KARL POPPER E A CIÊNCIA DO DIREITO
KARL POPPER E A CIÊNCIA DO DIREITO REVISITADA
Horácio Wanderlei Rodrigues
A primeira versão deste texto foi apresentada no I Seminário Regional dos Alunos do Programas de Pós-gradução em Filosofia. A versão aqui publicada foi revista e ampliada considerando as observações críticas ocorridas durante o debate público que sucedeu a sua apresentação oral. Às duas possibilidades apresentadas originariamente agora acrescento uma nova situação na qual também acredito ser possível a utilização da metodologia popperiana.
A pesquisa desenvolvida parte do diagnóstico de que a produção do conhecimento na área do Direito sofre de uma disfunção história: ela repete no campo científico a mesma estrutura da pesquisa profissional, qual seja a de buscar e/ou construir argumentos que comprovem a hipótese apresentada. Em outras palavras, ela é parecerística e, portanto, sempre comprova a hipótese proposta já que não busca em nenhum momento testá-la (refutá-la). Esse forma de fazer pesquisa, essencial nas diversas áreas profissionais do Direito – considerando o contraditório exigido pelo processo de sua aplicação –, apresenta problemas intransponíveis quando se pensa em termos acadêmicos e na necessidade da produção de avanços no campo da ciência.
Muito se escreveu na área do Direito, nas últimas décadas do século XX, criticando as propostas de construção de uma Ciência do Direito, em especial aquela contida na teoria kelseniana. Entretanto, grande parte da literatura desse período se restringiu a realizar uma crítica do positivismo jurídico – crítica essa de diversos matizes, passando pelas análises lingüísticas, epistemológicas, sociológicas e políticas, dentre outras. Mas muito pouco foi apresentado em termos de opções que permitam, de forma concreta, superar os problemas diagnosticados – e nem mesmo para comprovar se os diagnósticos são corretos.
É nesse contexto que a pesquisa apresentada se coloca, buscando encontrar um caminho que permita superar essa prática histórica que tem mantido a área de Direito a margem de grande parte dos avanços que o conhecimento e a ciência têm propiciado ao homem e à sociedade, em especial no século XX e no início deste século XXI.
Considerando essa situação e a vasta produção ocorrida nas últimas décadas nas áreas da Teoria do Conhecimento e da Epistemologia, acredito ser possível trabalhar na área de Direito com uma estratégia metodológica diversa, na qual a pesquisa não busque confirmar as hipóteses, mas seja crítica, utilizando a refutabilidade como critério de demarcação, permitindo diferenciar ciência e não ciência – a pesquisa científica da pesquisa profissional. E para a construção dessa estratégia proponho como ponto de partida o Racionalismo Crítico de Karl Popper.
Popper acreditava ser papel da Filosofia analisar a produção do conhecimento – para ele o estudo método pela Teoria do Conhecimento ou Epistemologia é o objeto central da Filosofia. Em seus vários trabalhos nessa área apresentou sua proposta, que ele mesmo resumia no seguinte esquema:
P1 à TE à EE à P2
Nele P1 é o problema inicial, TE é a teoria explicativa, hipótese ou conjectura (em algumas de suas obras aparece como TT), EE é aexperiência empírica (incluindo a observação) e P2 é novo problema resultante dos resultados da experiência (na realidade podem ser vário novos problemas, P2 , P3 , P4, e assim sucessivamente).
Proponho a utilização desse esquema como base para a construção de uma nova forma de realizar pesquisa na área do Direito – um novo modo de compreensão e explicação dos fenômenos jurídicos.
O esquema abaixo indica a possibilidade de sua utilização para a pesquisa e solução de problemas interdisciplinares nos quais existam elementos jurídicos:
P1 seria um problema específico entre os problemas existentes nos âmbito social, político e econômico;
TE seria um modelo explicativo, uma teoria explicativa, uma hipótese ou conjectura de solução para o problema (TE já teria de incluir elementos jurídicos – como por exemplo um projeto de lei, ou mesmo já estar materializado em norma jurídicas);
EE seriam as conseqüências empíricas decorrentes da aplicação das normas, se aprovadas - ou seja, seria necessário verificar as normas jurídicas como os equivalentes formais das hipóteses teóricas e as conseqüências de sua atuação e aplicação como experimentos empíricos. Ao fazer isso, se passaria da discussão puramente teórica para o teste empírico da hipótese; e
P2 (regra geral P2 , P3 , P4 , etc.) seria (ou seriam, o que normalmente ocorrerá) o(s) novo(s) problema(s) decorrente(s) do(s) resultado(s) de EE.
Esse esquema, na forma sintetizada nos parágrafos anteriores, pode ser utilizado para a pesquisa da efetividade de hipóteses jurídicas apresentadas somo solução de problemas de outras áreas, tais como a política, a sociologia, a educação, a economia e a administração. Também pode ser utilizado para a pesquisa em áreas consideradas jurídicas ou parajurídicas como a Sociologia do Direito.
O esquema popperiano também pode ser utilizado para verificar se uma determinada teoria jurídica descreve de forma adequada o sistema jurídico, a norma ou outro elemento desse sistema. Nesse caso teríamos:
P1 seria um problema específico entre os problemas existentes nos âmbito das teorias jurídicas, como a existência ou não normas jurídicas não estatais;
TE seria um modelo explicativo, uma teoria explicativa, uma hipótese ou conjectura de solução para o problema (por exemplo a teoria kelseniana ou o pluralismo jurídico);
EE seria, por exemplo, um estudo comparativo entre os vários sistemas jurídicos existente ou uma análise histórica; também poderiam ser as possíveis conseqüências empíricas decorrentes da adoção da hipótese e sua comparação com a realidade existente. Dessa forma se passaria da discussão puramente teórica para o teste empírico da hipótese; e
P2 (regra geral P2 , P3 , P4 , etc.) seria (ou seriam, o que normalmente ocorrerá) o(s) novo(s) problema(s) decorrente(s) do(s) resultado(s) de EE.
Nessa proposta as normas jurídicas e suas conseqüências são consideradas como experimentos empíricos.
Na área mais restrita do próprio sistema jurídico, o modelo popperiano pode ser utilizado para analisar as hipóteses de solução apresentadas para seus problemas internos – problemas propriamente jurídicos ou jurídicos em sentido estrito[1] –, como aqueles que dizem respeito a validade, vigência, interpretação e integração das normas, que ocorrem no momento de sua atuação e aplicação. Nessa situação novamente podemos utilizar o esquema na seguinte configuração:
P1 seria então o problema jurídico (a constitucionalidade ou não de uma norma, o sentido de um texto legal, a aplicação de uma norma estrangeira, o conflito de duas ou mais normas válidas e vigentes, etc.);
TE seria a teoria jurídica;
EE seriam os atos e fatos jurídicos decorrentes da aplicação da teoria jurídica proposta (teste empírico); e
P2 seria o problema revisto, ou o novo problema decorrente do resultado do teste empírico (como já destacado, podem ser vários novos problemas).
Assim, em uma primeira aproximação, os resultados da pesquisa apontam para a possibilidade da utilização do esquema popperiano, mesmo na Ciência do Direito em seu sentido mais estrito, se consideradas as normas jurídicas como equivalentes formais das teorias explicativas (TE), sendo as conseqüências sociais, políticas e econômicas e os atos e fatos jurídicos, os testes empíricos (EE).
É de se destacar que no Direito, e nas Ciências Humanas e Sociais em geral, a expressão experimento não tem o mesmo sentido das Ciências Exatas e da Natureza; nelas não é possível isolar variáveis e estabelecer controles efetivos; na realidade o que se faz é observar os resultados decorrentes das decisões tomadas anteriormente.
Mas há outra possibilidade que não pode ser descartada – a de se considerar as próprias normas como experimentos empíricos. Entretanto, essa possibilidade exige ainda uma análise mais apurada, sendo prematuro assumir uma posição, seja favorável ou não. É apenas uma conjectura, sem nenhum elemento de corroboração.
Quando se parte de um problema, que pode ser teórico ou prático, e se constroem hipóteses explicativas (teorias, conjecturas), se estabelecem possibilidades das quais são deduzidas as conseqüências práticas – esse processo permite refutar as hipóteses que se aceitas levariam a resultados inadequados ou indesejáveis, ou rever aquelas que já foram adotadas – que no Direito já se transformaram em leis. Através desses testes – tentativa e erro, nova tentativa, e assim sucessivamente – é possível uma aproximação da verdade – que Popper chama de verossimilitude –, permitindo a corroboração da melhor hipótese dentre as testadas.
Em última instância sabemos que será sempre necessário decidir entre diferentes possibilidades – decidir é inevitável. Mas devemos chegar a decisões através de argumentos racionais e não pela retórica ou pela força. São os argumentos que podem ajudar-nos a chegar a uma decisão pacífica.
Não podemos justificar racionalmente uma hipótese (ou teoria), mas podemos justificar racionalmente uma preferência. E como não há fontes autorizadas do conhecimento– argumentos de autoridade não são argumentos válidos, quer seja com base em autores, quer seja com base de decisões de cortes superiores – os argumentos apresentados devem ser passíveis de análise crítica, racional.
A atitude crítica exigida nesse processo caracteriza-se pela disposição de modificar a hipótese, testá-la e mesmo refutá-la. O senso comum até pode ser o ponto de partida, mas o instrumento do progresso é a crítica. O impacto das teorias – e das leis que as materializam – sobre nossas vidas pode ser devastador – por isso é necessário testá-las através da crítica. Ser racional é possuir uma atitude crítica face aos problemas – a atitude crítica é a atitude racional – uma atitude consciente e crítica de eliminação dos erros.
Um método de pesquisa, na área do Direito, que inicie com a análise dos problemas que deram origem à construção de teorias, à adoção de algumas em detrimento de outras, às opções legislativas e às interpretações dos tribunais, e considere as conseqüências sociais, políticas e econômicas e os atos e fatos jurídicos como os testes empíricos, utilizando-os para revisar ou mesmo refutar aquelas opções que não conseguiram solucionar o problema em níveis aceitáveis, materializa essa atitude racional e crítica e faz o conhecimento avançar em direção a uma melhor administração da justiça.
REFERÊNCIAS
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 197-a.
______. Conjecturas e refutações. Brasília: UnB, 197-b.
______. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP; 1975.
______. O racionalismo crítico na política. Brasília: UnB, 1981.
______. O conhecimento e o problema corpo mente. Lisboa: Edições 70, 2002.
[1] Tenho consciência de que nenhum problema jurídico é estritamente jurídico. Como já observado anteriormente, afirmei que uma Ciência do Direito só pode ser uma ciência interdisciplinar. Essas expressões foram utilizadas aqui no sentido de deixar caracterizado que nesta situação há a proposta de aplicação da metodologia popperiana para um problema que é visto muitas vezes pela doutrina como puramente jurídico, o que não é verdadeiro. Utilizando a terminologia popperiana, a solução dada a esse problema vai gerar conseqüências efetivas nos mundos 1 e 2, embora o Direito esteja situado no mundo 3.
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