Goleada legal
"Agora, pelo que ouvi, está se preparando um grande movimento contra a publicação iniciado pelos puritanos, imperialistas ingleses, republicanos irlandeses, católicos – que confederação! Meu Deus, eu deveria receber o Nobel da Paz!"
James Joyce, segundo ele mesmo um "coletor de injustiças", a respeito de seu controvertido Ulysses
James Joyce, segundo ele mesmo um "coletor de injustiças", a respeito de seu controvertido Ulysses
Em seu artigo de hoje no NY Times o colunista David Brooks conta a história de um professor alemão, refugiado do nazismo, que começou a ensinar em Harvard como sempre havia ensinado na Alemanha. Ele usava alusões literárias para falar sobre ética, comunidade, misticismo e emoção, mas seus novos alunos americanos não pareciam entender. Depois de alguns anos de cátedra, mudou suas metáforas para a área de esportes e, subitamente, tudo pareceu se encaixar.
Para mim, no entanto, que não sou nem um pouco ligada em esportes, a analogia literária (e, em certos casos, coincidência ou não, também a psicanalítica) cai muito bem em qualquer campo estranho onde eu tenha dificuldade de me encontrar, e foi assim mesmo, com grata surpresa, que mergulhei meio sem querer no novo livro de Alexandre Morais da Rosa, "Jurisdição do Real x Controle Penal: Direito & Psicanálise, via Literatura", um livro que, sinceramente, sem meias palavras: eu jamais teria lido se não o tivesse editado e convertido para o formato Kindle.
Tenho estado ao longo da vida, isso lá é bem verdade, envolvida com pequenas mas [desnecessariamente] prolongadas causas judiciais (não, gente, não se preocupem; não sou criminosa, nem traficante, nem mafiosa: apenas nasci no estrangeiro de pais brasileiros, fui comerciante num país em crise e me tornei, bem mais tarde, responsável — legal e materialmente — por minha mãe doente, há alguns anos declarada incapaz) que me levaram, em ocasiões diversas, a lamentar a subjacente injustiça do nosso sistema legal, um mastodonte intrincado, burocrático, lerdo e beirando a extinção frente aos múltiplos desafios da modernidade.
A não ser, é claro, se o juiz em questão for Alexandre Morais da Rosa, um sujeito ousado a ponto de transcender a estranheza causada nos meios jurídicos pela prometida e anunciada eliminação das gordas pastas de papel, e mais, de adotar — antes que outros nele se arrisquem, sequer pensem em nele se aventurar — o meio eletrônico para a propagação de sua obra teórica... ops, peraí: teórica? Mas do que é que eu estou falando?
O (lá vou eu de novo) surpreendente texto de Alexandre, ao infiltrar sensibilidade literária no árido cotidiano dos tribunais, se insere sem dores políticas, sutilezas fingidas ou falsos arrependimentos, na arena vibrantemente viva da contemporaneidade, com seus padrões mutantes que não se sustentam, na maioria das vezes, por mais do que um breve modismo de verão. E são, no entanto, marcantes e determinantes para a precisão de qualquer sentença.
Ler (e publicar) o texto de Alexandre, confesso, até certo ponto me causou receio: como é que um juiz nomeado e professor de direito tem a coragem e, sim, porque não usar o termo, a chutzpah, a temeridade de se posicionar com tanta energia contra o status quo? Peraí, parei pra pensar, será que isso tudo ainda vai me implicar em algum litígio? Em guerra aberta contra a classe dos juízes que se considera, como o próprio Alexandre aponta, um clube elitista de distantes seres togados, ops, tocados, pela graça incontestável da "sabedoria divina"?
Isso tudo aconteceu, claro, antes que eu percebesse, pelas múltiplas resenhas que têm pipocado no mercado, que é esta justamente a marca registrada — e amplamente apreciada — do Juiz Alexandre Morais da Rosa, meu cliente, meu amigo e agora parceiro no novo Selo Delibera, da KindleBookBr, dedicado a textos jurídicos: respeito comigo aí daqui em diante, viu, gente?
Mas o melhor, no caso, não são simplesmente as histórias relatadas, e sim a forma refinada de relatá-las, contaminada de bom gosto e bem-vinda erudição, ufa, e nem por isso deixando de lado o [repertório] mais popular: numa boa lufada de novidade e criatividade onde menos se esperava, eu, pelo menos. Acabei fisgada. E vindicada, é claro, bem menos estrangeira e desolada no enredo kafkiano e muitas vezes distorcido da emérita justiça brasileira.
Para Alexandre Morais da Rosa, desejo muitos e muito lidos livros [digitais] publicados. E para as vetustas cortes brasileiras, o ar fresco e descontaminado que as muitas propostas inéditas deste ousado juiz catarinense prometem, para nosso consolo e delícia de vítimas leigas — e, em grande parte das vezes, involuntárias — da usual morosidade judicial. Valeu por isso, Alexandre.
***
E pra quem se espantou com a linguagem mais séria e rebuscada do que costumo usar em crônica, explico, é mais do que a influência de estilo do Alexandre: é pra que aqueles, que ostentam orgulhosamente a prática cultivada do parecer jurídico, entendam, sem problemas nem dúvida nenhuma, que se trata apenas do ponto de vista de uma cidadã comum, inocente até prova em contrário, e que se estranha cotidianamente com os meandros da (in)justiça.
Para os que são como eu, recomendo com gosto este livro.
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