PROMOTORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL DE BELÉM
PROMOTOR DE JUSTIÇA VINCULADO À 4ª VARA DO JECRIM
Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito da 4ª Vara do Juizado Especial Criminal da Comarca de Belém, PA,
TCO nº 001.2009.2.082918-0
Autor do fato: ANA PAULA DA SILVA TEIXEIRA DE BRITO e outros
Vítima: DIRLENE CRUZ DA SILVA e outra
Capitulação penal provisória: art. 129, do CPb
O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, através da Promotora de Justiça, a final assinada, no uso de suas constitucionais atribuições, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, em atenção ao r. despacho de fl. 47, manifestar-se acerca do expediente de lavra do Excelentíssimo Senhor Delegado de Polícia Civil, Sinélio Ferreira de Menezes Filho (fls. 39/44), nos termos abaixo aduzidos:
Em fundamentado expediente, a autoridade policial recusou-se a realizar as diligências requisitadas pelo Ministério Público, em audiência (fls. 35/36), por entender que “o retorno dos autos à sede policial para oitiva de testemunhas é incabível na espécie procedimental do Termo Circunstanciado de Ocorrência” (sic. – fl. 43).
Respeitando o entendimento divergente da autoridade policial e, desde já, agradecendo os elogios direcionados a essa Promotora de Justiça, no final da peça em questão, o Ministério Público irá insistir nas diligências requeridas, pelas seguintes razões:
A Lei nº 9.099/95 insere-se no que se pode chamar de movimento neoliberal no processo penal. Trata-se de uma opção por um modelo eficientista de processo, em que a celeridade, a rapidez, a oralidade, a corrida pela obtenção de resultados, não raro, possuem mais importância do que a necessária preocupação com as garantias constitucionais do imputado. Seria uma espécie de fast justice; como se tem o fast food, o fast shop e coisas do gênero[1].
Essa quase histeria coletiva da rapidez e eficiência é própria da sociedade da pressa, dos resultados a qualquer custo. Esperar, para quê? Não há tempo.
Hoje as pessoas não namoram, noivam e casam. Elas, simplesmente, “ficam”. Não há compromisso. O gozo tem de ser imediato. Para que aguardar o salário no final do mês, se posso satisfazer meu desejo imediato com o cartão de crédito? Hoje não somos mais nomes, somos números. Valemos mais pela nossa capacidade de produzir (e de consumir), do que por nós mesmos. A internet nos possibilita imagens do mundo inteiro, em tempo real. Podemos nos comunicar, pela tela, com pessoas do outro lado do planeta, vendo seus rostos e ouvindo suas vozes. O tempo urge. Não há mais cartas pelo correio. O Papai Noel tem que ser virtual...[2]
E o Direito, por evidente, não está alheio a isso tudo. O imediatismo e a eficiência, que nutrem a sociedade do terceiro milênio atingiram profundamente o mundo das leis e da justiça.
Tutelas antecipadas, medidas cautelares, provimentos de urgência, prisões provisórias e outros institutos similares são exemplos do quanto o tempo tem preocupado os juristas. A Justiça, para ser justa, há de ser rápida.
Há, sem dúvida, um fundo de verdade nessa afirmação. Justiça que tarda muito, falha sim. É inadmissível o que ocorre no Brasil em termos de (de)mora jurisdicional. Processos que se arrastam 10, 15, 20 anos, de um lado para o outro, sem definição. Não há justificativas para isso.
Por outro lado – e aqui vale insistir – Justiça muito rápida também falha! Principalmente, a justiça penal. Pressa demasiada é sinônimo de perda de garantias. A rapidez pode levar, não raro, a acusações infundadas e condenações injustas.
Como ensina AURY LOPES JÚNIOR, há de se ter o tempo certo no processo, como quando se anda de bicicleta. Se o condutor for lento demais, corre o risco de tombar. Mas, se correr muito, seguramente cairá adiante. O equilíbrio é, sempre, a melhor saída[3].
O Juizado Especial Criminal é a bicicleta que, pela rapidez, corre o risco de virar, se dele não se fizer bom uso. Em outras palavras, a Lei nº 9.099/95 tem salvação e pode ser um belo mecanismo de realização da justiça, desde que compreendida à luz da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Isto é, desde que entendido que celeridade, eficiência e resultados imediatos apenas poderão ser legítimos se respeitadas e asseguradas as garantias individuais do imputado, como ampla defesa, contraditório, presunção de inocência, etc.
Caso contrário, os Juizados Especiais Criminais se converterão em uma grande falácia[4]. Será a justiça mercadológica, em que o que interessa é negociar (seja com composição civil, ou com transações penais), sem atentar que, do outro lado da mesa, está um sujeito de direitos, a quem se está imputando um crime!
Por isso, não é incomum se verificar, na realidade do foro, transações penais sendo realizadas sem o mínimo respaldo probatório e, até mesmo, em casos em que sequer típica a conduta é.
No caso vertente, o que o Ministério Público fez foi, exatamente, adotar as cautelas necessárias para a bicicleta não tombar.
Ao pedir, às fls. 35/36, o retorno dos autos à delegacia, para diligências, o Ministério Público pretendeu evitar uma imposição de transação penal injustificada ou, até mesmo, uma denúncia infundada.
As partes envolvidas no conflito (de um lado, os autores ANA PAULA, MÁRCIA e EUDES e, de outro, as vítimas DIRLENE e DAIZE) sustentaram, em audiência, versões totalmente conflitantes. As vítimas alegam que foram agredidas pelos três autores do fato, que por seu turno, afirmam que não agrediram ninguém!
Ora, como pode o Ministério Público, diante desse cenário de dúvidas, impor um gravame aos autores do fato? Se a promotoria de Justiça tivesse proposto a transação penal, diante dessa situação, aí sim, incorreria em grave erro, pois estaria aplicando uma medida restritiva de direitos, sem a convicção necessária da existência do crime.
Exatamente para resolver essa questão é que existe a previsão legal, do art. 77, caput, da Lei nº 9.099, in verbis:
“Art. 77. Na ação penal de iniciativa pública, quando não houver aplicação de pena, pela ausência do autor do fato, ou pela não ocorrência da hipótese prevista no art. 76 desta Lei, o Ministério Público oferecerá ao juiz, de imediato, denúncia oral, se não houver necessidade de diligências imprescindíveis” (grifos nossos).
Como se vê, diferentemente do que acredita a autoridade policial, o Ministério Público pode, sim, pedir diligências.
No caso telado, a oitiva de testemunhas que tenham presenciado os fatos é imprescindível para a formação da oppinio delicti, pois somente a prova testemunhal poderá dirimir o que, realmente, houve no dia do suposto crime. Apenas as testemunhas poderão dizer quem agrediu quem e se houve, porventura, legítima defesa.
Sem isso, ilustre Julgador, não há como propor transação, muito menos denunciar.
Pensar o inverso é comprometer a estrutura de garantias do processo penal democrático.
E mais: o fato de o Ministério Público pedir diligência, não transforma o TCO em inquérito policial, embora alguns autores assim o entendam. A informalidade dos Juizados permite, sim, que o Ministério Público requisite diligências e, no âmbito do próprio termo circunstanciado (sem a necessidade formal do inquérito, ou seja, sem a necessidade de portaria, ordens de missão, relatório, etc.), a autoridade policial colete as provas requeridas.
Sobre a possibilidade de o Ministério Público requisitar diligências, no âmbito dos JECRIM´s, sem a necessidade de instauração de inquérito policial, os ensinamentos abaixo de FERNANDO DA COSTA TOURINHO NETO e L.G. GRANDINETTI CASTANHO DE CARVALHO:
“Tenha-se que a baixa do termo circunstanciado à Delegacia de origem não significa, a princípio, que o Juizado Especial perdeu a competência, por se pensar em complexidade do caso em face de pedido de novas diligências. Pode não existir essa complexidade e, assim, cumprida a diligência pretendida pelo Ministério Público, sem instauração de inquérito, retorna o termo circunstanciado ao Juizado e aí tem prosseguimento” (TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Juizados especiais estaduais cíveis e criminais: comentários à Lei 9.099/95. Fernando da Costa Tourinho Neto, Joel Dias Figueira Júnior. 4ª edição reformada, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2005. Página 568) (grifos nossos).
“O simples encaminhamento do termo circunstanciado à delegacia, para novas diligências, não o transforma em inquérito nem desloca a competência para o juízo singular em caso de propositura da ação penal. Em se tratando de infração de menor potencial ofensivo, as diligências policiais sempre devem ser feitas na forma de termo circunstanciado, ainda que outras diligências possam ser realizadas por requisição do Ministério Público” (Leis dos Juizados Especiais Criminais Comentada e Anotada. L.G. Grandinetti Castanho de Carvalho e Geraldo Prado. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. Página 115 – nota de rodapé nº 246) (grifos nossos).
Portanto, ao contrário do que entende a autoridade policial, as diligências são possíveis (e recomendadas), mesmo em casos que não sejam considerados de complexidade. Afinal de contas, nesses também se deve respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Por outro lado, a recomendação do senhor Delegado de Polícia de que a oitiva de testemunhas seja efetivada na fase judicial (fl. 41) somente merece guarida se o caso trouxer elementos suficientes para a denúncia. Aí sim. Uma vez oferecida uma denúncia fundada em mínimo probatório, ouve-se as testemunhas na instrução.
Porém, Excelência, na hipótese dos autos, como já fartamente mencionado, não há prova mínima para transação, muito menos para denúncia!
É bem verdade – e aqui se concorda integralmente com a autoridade policial – que providências probatórias, antes de tentada a composição civil, poderiam ser um “desforço desnecessário” (fl. 42), pois se poderia obter o acordo entre as partes.
Perfeito!
Ocorre que, no caso presente, o Ministério Público só pediu a diligência depois de tentado o acordo e não obtido!
Tentou-se a conciliação, não foi possível. A próxima etapa seria propor a transação penal. Porém, a transação penal somente pode ser levada a efeito se o Ministério Público possui provas suficientes para denúncia, pois, diante de uma recusa do autor do fato quanto à medida alternativa sugerida, o Promotor de Justiça há de estar preparado para oferecer denúncia oral.
Todavia, não é o caso presente. Insista-se: o conflito entre as versões apresentadas pelas partes não legitima o Ministério Público a propor a transação penal. Daí a necessidade das diligências, que foram negadas pela autoridade policial, por entender incabíveis.
Ante o exposto, e considerando todas as razões acima invocadas, o Ministério Público, na qualidade de única parte legítima para a propositura da ação penal pública, requer se digne Vossa Excelência de, novamente, encaminhar os autos à Delegacia de origem, para a realização das diligências requisitadas, imprescindíveis à formação da oppinio delicti.
Requer, ainda, que seja dado conhecimento destas razões ao Delegado de Polícia Civil Sinélio Ferreira de Menezes Filho.
E. deferimento.
Belém, 23 de agosto de 2010.
ANA CLÁUDIA BASTOS DE PINHO
Promotora de Justiça
[1] Há vários e interessantíssimos trabalhos críticos sobre os Juizados Especiais Criminais, que bem demonstram as características ora apontadas. Referidos trabalhos podem ser encontrados em: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (org.). Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (org.). Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[2] Sobre o discurso eficientista no Direito, conferir Alexandre Morais da Rosa e José Manuel Aroso Linhares. Diálogos com a Law & Economics. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2009. E também: Alexandre Morais da Rosa e Thiago Fabres de Carvalho. Processo Penal eficiente & Ética da Vingança: em busca de uma criminologia da não violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[3] “[...] A solução está no difícil equilíbrio do ciclista (somente possível no movimento): não correr demais, para não cair; não ir excessivamente devagar, porque senão, igualmente caímos. Esse é o equilíbrio que se busca, através da recusa aos dois extremos.” LOPES JÚNIOR, Aury. Artigo do Boletim IBCCRIM nº 152 - Julho / 2005 A (de)mora jurisdicional e o direito de ser julgado em um prazo razoável no processo penal. (grifos nossos).
[4] Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é quem dirige uma das críticas mais contundentes e abalizadas aos Juizados Especiais Criminais. São palavras do processualista paranaense: “A matéria referente aos Juizados Especiais Criminais é um dos maiores exemplos de como a efetivação infraconstitucional (desejada por todos que dela não desistem como dirigente e compromissória) pode ser um arremedo – ou uma farsa – se conduzida de maneira inadequada” (artigo intitulado “Manifesto contra os juizados especiais criminais (uma leitura de certa “efetivação” constitucional). In Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Alexandre Wunderlich e Salo de Carvalho (org.). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. Página 03.
O título resume bem o texto: nefelibata mesmo! O conteúdo superou o formalismo e fez uma necessária crítica ao eficientismo. Impressionante!
ResponderExcluirAinda bem que existem profissionais do Direito deste porte, pois senão a discussão ficaria restrita ao espaço acadêmico. E teoria sem práxis não pode ser teoria!
Nesse movimento neoliberal do processo penal, inclui-se a instituição da elaboração de TCO como atividade ordinária das polícias militares. Fico feliz em saber que existem membros do MP como a subscritora da peça.
ResponderExcluirLembrei de um caso recente de um cliente meu. Ele é médico e dava plantão em um Posto de Saúde no interior do Estado (aqui na Bahia). Durante a noite, a Secretária não informou a ele que havia chegado uma criança doente com o pai, tendo ela (a Secretária) dito para este pai que o médico havia afirmado que não atenderia o caso dela pois só atenderia urgência.
ResponderExcluirOcorre que o pai era Administrador do Fórum (ou funcionário do Fórum, sei lá) se dirigiu até a Delegacia e foi lavrado o termo circunstanciado, que, como de costume, não primava pela elucidação de nada. Curiosamente, constava até uma "representação" no meio, mesmo não se tratando de ação condicionada à representação, isto pela própria tipificação (omissão de socorro) que o Delegado deu.
Eu havia dito a ele, quando informado, para aceitar a eventual Transação Penal que seria feita para evitar o problema.
Ocorre que o Ministério Público, sem lastro de nada para nada, que não dava em lugar algum que não fosse o vazio absoluto, na mesma petição que ofereceu a Transação Penal requereu que a Juíza comunicasse o "ocorrido" ao Conselho Regional de Medicina, no que foi atendido. Pelo visto será instaurado um Processo Administrativo, vez que eles levam muito a sério uma "comunicação" "judicial" sobre um caso como este.
Diante disso decidimos não aceitar a Transação Penal e tentar provar a inocência dele na eventual ação penal, posto que o abacaxi maior é no Cremeb mesmo.
Propor Transação Penal e ainda comunicar o órgão de classe sem lastro algum é "osso", viu? É o neoliberalismo aludido no texto, acrescido da mais odiosa Ditadura.
Nem sempre o "Parquet" tem a conduta ética que mostrou a nobre representante Paraense. Parabéns para ela.