Deleuze: ou do niilismo iluminista
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Na noite de um sábado, precisamente no dia quatro de novembro de 1995 o mundo assistia, impactado, ao assassinato do primeiro ministro de Israel, Itzhak Rabin. Nessa mesma noite em Paris suicidou-se o filósofo Gilles Deleuze. Década e meia antes, Nicos Poulantzas fazia o mesmo. Ambos se jogaram de seus apartamentos. Deleuze morava no décimo terceiro arrondissement, não muito distante onde eu residia.
A televisão deu destaque ao líder político e prêmio Nobel, Itzhak Rabin, reservando menos de dez segundos ao grande mestre, professor revolucionário, autor de quase vinte livros de grande originalidade e densidade filosófica.
Deleuze, ao decidir por fim a sua vida aos setenta anos, afirmava um último ato de consciência e de liberdade. Consciência e liberdade, dois valores que o moviam em seu pensamento/ação. Consciente da gravidade de seus problemas pulmonares, dependente de remédios e aparelhos que o impediam de ler e produzir, optou por nos deixar voluntariamente. Com sua morte ficamos órfãos de mais um iluminista, num momento de escuridão que é a barbárie pós-moderna e neoliberal. Momento de aparente vitória arrasadora do pensamento pragmático, de todas as cores.
Em l984 falecia o gênio Michel Foucault, vítima de complicações devidas ao HIV, segundo alguns. Em l994 morria Félix Guattari, surpreendido por um ataque cardíaco. Em l995 vai-se o último dos filósofos marginais de nosso tempo, Gilles Deleuze. Com a perda desse trio a cultura francesa e universal fica em luto, e perde poderosos generais em defesa da razão contra todas as formas de irracionalismo. Tive a honra de seguir seminários desses mestres no início da década de oitenta, durante o doutoramento na Université Catholique de Louvain.
Esse mesmo trio foi acusado pelo grande filósofo alemão Habermas de integrar um exército dos neoconservadores[1], herdeiros de Nietzsche. No Brasil o pensador liberal conservador José Guilherme Merchior (também falecido prematuramente) considerava-os niilistas. O alvo principal de Merchior era principalmente Michel Foucault, representante maior do que o embaixador brasileiro considerava como “ niilismo de cátedra”.[2] Trata-se de grave engano e injustiça a ser denunciada.
O raciocínio por bipolarizações e/ou por dicotomizações pode facilitar a retórica discursiva, embora prejudique em última instância o debate e o esclarecimento que se espera do mesmo. A dialogia discursiva parece capenga se tomarmos a defesa da modernidade como postura racionalista e os seus críticos, como irracionalistas, pós-modernos. Nada mais falso. Vejamos.
Nietzsche, como todo universal, admite muitas leituras. Há, como se sabe desde os estudos de Rorty, no mínimo três hermenêuticas[3] do autor de Assim falou Zaratustra. Uma da direita conservadora, outra da esquerda cultural, e uma leitura pragmática do centro.
Nietzsche empreendeu a radical crítica da Modernidade no que ela apresentava de cínica ingenuidade, virgem no que se refere ao estupro que a técnica e a razão de mercado lhe impuseram na história. O niilismo do autor de Gaia ciência é um libelo contra as crenças no progresso linear do homem na história. Também está em Nietzsche uma bela gargalhada das promessas dos “últimos homens”.
A direita nietzschiana faz do niilismo uma filosofia terminal. O homem é a máscara, o eterno retorno a sua verdadeira face. Apolo perde sempre a guerra para Dionísio. Essa direita, enriquecida com certa leitura de Freud, condena o homem ao instintivismo biológico. Em última instância mudar estruturas não é preciso, possível ou desejável. Mudar é sempre um projeto no qual o recalcado volta e se vinga, contra os messias do melhor mundo, seja ele o intelectual/partido, a religião, a ciência. Não haveria saída. O homem é uma besta incorrigível, no máximo podemos tentar a tarefa quase impossível de melhoria qualitativa dos padrões de autoconsciência, com investimento na desconfiança contra todos os metarrelatos.
Outra é a leitura da esquerda nietzschiana. Ela se reapropria do niilismo para negar a razão histórica, em todas is seus experimentos. Não há umtelos a perseguir. O homem é processo, que inclui o retrocesso. Não há porque se acreditar no necessário progresso da razão e da ciência conforme o sonho hegeliano. O homem moderno sucumbe à arqueologia dos saberes e à genealogia dos poderes. A opção de resistências menos heroicas e menos conduzidas por uma vanguarda iluminada. As mudanças pressuporiam atitudes outras nas esferas de contra saber e contra poder, naquilo que Foucault chamaria de microfísica, lugar das “revoluções moleculares”, na expressão de Guattari já criada por Gramsci. Mudar sim, fora das grandes estruturas tradicionais apelativas à mudança (Ideologia, Sindicato, Partido, no operacional, Estado,, Democracia, Direito, na dimensão normativa). Daí uma certa aproximação, forçada, em última instância, do trio francês à teses mais gerais da perspectiva pós-moderna esboçada por Lyotard com sua célebre conferência sobre os rumos universitários.
A concepção nietzschiana pragmática de Richard Rorty nega o “otimismo teórico” das Luzes e opta por uma postura antimetafísica contra a vontade de potência e das guerras cruéis do Nietzsche da direita. É um Nietzsche que não se rende à tentação teológica e aos perigos do Universal, seja ele apresentado pela vontade de um partido político, uma Central Sindical, ou mesmo por coletivos microssociais que, paradoxalmente, ao lutar pela legalização de novos Direitos, de homossexuais, feministas, portadores do HUV, por vezes perdem a referência mais ampla dos trabalhadores que também são, acabando por criar mais um empecilho à própria universalização do cidadão (quando da burocratização dos mesmos). No Brasil, num momento onde se luta por um Direito penal mínimo, por exemplo, descriminalizando os “crimes de honra”, remetendo-os para o âmbito da responsabilidade civil, aquelas minorias pugnam por novos “tipos penais” e contribuem para um Direito Penal Máximo.
Sem optar este dois Nietzsche, o da esquerda e o pragmático, temos por certo que a negação da Modernidade levada a cabo por Deleuze, Foucalt e Guattari é a negação da modernização industrial, essa máquina que nos robotiza e controla. Assim, se o iluminismo precede a Ilustração do século XVIII, da mesma maneira não se limita à exclusividade dos que se arvoram como únicos e legítimos porta-vozes, como Habermas. O trio sempre esteve à frente das lutas mais revolucionárias na França, em defesa das minorias, presos, prostitutas, marginais, velhos, como na vanguarda das bandeiras ecológicas do movimento verde.
Colocar aqueles nietzschianos iluministas nos termos de filhotes da filosofia anti-humanista ou é engano ou exagero conceitual, não se sustentando. Por outro lado, afirmar que toda a saída contra o irracionalismo encontra-se colocado, de forma pronta e acabada no projeto moderno é forçar as coisas. O próprio Habermas considera a modernidade um projeto inacabado. No mesmo sentido, substituir as grandes narrativas de apelo (Estado, Direito, Partido, sindicato, Parlamento) por políticas localizadas, não institucionais, parece também redundar na letargia pós-moderna do culto hedonista, um passo para o imobilismo. A transformação social é luta por atualização e negação dos ideais do século XVIII, da Ilustração, deles retirando-lhes o positivo e o negativo no mesmo conceito. Por outro lado, continuar a tomar Nietzsche como um niilista reacionário burguês significa abrir mão de um peso pesado de crítica à Modernidade, crítico com as armas da razão, portanto, um iluminista tardio (?) da Ilustração.
O mesmo argumento aproveita a Gilles Deleuze. Seu primeiro livro, um clássico, é de 1962: Nietzsche e a filosofia.[4] Nele encontramos as bases para uma hermenêutica de um Nietzsche atualizado para o século XXI. Seus últimos escritos solitários versavam sobre uma obra que gostaria muito de concluir, e teria o título A grandeza de Marx.
Deleuze, um contemporâneo, era consciente de que os clássicos nunca morrem , pois têm sempre algo a nos ensinar. Através de Deleuze compreendemos melhor o nosso tempo e a vitória de goleada da barbárie, embora saibamos que as ideias filosóficas do fim do mundo, da biopolítica da ditadura invisível sobre tudo e sobre todos aos apologetas da hecatombe ecológica, felizmente vão sendo dissolvidas à luz de crescentes polos e experiências de resistência.
Sem esse verdadeiro niilista iluminista deixamos de nos deleitar com suas aulas peripatéticas, amadas por centenas de alunos, ávidos em voar nas asas desse Ícaro das ideias, ciente do imenso trabalho que é o pensar o contemporâneo contra as tentações da auto referenciação conhecida nos ensinamentos de Claude Lévy-Strauss no seu clássico Antropologia Estrutural quando se referia às três fontes de resistência ao desenvolvimento, impedindo visualizar melhor as “descontinuidades culturais”, em específico no campo dos pesquisadores. São elas, a vontade de unidade, o respeito pela natureza e a negação da história.
[1] Esta classificação aparece em Habermas, Jurgen. Modernidade. Um projeto inacabado (1980). In: ARANTES, Otília B. Fiori e ARANTES, Paulo Eduardo. Um ponto cego no projeto moderno de Jurgen Habermas. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Brasiliense, 1992.O aprofundamento da crítica a Foucault aparece em HABERMAS, Jurgen. O discurso filosófico da Modernidade. Trad. de Ana Maria Bernardo e outros. Lisboa: Publicações Dom Quixote,1990.
[2] Cf. MERCHIOR, José Guilherme. Foucault. Ou do niilismo de cátedra.
[3] Consultar RORTY, Richard. Un philosophe pragmatique. In Magazine Littéraire. n. 298, Paris, avril 1992.p.28.
[4]Cf. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: Puf, 1962.
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