A verdadeira face do Supremo Tribunal Federal. Entrevista especial com Vladimir Safatle |
"Há um conjunto de decisões que o STF tomou nestes últimos anos que são absolutamente contrárias ao que nós podemos esperar de um tribunal realmente comprometido com a democracia e a universalização dos direitos”, afirma o filósofo |
No artigo ''O STF mais parece uma casa de horrores'', Vladimir Safatle faz profundas críticas sobre o funcionamento do Supremo Tribunal Federal. Na entrevista que concedeu à IHU On-Line, realizada por telefone, ele aponta que “há um conjunto de decisões que o STF tomou nestes últimos anos que são absolutamente contrárias ao que nós podemos esperar de um tribunal realmente comprometido com a democracia e a universalização dos direitos”. E cita exemplos: “a maneira como que certos banqueiros, conhecidamente corruptores, utilizaram-se do STF para conseguir ou escapar do país ou sair da prisão também é algo que nos deixa bastante dubitativos sobre o que este órgão compreende por universalização de obrigações”.
Safatle analisa também a decisão do STF que classificou a Lei da Ficha Limpa como inapta em relação às eleições que ocorreram em 2010. “Acredito que só mesmo um formalismo jurídico muito equivocado consegue justificar algo desta natureza”, disse. Sobre as discussões em torno da reforma do poder judiciário, Safatle afirma que o pecado está no fato de que a questão não leva em conta a participação popular no poder jurídico. E indica perguntas que precisam ser levantadas: “Em que condições podemos quebrar certas situações de crise de legitimidade? Em que processo podemos desenvolver algum tipo de democracia em que a participação direta possa ser mais efetiva?"
Vladimir Safatle é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM. Também é mestre em Filosofia pela USP e doutor pela Université de Paris VIII. Atualmente, é professor da USP. É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy. É autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo: Unesp, 2006) e Lacan (São Paulo: Publifolha, 2007) e um dos organizadores de A filosofia após Freud (São Paulo: Humanitas, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Você poderia comentar mais sobre sua afirmação “o STF mais parece uma casa dos horrores”?
Vladimir Safatle – Há um conjunto de decisões que o Supremo Tribunal Federal – STF tomou nestes últimos anos que são absolutamente contrárias ao que nós podemos esperar de um tribunal realmente comprometido com a democracia e a universalização dos direitos. O caso da interpretação da Lei de Anistia acabou protegendo os torturadores da ditadura militar e é um exemplo clássico neste sentido. Outro exemplo: a maneira como que certos banqueiros, conhecidamente corruptores, utilizaram-se do STF para conseguir ou escapar do país ou sair da prisão também é algo que nos deixa bastante dubitativos sobre o que este órgão compreende por universalização de obrigações.
IHU On-Line – Como podemos compreender que a Lei da Ficha limpa foi esvaziada pelo STF?
Vladimir Safatle – Acredito que só mesmo um formalismo jurídico muito equivocado consegue justificar algo desta natureza. Na verdade, eu me pergunto se eles mesmos acreditam na existência de alguma coisa como vontade popular, porque não é estranho para um poder que não tem nenhum tipo de participação popular direta. Isso nos coloca dentro de outra questão: Todo mundo afirma que uma das essências da democracia liberal é o equilíbrio entre três poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. No entanto, há um desequilíbrio no interior destes (poderes) e esse desequilíbrio é nocivo para a democracia. Parece-me que este é um limite claro da democracia liberal.
O desequilíbrio está aí: dos três poderes somente dois são resultados diretos da participação popular. Esse é um problema muito grave, isto porque, se a vontade popular é aquela que produz as leis através do poder Legislativo, se é aquela que executa as leis através do poder Executivo, não há nenhuma razão de não ser aquela que interpreta as leis que ela mesma produziu. Só que da maneira que o poder Judiciário é pensado, isso é curto circuitado.
IHU On-Line – Por que a vontade do povo é excluída desse tipo de decisão?
Vladimir Safatle – Isso demonstra o déficit de legitimidade do Supremo Tribunal Federal. Veja só um caso: houve um presidente da República, o Fernando Collor, afastado por sabida inadequação ao cargo e que sofreu processo de impeachment porque a sociedade civil entendeu que ele não tinha a menor condição de ocupar aquele cargo. No entanto, ele que foi responsável por várias nomeações do STF. Então, eu me pergunto: Como alguém que é conhecido como inapto para o cargo pode ainda indicar um ministro e este permanece depois que essa inaptidão foi definida pelo poder Legislativo? Não seria o caso de anular todas as ações que ele fez? Parece-me que seria o mais coerente.
As nomeações dele se perpetuaram, o que demonstra, entre outras coisas, os problemas internos deste modo de constituição do STF. Uma das questões interessantes para se colocar na pauta de debate político nacional é exatamente esta: como se constituiu o Supremo Tribunal Federal? Uma nomeação de um presidente e um veredicto do poder Legislativo que nunca negou, que eu saiba, nenhuma nomeação de um presidente na história da República. É um tipo de processo totalmente estranho ao princípio democrático. No Brasil sequer os promotores públicos são eleito; em outros países este é um procedimento normal. Não há nenhuma justificativa para isso, portanto.
IHU On-Line – O que essa atitude demonstra sobre o funcionamento dos poderes e da política no Brasil?
Vladimir Safatle – Primeiramente, demonstra a completa impermeabilidade do Supremo Tribunal Federal à opinião pública, questão que foi levantada por alguns ministros de maneira muito clara, o que eu acho uma coisa muito aterradora. É inconcebível que em uma sociedade democrática exista um poder que diga que funciona de costas para a opinião pública. Por outro lado, isso faz com a sociedade civil se coloque questões sobre o grau de interferência de certos políticos em alguns ministros do STF. Quer dizer, a sociedade tem o direito de colocar esse tipo de questão, afinal de contas se de uma maneira ou de outra você não tem uma relação estranha entre certos ministros e certos políticos.
IHU On-Line – Em que sentido o Judiciário tem um caráter monárquico? A que fatores atribui-se essa característica?
Vladimir Safatle – Há uma distorção no interior da democracia liberal. A ideia de uma democracia liberal – aquela de se constituir o poder Judiciário desta forma – fez com que o poder judiciário acabasse tendo afeições bastante monárquicas, no sentido de ser um poder soberano, como uma instância final. Porém, não há qualquer lei que esteja acima. Pelo contrário, ele consegue fazer uma grande confusão de intervenção na alçada de outros poderes. O que é um feito realmente impressionante.
Um exemplo: o caso da extradição do Cesare Battisti [1]. Não se trata de falar se é contra ou a favor da extradição. O que é importante lembrar a confusão jurídica que foi criada pelo Poder Judiciário instaurando uma instabilidade jurídica muito grande, em que não se sabe mais definir a história. Há dois anos esse caso está correndo no Supremo Tribunal Federal, sendo que para a sociedade qualquer decisão seria melhor do que essa confusão, onde, inclusive, você fica sem saber qual é a atribuição do Executivo.
Temos um procedimento em que as soberanias do Executivo e do Legislativo estão submetidas à vontade popular. De uma maneira ou de outra, o deputado sabe que daqui quatro anos ele vai ter que prestar contas para a sociedade civil e seus eleitores. O presidente sabe também disso, mas os juízes do Supremo Tribunal Federal não sabem. Ou seja, se ele quiser pode não prestar contas; o juiz sabe que o cargo é dele até sua aposentadoria. Há, portanto, uma distorção muito estranha a respeito do funcionamento do poder; é uma questão interessante de teoria política para se pensar como é possível um poder judiciário mais republicano.
IHU On-Line – Uma reforma no Judiciário poderia mudar esse panorama? Qual é a perspectiva de que isso ocorra?
Vladimir Safatle – Nós estamos entrando em um momento em que há várias discussões sobre reformas da estrutura do funcionamento do poder brasileiro. Algumas pessoas falam sobre a reforma do judiciário que já está na pauta faz uma década. O que é estranho é que essas discussões sobre a reforma do poder brasileiro nunca são feitas tendo em vista a maior participação popular. Em que condição nós podemos aprofundar o processo de participação popular? Em que condições podemos quebrar certas situações de crise de legitimidade? Em que processo podemos desenvolver algum tipo de democracia em que a participação direta possa ser mais efetiva?
Eu diria que estas discussões, entre aquelas a respeito da reforma do poder Judiciário, pecam exatamente por isso: em nenhum momento alguém levanta a questão a partir do déficit completo de participação popular no poder jurídico. Nós não vemos sequer uma proposta, por exemplo, de eleição direta para promotores públicos, o que seria uma coisa extremamente importante, porque traria o promotor público de uma certa região para mais perto das preocupações do povo que ele deve representar e defender. Essas reformas parecem muito formalistas.
IHU On-Line – Quando o povo tenta participar e se manifestar, como é o caso dos movimentos sociais populares, ele é muitas vezes criminalizado, taxado com vários estigmas. O senhor acredita que os poderes no Brasil acabam tendo um viés muito mais conservador em função dessas atitudes dos movimentos sociais?
Vladimir Safatle – Acredito que todos aqueles que falam em Estado democrático de direito merecem a nossa desconfiança. Isto porque, quando se fala em estado democrático – quando se fala em de defesa do Estado democrático de direito –, tenta-se dizer mais ou menos isso: essas são as leis, qualquer um que vá contra as leis, tais como elas são enunciadas hoje, estará cometendo um crime e dessa maneira não há espaço dentro da política nacional.
Derrida [2] tinha uma ideia muito boa que dizia que só se faz democracia como democracia por vir. Isso significa que a democracia reconhece que o ordenamento jurídico atual da estrutura das leis atuais são passíveis de revisão, porque elas são resultado de embargos sociais e nem sempre os resultados são os melhores. Então, a democracia reconhece a possibilidade da dissociação entre direito e justiça, faz parte do desenvolvimento da nossa democracia, faz parte da capacidade que a nossa democracia teve de, paulatinamente, ampliar e universalizar direitos, conhecer que muitas vezes os movimentos sociais falam em nome da justiça contra o direito.
O caso da greve foi um caso exemplar. Por muito tempo a greve foi considerada um crime taxado, mas foi graças a esse crime que direitos sociais foram universalizados. O que acontece é que estes movimentos sociais desenvolvem a ideia de que, no interior do embate político, a noção de justiça pode se dissociar do direito tal como ele é constituído. Aqueles que não reconhecem isso não o fazem porque têm medo de um conceito central da democracia, um conceito da soberania popular. Quando um órgão ou movimento, como o MST, invade uma propriedade privada, muitas vezes se levanta a questão de eles estarem fazendo operações ilegais. Agora, perceba uma coisa interessante: na nossa constituição existe uma cláusula que submete a propriedade privada à sua função social. Então, se permite que certos movimentos fundamentem sua ação de maneira totalmente legal, afirmando que essa cláusula não está sendo cumprida, e, por isso, todo e qualquer movimento organizado pode agir em nome do cumprimento da cláusula.
Há um embate entre duas legalidades, o que é normal no interior do direito contemporâneo. Essas situações demonstram muito claramente que nós precisamos de um conceito de democracia muito menos policialesco que este atualmente.
Notas:
[1] Cesare Battisti: escritor italiano, antigo membro dos Proletários Armados pelo Comunismo – PAC, grupo armado de extrema esquerda, ativo na Itália no fim dos anos 1970. Em 1987, Battisti foi condenado pela justiça italiana à prisão perpétua, com restrição de luz solar, pela autoria direta ou indireta dos quatro homicídios atribuídos aos PAC. No entanto, Battisti se diz inocente.
[2] Jacques Derrida: filósofo francês. Fundou a associação Jan Hus em 1981, destinada a auxiliar intelectuais dissidentes da Tchecoslováquia. Chegou a ser preso em Praga, após um seminário clandestino, e foi libertado graças à intervenção de François Mitterrand. Foi diretor da École des Hautes Études en Science Sociales, de Paris.
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