Da ação penal para Crimes relacionados à Lei Maria da Penha após decisão do STF
O dia 09 de fevereiro de 2012 representou um marco para os movimentos de repressão à violência doméstica contra a mulher. Nessa data foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal duas ações que tinham por objeto a declaração de constitucionalidade da Lei 11.340/06 – A Lei Maria da Penha. A primeira, Ação Direta de Constitucionalidade nº…
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O dia 09 de fevereiro de 2012 representou um marco para os movimentos de repressão à violência doméstica contra a mulher. Nessa data foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal duas ações que tinham por objeto a declaração de constitucionalidade da Lei 11.340/06 – A Lei Maria da Penha.
A primeira, Ação Direta de Constitucionalidade nº 19, que visava eliminar as discussões acerca de uma eventual ofensa ao ideal de igualdade pregado pela Constituição Federal de 88, foi julgada procedente declarando-se constitucionais os seus arts. 33, § único e art. 41.
Mas a problemática maior residia no julgamento da segunda ação, a Ação Direta de Constitucionalidade nº 4424, na qual a Procuradoria Geral da República pleiteava o reconhecimento de que as ações penais decorrentes de fatos relacionados à Maria da Penha, se procedessem mesmo sem a representação da vítima, ou seja, seriam ações penais públicas incondicionadas.
Por 10 votos a 1, o STF julgou procedente o pedido da PGR e decidiu que a Lei Maria da penha não exige a representação da vítima para o inicio da ação penal.
Essa Mesma questão já havia sido analisada e decidida de modo diverso em 2010 pelo Superior Tribunal de Justiça quando ficou decidido por maioria dos votos no Recurso Especial 1.097.042-DF, relatado pelo Ministro Napoleão Maia Filho (vencido) que é necessária a representação da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves (Lei n. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha). Como fundamento, a maioria afirmou que, entender a ação como pública incondicionada [1] “resultaria subtrair da mulher ofendida o direito e o anseio de livremente se relacionar com quem quer que seja escolhido como parceiro, o que significaria negar-lhe o direito à liberdade de se relacionar, direito de que é titular, para tratá-la como se fosse submetida à vontade dos agentes do Estado.”
Apesar dos votos vencidos que afirmavam ter a Lei n.º 11.340/2006 afastado expressamente, no seu art. 41, a incidência da Lei n. 9.099/1995 nos casos de crimes de violência doméstica e familiares praticados contra a Mulher, a decisão da maioria foi em sentido contrário, e ainda se valeram do artigo 2º, § 2º da Resolução 08/2008 – STJ [2] para suspender todos os julgamentos que versassem sobre essa matéria nos Tribunais inferiores.
Na oportunidade dessa decisão, oferecemos nossas críticas em artigos e palestras defendendo exatamente o contrário, pois o raciocínio mais coerente, a nosso ver, já era o de que as ações penais deveriam ser incondicionadas, o que agora, felizmente, veio a ser confirmado pelo STF.
Acreditamos que, para os casos da Lei Maria da Penha, sustentar um sistema que exige a representação da vítima é um tanto quanto temerário. Primeiramente pela negação da vontade do legislador no que concerne à Lei Maria da Penha, que a projetou especialmente para coibir as práticas atentatórias aos Direitos da Mulher em atendimento à sociedade feminina que demandava por um cenário de proteção integral a Mulher vítima de violência doméstica e familiar.
Ao criar a exclusão do artigo 41, o legislador afastou deste sistema o artigo 88 da lei 9099/95 que prevê que “além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.”
Em segundo lugar, não menos importante, reside a questão da reiteração das agressões e ameaças que sujeitam a Mulher à situações que a levam a desistir do processo. Sem falar nos casos que inicialmente aparentam ser simples e penalmente irrelevantes, mas que, principalmente em razão da inércia das instâncias formais de controle, acabam levando a uma reincidência mais grave por parte do agressor, como ocorreu no caso da cabeleireira Maria que foi brutalmente assassinada por seu ex-marido.
Nesse caso, a cabelereira sofreu várias agressões inicialmente insignificantes, sofreu ameaças de lesão e ameaças de morte, mas como não foi dada a devida importância para os seus relatos, acabou morta com oito tiros à queima roupa.
Isso demonstra que, mesmo no caso em que houve uma participação ativa da vítima em busca de uma providência para o seu problema – por coincidência ou não, a cabeleireira realizou oito registros de ocorrência – o Estado ainda se omitiu ao ponto de permitir que ela fosse morta.
Com a devida vênia, não cabe aqui o argumento de que a Mulher tem o direito de escolher o seu parceiro, ou de perdoá-lo em caso de lesão corporal leve. Se o legislador atendeu ao movimento internacional de proteção à Mulher, assim deve ser feito desde a primeira manifestação em busca de ajuda. As formalidades podem matá-la.
Não são raros os casos em que a vítima se retrata em juízo, algumas vezes para proteger seu amado, outras, a maioria, por medo de que retaliação por parte do mesmo quando se livrar daquele infortúnio, já que ele poderá sair facilmente mediante fiança.
Não há que se questionar também a questão da possibilidade de o réu livrar-se solto, a intenção do legislador não foi mantê-lo eternamente preso, mas simplesmente atender ao objetivo da prisão para esses casos, que é fazer cessar imediatamente a agressão.
A proteção da família também não é argumento para defender o contrário. No próprio âmbito do Direito Civil Moderno a proteção da instituição familiar vem perdendo espaço para a proteção da dignidade humana como asseveram os Professores espanhóis Joaquim Arce e Florez Valdés ao analisarem o que chamaram de dimensión familiar de la persona afirmaram que “La familia entra, pues, a integrar el contenido del Derecho civil por relación a la persona y como uma básica de la misma persona.” [3]
Não significa que a família tenha perdido seu valor, mas a sua carga axiológica passa a ser medida a partir do reconhecimento da pessoa como sujeito de direitos. A dignidade da Mulher, portanto, transcende à própria instituição familiar, e é disso que o Estado – na figura dos delegados de polícia, promotores de justiça e juízes de direito – deve cuidar.
Por fim, resta esclarecer que não há incompatibilidade entre os artigos 41 e 16 [4] da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha). A necessidade de representação foi afastada apenas nos casos de lesão corporal leve, permanecendo essa condição de procedibilidade nos outros crimes de ação penal pública condicionada, como é o caso dos crimes contra a dignidade sexual, ameaça etc.
O crime de lesão corporal leve sempre foi de ação penal pública incondicionada, e só passou a ser condicionada a representação após o advento da Lei 9.099/95. Afastada essa Lei, não há falar em representação para esses casos. A propósito, a pena para esse crime foi aumentada para o máximo em abstrato de três anos, o que por si só já o afastaria das benesses da Lei dos Juizados Especiais, não havendo outro propósito ao artigo 41 senão o de afastar o artigo 88 que trata da representação para a lesão corporal leve ou culposa.
Importante ressaltar, que tramita no Congresso Nacional o projeto de lei n.º 5297/09 de autoria da Deputada Federal pelo Amapá Dalva Figueiredo que visa alterar o artigo 16 da Lei Maria da Penha, sugerindo que a ação penal nos crimes de violência doméstica e familiar contra mulher seja pública incondicionada [5].
Na justificativa do Projeto a Deputada ressalta a importância da lei e lamenta “que todas as conquistas e avanços plasmados na Lei começam a perder efetividade a partir de uma compreensão equivocada dos Tribunais brasileiros que, fugindo do espírito e da vontade que norteou a elaboração do texto legal, passaram a definir como de ação penal pública condicionada à representação da vítima, os crimes objeto da referida norma”.
A proteção da dignidade da Mulher em todas as suas formas significa atender às diretrizes de defesa dos Direitos Humanos. Submeter a apuração de fatos com indícios de lesão corporal a uma manifestação vulnerável da Mulher é negar essas normas de otimização de nível internacional, principalmente porque há muitos casos de denúncias anônimas e de familiares.
A Ministra do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon na 4ª Jornada da Lei Maria da Penha, no Conselho Nacional de Justiça, declarou que existe uma incompreensão por parte da sociedade e da Justiça sobre a Lei Maria da Penha, que pune crimes de violência doméstica. Ao manifestar-se negativamente sobre a decisão do STJ que julgou necessária a representação nos casos de lesão corporal leve afirmou que “alguns magistrados ainda estão com a cabeça na Lei 9.099. Não podemos voltar no tempo. Antes o homem era condenado, pagava cesta básica, voltava pra casa e dava outra surra na Mulher”.
Segundo a ministra “Lesões corporais domésticas não podem ser comparadas a lesões causadas em brigas de vizinho ou em discussões de trânsito”[6].
Agora a questão nos parece definida da melhor forma possível, levando em consideração que a interpretação dada pelo STF atendeu à vontade do legislador em liberar a atuação imediata das instâncias formais de controle, para que, junto com implementação das ações sociais se alcance uma maior efetividade à proteção esperada pela sociedade, que é o que se estima à nível internacional.
[1] Informativo n.º 0424. Período: 22 a 26 de fevereiro de 2010.
[2] Art. 2o Recebendo recurso especial admitido com base no artigo 1o, caput, desta Resolução, o Relator submeterá o seu julgamento à Seção ou à Corte Especial, desde que, nesta última hipótese, exista questão de competência de mais de uma Seção.
[2] Art. 2o Recebendo recurso especial admitido com base no artigo 1o, caput, desta Resolução, o Relator submeterá o seu julgamento à Seção ou à Corte Especial, desde que, nesta última hipótese, exista questão de competência de mais de uma Seção.
§ 2o A decisão do Relator será comunicada aos demais Ministros e ao Presidente dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, conforme o caso, para suspender os recursos que versem sobre a mesma controvérsia.
[3]JOAQUIM ARCE Y FLOREZ VALDÉS. El Derecho Civil Constitcional. Madrid: Civitas, 1991.
[4] Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
[5] http://www2.camara.gov.br/proposicoes. Acessado em: 20.03.2010.
[6]Fonte: agência Brasil. http://www.agenciabrasil.gov.br/?q=node/2115&page=2. Acessado em 19.03.2010.
AURINEY BRITO – advogado coordenador do setor criminal do Escritório Brito & Santos Advogados Associados. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama FIlho-RJ, Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra – Portugal, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito-SP, Mestre em Direito na sociedade da informação pela UniFMU-SP e Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Palestrante e Professor do curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da Escola Paulista de Direito-EPD e da Faculdade FAMA no Amapá. Articulista no Site Jurídico Atualidades do Direito. Membro da Comissão de Direito na Sociedade da Informação da OAB-SP. Diretor e Membro efetivo do Instituto dos Advogados do Amapá. Autor de diversos artigos e nos livros “Crimes Financeiros e Correlatos” publicado pela Ed. Saraiva; “Direitos da Mulher” publicado pela OAB/SP; e ”Direito da Sociedade da Inf
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