Fazer-se olhar
O que aconteceu à deflação da palavra (já ninguém dá a sua palavra) no nosso tempo? Proponho: a inflação do olhar. Vivemos numa "civilização do olhar" (Gérard Wajcman)
Tudo devém objecto de "olhar" desde o mais íntimo e privado até ao mais público: a videovigilância, a imagiologia cerebral, a tele-realidade...
Inumeráveis dispositivos que visam tornar-nos completamente visíveis e transparentes. E cada um de nós participa activamente, festivamente, nessa desocultação da face e da alma.
A ciência e a técnica fabricam novos deuses omnividentes (após a "morte de Deus"), um novo Argos dotado de milhões de olhos que nunca dormem. Outrora, apenas os criminosos eram objecto de vigilância, hoje somos todos.
O "olhar global" infiltra cada pedacinho da nossa existência, do nascimento à morte. Novas ferramentas são criadas todos os dias para que cada um saiba o que todos os outros andam a fazer: facebook, twitter, buzz, etc., etc.etc. Tudo visível, tudo registável.
Se ver é uma arma de poder, então cada um de nós participa neste novo poder do "olho absoluto". Uma nova ideologia do "hipervisível".
Como resistir a tal uma omnivisão se cada um de nós é cada vez mais sujeito, como diria Étienne de La Boétie, a uma "servidão voluntária"?
Tudo devém objecto de "olhar" desde o mais íntimo e privado até ao mais público: a videovigilância, a imagiologia cerebral, a tele-realidade...
Inumeráveis dispositivos que visam tornar-nos completamente visíveis e transparentes. E cada um de nós participa activamente, festivamente, nessa desocultação da face e da alma.
A ciência e a técnica fabricam novos deuses omnividentes (após a "morte de Deus"), um novo Argos dotado de milhões de olhos que nunca dormem. Outrora, apenas os criminosos eram objecto de vigilância, hoje somos todos.
O "olhar global" infiltra cada pedacinho da nossa existência, do nascimento à morte. Novas ferramentas são criadas todos os dias para que cada um saiba o que todos os outros andam a fazer: facebook, twitter, buzz, etc., etc.etc. Tudo visível, tudo registável.
Se ver é uma arma de poder, então cada um de nós participa neste novo poder do "olho absoluto". Uma nova ideologia do "hipervisível".
Como resistir a tal uma omnivisão se cada um de nós é cada vez mais sujeito, como diria Étienne de La Boétie, a uma "servidão voluntária"?
11.2.10
Quem é Michel Onfray?
Um filósofo contemporâneo. Vivo. Jovem. Tem apenas 51 anos, salvo erro. É talvez um dos filósofos mais lidos de França, um país onde ainda se lê...filosofia. Há mesmo revistas de filosofia que se vendem em quiosques. Procurei por todo o lado, em Portugal, mais concretamente em Lisboa, em busca de uma delas (Philosophie Magazine) e só encontrei Playboy, Maxmen e outras que tais em grandes quantidades. Não está mal... e tem, aliás, algo a ver com este filósofo jovem, hedonista, libertário e defensor de um "erotismo solar".
Confesso que esta personagem me é de alguma forma simpática. Habituado a um país de "fado" e "fadistas" (de fatalistas de toda a laia), cantando a eterna ladainha do sofrimento, do ressentimento, da vitimização - tudo nos serve para chorar, lamentar e descrer de nós -, do "sacrifício" (agora erigido, por alguns políticos, em nova religião nacional), é bom saber que há alguém que se propõe afirmar a vida (à maneira de Nietzsche), "desteologizar" e "descristianizar" a existência (no que ela tem de paixão pelo "valor" do sofrimento) e de empreender uma crítica a toda a "razão dietética"...
Além disso, para o bem ou para o mal, ele teve de "esculpir-se" a si próprio, não herdando (quase) nada para além de uma história que parecia ter todos os condimentos para não não dar certo (tal a série de abandonos sucessivos: a avó que abandona a mãe, a mãe que o abandona a ele...num orfanato dirigido por padres salesianos, onde viveu, ou "morreu", segundo conta, quatro anos de Inferno)...
Apesar disso - quem o diz é o próprio - a filosofia salvou-o, permitindo-lhe viver. A filosofia que recupera aqui o sua vertente prática "terapêutica", como meio para viver...melhor, antes de se transformar numa especulação demasiadamente abstracta.
É por isso que Michel Onfray se propõe recuperar muitos dos filósofos "abandonados" pela história oficial da filosofia, propondo uma "contra-filosofia" (Cf. La Puissance d'exister, Grasset, 2006). Uma filosofia do avesso, por assim dizer. Levantando do chão, como diria Saramago, todos aqueles que a tradição filosófica (de Platão a Heidegger) deixou cair.
Para isso, criou sozinho uma Universidade Popular: livre, aberta a todos, sem burocracias (ai de nós, atolados cada vez mais em normas, legislações, avaliações...), sem elitismos balofos, movida tão pelo pelo "gosto" (também no sentido culinário do termo, ele que escreveu um livro que se chama: "A razão gulosa - filosofia do gosto"); enfim, um lugar onde reina o prazer e a descontracção. É isso possível? Michel Onfray mostrou, ao longo de mais de dez anos, que (pelo menos em França) é ainda possível.
Por fim, dá gosto ler um autor que escreve muito (mais de trinta livros em poucos anos), mas sempre com uma agilidade, uma frescura assinaláveis. Dá vontade de ler, de voltar a ler.
Pois bem, este filósofo propôs-se recentemente, no curso da sua Universidade Popular, tomar Freud como o seu inimigo e desmontar as suas ideias. Confesso que fiquei algo desiludido ao ler alguns dos argumentos que ele desfiou na seu debate com o psicanalista Jacques-Alain Miller: dizer que Freud era "cocainómano", por exemplo, não tem novidade e é irrelevante; além disso, Freud não esperou que viessem os críticos denunciar os seus "erros", pois ele foi o primeiro a reconhecer grande parte deles.
Já sou mais sensível à denúncia de um certo pessimismo (alicerçado, por exemplo, na "Pulsão de morte") que parece emanar da obra de Freud. Como se a cultura do "sofrimento" (o "cristianismo" do sofrimento) continuasse a laborar, por outros meios, na teoria e na prática freudianas. Desse ponto de vista, ante o projecto de "descristianização" da vida e da existência, não deixa de haver aqui uma certa coerência.
Mas tudo isto em nome de quê?
Não pude deixar de estremecer ao ler a seguinte frase no seu livro "La puissance d'exister": "(...) a conclusão impõe-se: nós somos o nosso cérebro" (p. 239). Mais arrepiado fiquei quando percebi que ele era, finalmente, um dos adeptos do Livro Negro da Psicanálise (Éditions les Arènes), apesar de não estar de acordo com muitas coisas que aí se diziam.
Será este o desfecho de uma filosofia que se pretende libertária, hedonista, descristianizada: a rasura da "singularidade" em nome dos novos imperativos generalistas, uniformizadores? A ser assim, como dizia Clotilde Leguil numa "Carta aberta a Michel Onfray" (Le Nouvel Âne, nº 10, pp. 36-39): "a psicanálise - essa mesma que Freud inventou - não se tornará jamais a regra, visto que, por natureza, ela é feita para convidar cada um a não renunciar a ser uma excepção
Confesso que esta personagem me é de alguma forma simpática. Habituado a um país de "fado" e "fadistas" (de fatalistas de toda a laia), cantando a eterna ladainha do sofrimento, do ressentimento, da vitimização - tudo nos serve para chorar, lamentar e descrer de nós -, do "sacrifício" (agora erigido, por alguns políticos, em nova religião nacional), é bom saber que há alguém que se propõe afirmar a vida (à maneira de Nietzsche), "desteologizar" e "descristianizar" a existência (no que ela tem de paixão pelo "valor" do sofrimento) e de empreender uma crítica a toda a "razão dietética"...
Além disso, para o bem ou para o mal, ele teve de "esculpir-se" a si próprio, não herdando (quase) nada para além de uma história que parecia ter todos os condimentos para não não dar certo (tal a série de abandonos sucessivos: a avó que abandona a mãe, a mãe que o abandona a ele...num orfanato dirigido por padres salesianos, onde viveu, ou "morreu", segundo conta, quatro anos de Inferno)...
Apesar disso - quem o diz é o próprio - a filosofia salvou-o, permitindo-lhe viver. A filosofia que recupera aqui o sua vertente prática "terapêutica", como meio para viver...melhor, antes de se transformar numa especulação demasiadamente abstracta.
É por isso que Michel Onfray se propõe recuperar muitos dos filósofos "abandonados" pela história oficial da filosofia, propondo uma "contra-filosofia" (Cf. La Puissance d'exister, Grasset, 2006). Uma filosofia do avesso, por assim dizer. Levantando do chão, como diria Saramago, todos aqueles que a tradição filosófica (de Platão a Heidegger) deixou cair.
Para isso, criou sozinho uma Universidade Popular: livre, aberta a todos, sem burocracias (ai de nós, atolados cada vez mais em normas, legislações, avaliações...), sem elitismos balofos, movida tão pelo pelo "gosto" (também no sentido culinário do termo, ele que escreveu um livro que se chama: "A razão gulosa - filosofia do gosto"); enfim, um lugar onde reina o prazer e a descontracção. É isso possível? Michel Onfray mostrou, ao longo de mais de dez anos, que (pelo menos em França) é ainda possível.
Por fim, dá gosto ler um autor que escreve muito (mais de trinta livros em poucos anos), mas sempre com uma agilidade, uma frescura assinaláveis. Dá vontade de ler, de voltar a ler.
Pois bem, este filósofo propôs-se recentemente, no curso da sua Universidade Popular, tomar Freud como o seu inimigo e desmontar as suas ideias. Confesso que fiquei algo desiludido ao ler alguns dos argumentos que ele desfiou na seu debate com o psicanalista Jacques-Alain Miller: dizer que Freud era "cocainómano", por exemplo, não tem novidade e é irrelevante; além disso, Freud não esperou que viessem os críticos denunciar os seus "erros", pois ele foi o primeiro a reconhecer grande parte deles.
Já sou mais sensível à denúncia de um certo pessimismo (alicerçado, por exemplo, na "Pulsão de morte") que parece emanar da obra de Freud. Como se a cultura do "sofrimento" (o "cristianismo" do sofrimento) continuasse a laborar, por outros meios, na teoria e na prática freudianas. Desse ponto de vista, ante o projecto de "descristianização" da vida e da existência, não deixa de haver aqui uma certa coerência.
Mas tudo isto em nome de quê?
Não pude deixar de estremecer ao ler a seguinte frase no seu livro "La puissance d'exister": "(...) a conclusão impõe-se: nós somos o nosso cérebro" (p. 239). Mais arrepiado fiquei quando percebi que ele era, finalmente, um dos adeptos do Livro Negro da Psicanálise (Éditions les Arènes), apesar de não estar de acordo com muitas coisas que aí se diziam.
Será este o desfecho de uma filosofia que se pretende libertária, hedonista, descristianizada: a rasura da "singularidade" em nome dos novos imperativos generalistas, uniformizadores? A ser assim, como dizia Clotilde Leguil numa "Carta aberta a Michel Onfray" (Le Nouvel Âne, nº 10, pp. 36-39): "a psicanálise - essa mesma que Freud inventou - não se tornará jamais a regra, visto que, por natureza, ela é feita para convidar cada um a não renunciar a ser uma excepção
Nenhum comentário:
Postar um comentário