No fio da conversa
São Paulo, década de 50
JACÓ GUINSBURG
"QUANDO PENSO na maneira como conheci Anatol Rosenfeld (1912-1973), sempre me vem à mente um leve descolamento entre a figura consagrada do sapiente crítico e a imagem que se fixou em mim quando tive o seu original pela primeira vez à minha frente, desenhada por uma linha de lábios finos por entre a qual se esgueirava um sorriso entre o irônico e o cético.
É talvez nesse traço que se ancorou a minha lembrança. Pelo menos é a ele que retorno todas as vezes que tento evocar aquele semblante, desde que o vislumbrei num errar de meus olhos por entre um pequeno grupo de pessoas que assistia, lá pelos idos de 1950, a uma palestra sobre o futuro da língua iídiche que eu proferia.
Embora esse futuro continuasse tão duvidoso quanto agora, minha confiança na possibilidade de seu miraculoso renascimento tropeçou com aquele sorriso vigiado por um par de óculos, lastrado por uma delgada estria de pelos como bigode que encimava uma gravata e um paletó jaquetão. Seu portador, muito atento, fazia anotações e, vez por outra, descontraía o rosto.
Ao fim de minha exposição, seguiu-se acesa discussão em que cada um dos ouvintes tentou salvar o que pôde do rico acervo da martirizada língua e na qual, ajeitando ocasionalmente o vinco da calça, sem perder a contenção, aquela curiosa criatura interveio com discrição e cortesia, mas com grande força de argumentação, a cuja cerrada lógica não pude responder em tudo a contento.
Mas nem por isso deixei de levantar a luva, já suspeitando tratar-se de um "ieque", um judeu alemão, que, obviamente, perdera as "bárbaras" inflexões do iídiche para entregar-se às purezas linguísticas do idioma goethiano. Ele, por seu turno, não se deu por vencido pelos meus arroubos e, à saída, procurou-me: era Anatol Rosenfeld, jornalista a serviço da "Crônica Israelita".
E foi assim que, à porta daquele edifício, na praça da República, começamos a conversar. O diálogo engatou, e prosseguimos em troca verbal pela Barão de Itapetininga até o viaduto do Chá.
Nesse curto trajeto, pudemos costurar alguns fios de interesses comuns que, por si sós, exigiam largo desenvolvimento. Continuamos, pois, a desfiá-los em minha casa alguns dias mais tarde, após um jantar, mais convincente pelo menu verbal do que pelos pratos oferecidos.
E esse papo foi se estendendo ao longo dos anos, às segundas-feiras, quando jantava comigo e com Gita, infalivelmente -tão infalivelmente quanto a caixinha de bombons ou de qualquer outra oferenda de bom tom que jamais deixava de trazer.
O fruto mais sazonado desses ágapes foi o curso de filosofia que o nosso conviva ministrou em minha casa a um grupo de amigos, cuja paixão pelos sumos filosóficos nem sempre vencia o cansaço do dia decorrido de trabalho. Em suas preleções, o nosso mestre procurou, durante cerca de 15 anos, nos ensinar a pensar lógica, metafísica, epistemológica e criticamente através da história das ideias. Mas Hegel, com a dialética da negação da negação, desfechou o golpe de morte na tertúlia semanal pós-kantiana.
O estruturalismo, Lacan, a psicanálise e a Escola de Frankfurt lançaram primeiro lenha e, depois, puro petróleo "saudita" na fogueira da fritura ética e política dos ideologemas. Nem por isso, porém, nosso jantar das segundas ficou privado do preclaro convidado e de suas instigantes opiniões sobre a vida intelectual e política brasileira e internacional.
E esse bate-papo se desenrolava ainda dois dias após a operação a que Anatol se submeteu, quando comentou a obra de Osman Lins, na visita que lhe fiz. Assim, não foi com a sensação de fim de conversa que o deixei em seu quarto no hospital Sírio-Libanês. Na interrupção que realizamos, então, havia antes uma reticência de quem iria retomar o tema mais adiante do que um ponto final que se deu dois dias depois, quando houve uma fatal intromissão -e encontrei Anatol emudecido para sempre."
Fonte: FOLHA DE S.PAULO - Domingo, 1º de maio de 2011 ilustríssima
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