil, é a ecologia. A ecologia não é algo social, é a vida ou a morte do planeta. Não é um problema cultural, mas de sobrevivência. Não é um problema social. E a prova disso é que vemos pessoas sensíveis ao tema da ecologia na direita, na esquerda, no centro, isso não importa. Os alemães são muito sensíveis ao tema, os americanos e os ingleses também. Discute-se isso na China, nas reuniões internacionais. Isso, a meu ver, é a primeira grande coisa. Que é real, presente. O segundo fator com o qual eu continuo a contar bastante – eu até escrevi um livro sobre isso há não muito tempo – é o novo feminismo. As mulheres conseguiram seus direitos etc., mas, quando conversamos com as mulheres hoje, quando trabalhamos com as mulheres, qualquer tipo de mulher, seja ela funcionária, operária, professora etc., elas representam efetivamente um novo modelo de sociedade. As mulheres têm esse modelo e o expressam facilmente, mas elas sumiram da vida política, e os estudos sobre as mulheres são sempre sobre violência, violência e violência. Antes, era a violência brutal. Agora, é o incesto, o estupro pelo marido... Ou seja, as formas mais extremas de violência que há. E não falamos mais de mulheres que atuam, como agente de mudança. O terceiro elemento é, no fundo, o mais interessante, porque é o mais decisivo, é o individualismo. O individualismo, por definição, não é social, pois se trata de definir o indivíduo de outra forma que não socialmente. Às vezes, o resultado é ruim, como o comunitarismo: todos somos iguais, homogêneos, com a mesma identidade. Deixemos isso de lado, pois é fácil julgá-lo, e é algo negativo. Vocês tem uma afirmação que sumiu por 150, 200 anos, que é a afirmação dos direitos. Os direitos, naturalmente, políticos, sociais, hoje em dia, direito à cultura, os direitos das mulheres, das minorias etc. Mas isso tudo se juntou e se tornou um princípio fundamental, que é lutar pelo direito de ter direitos. Essa frase não é minha, mas de Hannah Arendt, e eu acho que ela resume bem a força moral, ética e política que se constituiu em torno desse tema do valor universal não social, mais que social... Quando digo mais que social, quer dizer, por exemplo, que isso não está nos códigos, mas na Constituição, ou seja, acima do nível da lei ordinária. Então, eu queria dizer que, se vocês conseguirem desenvolver a estimular ainda mais a consciência ecológica, se vocês forem cada vez mais sensíveis à violência contra os seres humanos, de todos os tipos... Pois o mundo está cheio de massacres e genocídios, de gente morrendo de fome ou que são deixadas a morrer de fome. Então, aí, surge a pergunta: como isso tudo pode caminhar junto? E torna-se necessário um instrumento político para ligar isso tudo, mas, aí, nós não temos. Mesmo quando falamos de democracia, não sabemos mais do que falamos.
Leila Sterenberg — E o que o senhor pensa do Brasil politicamente, porque o senhor declarou que temos um sistema político horrível, corrupto. O que o senhor acha da maturidade democrática do Brasil?
Alain Touraine — Eu acho que historicamente, falando, o Brasil teve um sistema político horrível, com um populismo no limite do ridículo. Janio Quadros e Jango não foram muito brilhantes. Foi o colapso do sistema político, e, por muito tempo, houve incidentes famosos no Congresso, violência etc. Mas é preciso lembrar que o Brasil viveu 16 anos de uma formidável consolidação. Fernando Henrique Cardoso reconstruiu as instituições, começou a fazer as pessoas entrarem em uma casa reconstruída, e Lula, em seu segundo mandato, incluiu muitas outras pessoas. Então, o Brasil de hoje é um país que dispõe de uma infraestrutura e também de uma riqueza econômica que não tem nada a ver... O Brasil se tornou uma grande potência. O BRIC não quer dizer grande coisa, pois os países são muito diferentes uns dos outros, mas o Brasil é realmente uma grande potência. Mas com um sistema político que continua fraco. Não vou citar nenhum partido, mas há grandes partidos no Brasil aos quais nem adianta perguntar qual é seu programa, pois ele será “x” ou “y”, em aliança com este ou aquele partido.
Leila Sterenberg — Foi por isso que o senhor disse que existe o risco de o Brasil regredir?
Alain Touraine — Existe, perfeitamente, mas existe em todos os países... Existe um risco grande, depois desse esforço de consolidação, de reconstrução do Brasil e também de um período muito favorável do ponto de vista econômico, de vocês terem uma pressão do tipo populista. Com a saída de Lula – ou não, mas, em todo caso, fora da cadeira presidencial -, não sabemos se esse sistema político será capaz de resistir às demandas, de não ceder às pressões indiscriminadas, sejam elas boas ou ruins. Eu estou otimista. Mais uma vez, eu acho que o Brasil de hoje, dentre os novos grandes países, as novas grandes potências, é o país que tem mais argumentos nas mãos e que mais tem construído uma civilização. Isso me impressiona muito no Brasil. É verdade que a opinião pública reconhece os países que criam símbolos e aqueles que não criam. Se você diz “Uruguai”, tudo bem que é um país pequeno, mas nada nos vem à mente. Se você diz “Brasil”, imediatamente... Entende? De “Garota de Ipanema” até "Lula", passando por várias coisas, as escolas de samba etc.
Leila Sterenberg — O futebol!
Alain Touraine — E o futebol, claro. Mas, enfim, há vários símbolos nacionais, e eu acho que, hoje, estamos em um ponto em que a consciência nacional é fundamental para a modernização de um país?
Leila Sterenberg — Como o senhor vê a nova presidente?
Alain Touraine — Eu não vejo, pois não a conheço. Ninguém a conhece, ela tem um passado que foi lembrado, ela provavelmente é uma pessoa mais política. A ideia que me vem em mente é que Lula era – falando da pessoa – um sindicalista, e ela é uma política. E, sendo política, deve ser mais radical, enquanto, com um sindicalista como Lula, era possível negociar. E ele negociou em nível mundial, foi um negociador formidável. Então, obviamente, deve haver um crescimento da vontade política, dos esforços necessários e, consequentemente, uma certa tensão política. Mas eu acho que a tensão política é algo positivo.
Leila Sterenberg — Com uma mulher que quase se tornou presidente da França, Ségolène Royal, o senhor escreveu em 2008 o livro Si La Gauche Veut dês Idées” (Se a esquerda quisesse ideias, em português), com propostas para uma nova esquerda na França. Ele chama a atenção para um nome que é cada vez mais forte no Partido Socialista, que é o de Dominique Strauss-Kahn, que é o diretor-geral do Fundo Monetário Internacional. É possível que vejamos, em 2012, um candidato do Partido Socialista saído do primeiro escalão do FMI e...?
Alain Touraine — O que não é uma garantia de esquerda.
Leila Sterenberg — Pois é. Há um paradoxo nisso?
Alain Touraine — Há um paradoxo. Que vou resumir da seguinte maneira: atualmente, a lógica das coisas é que Sarkozy perca. Ele é muito impopular, só tem 25% a 30% de apoio. A coisa pode mudar em um ano, mas, atualmente, ele é muito impopular. Qual é a dificuldade que há pela frente? Pela primeira vez, a ideia de um presidente de esquerda não é um sonho, é uma realidade. Qual é a dificuldade? Para que haja um presidente de esquerda, o presidente, o candidato, não pode ser demais à esquerda e seu programa tem que ser bem de esquerda. Porque as pessoas têm muita raiva do governo atual. Como reunir o centro-esquerda e a esquerda da esquerda? Você falou de Strauss-Kahn, mas, no Partido Socialista, não há operários. Há alguns patrões, há vários engenheiros, mas não operários. Então, é um partido que não tem base hoje em dia. Porque as classes médias intelectuais, que votam no Partido Socialista, são vítimas da evolução social atual e dos esforços financeiros necessários que sobrecarregam os médios, não os pequenos, que não têm dinheiro, nem os grandes, que dão um jeito para não pagar imposto ou para pagar menos do que deveriam. Então, ainda há uma fragilidade da oposição socialista. Mas ela é menos absoluta na Itália.
Leila Sterenberg — O que está acontecendo?
Alain Touraine — Há um esgotamento dos modelos políticos, e eu acho que a responsabilidade dos intelectuais nisso é muito grande, porque, em uma país como a França ou a Itália, um pouco no Brasil, muito na Argentina, na Venezuela e em outros países, os intelectuais fizeram a política do pior. Na América Latina, a maioria dos intelectuais disse: “Nós dependemos do capitalismo internacional, então não podemos fazer nada.” Os intelectuais franceses gostam muito de falar o mesmo: “Não podemos fazer nada. Somos dominados, manipulados etc.” E essa atitude é desastrosa politicamente e faz com que exista ainda em países como a França, todo um vocabulário político que data de 100 anos atrás — ou, no mínimo, 50 anos, mas está mais para 100 anos — e que não tem nenhuma capacidade de mobilização. Nós não podemos sobreviver às mudanças atuais sem idéias novas de uma maneira que corresponda à realidade e que inspire confiança. Então, o que eu diria hoje do mundo ocidental é que essas doenças são bem menos doenças da mão, das pernas ou dos pés, do que são da cabeça. Em outras palavras, se eu assumo uma posição radical ou até excessiva sobre a situação, dizendo que há todo um sistema que ruiu do ponto de vista econômico, é preciso ver que o grande obstáculo hoje em dia – como eu dizia, um pouco para o Brasil, mas muito mais para os europeus – é a renovação das idéias e do pessoal, dos político, dos intelectuais, dos sindicatos, de tudo. A Europa é uma região sem voz, que não fala. Hoje, eu tenderia mais a dizer que, se o modelo europeu – ou seja, a união da sociedade e da economia, com a política unindo tudo isso -, se o modelo europeu puder renascer, neste momento, é mais provável que seja fora da Europa. Na Europa, eu estou pessimista, pois, afinal de contas, fatos são fatos, o mundo está em pleno crescimento, com exceção da Europa, dos EUA e de parte do mundo árabe. Em outras palavras, os europeus e os americanos – mas os europeus mais claramente – giram em torno de 0% a 1% de crescimento, enquanto o mundo todo cresce a 5%, e a China cresce a 8%, 9%, 10%. Se pensarmos em 10, 20 anos, vemos uma reversão completa.
Leila Sterenberg — Esse crescimento da China, que, aliás, não é uma democracia, o senhor tem medo desse crescimento?
Alain Touraine — Não, eu nunca tenho medo do crescimento. Eu acho que o crescimento é sempre bom, e vocês, latinos-americanos, em especial, vivem da China atualmente. A Argentina vive completamente da China. O Brasil vende para a China alimentos, mas também metais. A vantagem do Brasil é que ele criou um mercado interno, ele implantou uma indústria, e, nos últimos 15 anos, também houve um grande movimento de integração de parte da população. Mas a África só vive... E a África hoje tem uma taxa de crescimento, ao menos aparente... É preciso levar em conta que a população cresce muito rápido. Mas a África está se recuperando, e são os chineses que administram o comércio internacional dos países africanos. Eu poderia encontrar exemplos em toda parte, mas eu acho que, em escala mundial, para salvar um modelo que podemos chamar de “civilizado”, hoje, os olhares se voltam em especial para a Índia e o Brasil.
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