UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO
ALUNA: MARIA JACINTADE SOUZA BITTENCOURT
PROFESSOR: ALEXANDRE MORAIS DA ROSA
PROCESSUAL PENAL I – DIR 5724
FICHAMENTO
MANUAL DOS INQUISIDORES
Escrito pelo dominicano Nicolau Eymerich, em 1376, o Manual do Inquisidores consiste de um tratado, dividido em três partes, que visava a subsidiar o exercício da inquisição (Santo Ofício). A leitura do texto, portanto, envolve a compreensão das idéias político-religiosas de então, sobretudo a disputa entre o poder secular e o clero. Quando o imperador Frederico II, para manter a unidade do reino, inicia a perseguição de hereges, o papa Gregório IX (criador da inquisição) avoca a tarefa persecutória e institui os próprios inquisidores. As práticas inquisitoriais se legitimavam com a edição de atos emanados do papa, representante máximo da vontade divina.
Na primeira parte do Manual, o autor se concentra em definir a heresia e o herege, em sentido estrito e, com isso, a esfera de atuação do inquisidor, sua jurisdição. O fundamento da inquisição é a defesa da fé católica, tida como a verdadeira. Daí a denominação de herético àqueles que escolhiam outra doutrina ou aderiam a um pensamento divergente da doutrina cristã católica. O castigo da excomunhão se justificava pois, pelo fato de a heresia ser vista, etimologicamente, como separação e também uma escolha do herético, por uma crença contrária à da estabelecida pela Igreja.
O conceito de heresia como escolha, porém, não se aplica à opção pela verdade católica, defende Francisco PEÑA, em comentários ao Manual. Não é herético quem escolhe a verdade católica, pois, nesse caso, trata-se tão somente de seguir o que Deus lhe determinou (determinismo divino). Só existem heresia e seita, quando se trata de doutrinas cuja interpretação do evangelho não é conforme a interpretação defendida pela Igreja Católica. Sob esse fundamento, EYMERICH qualifica um artigo ou proposição como heréticos, quando se opuserem aos dogmas que constituam a base da fé católica (por exemplo, o dogma da Santíssima Trindade).
Se, juridicamente, a heresia (espécie) é distinta do erro (gênero), no domínio da fé não se faz distinção entre os termos. Disso resulta uma ampliação do universo dos heréticos, para fins de persecução inquisitória. O herege, presumido ou verdadeiro, era o "arquiinimigo da fé" e, para salvaguardar a verdade absoluta (a revelação divina, no seio da igreja católica), justificava-se a intolerância a qualquer pensamento divergente. Assim, eram heréticos os excomungados, os simoníacos, quem contestasse a autoridade divina da Igreja de Roma, e até quem cometesse erros na interpretação das Sagradas Escrituras.
Do ponto de vista estritamente jurídico e teológico, ao se qualificar alguém como herege, levava-se em conta o erro intelectual, no tocante à fé, e a vontade. Considerando o dever dos fiéis de acreditar no conteúdo dos livros canônicos, e em tudo o que a Igreja decretou como de fé, quem quer que discordasse com teimosia de qualquer dessas verdades seria considerado herege. O que caracterizava o herege, portanto, era seu apego intransigente ao erro, o que se manifestava na recusa de abjurar.
Para o fim de facilitar sua identificação e graduar as penas, os hereges eram classificados em manifestos ou disfarçados, afirmativos (manifestam, por palavras e ações, o apego ao erro mental) ou negativos (os que, convencidos de alguma heresia, negavam-na, confessando em palavras a fé católica). Independentemente de suas razões para negarem, eram considerados hereges, pois o fato de não confessar o erro de que tinham convicção era a prova de sua impenitência. Segundo PEÑA, tanto eram hereges os praticantes de atos propriamente heréticos (adorar os demônios, comungar com os hereges etc) como aqueles que visitavam hereges, ou os que os sustentavam. Neste caso, as suspeitas bastavam para justificar processos por heresia.
PENA é inflexível e negam o benefício do esquecimento quanto a supostos "hereges negativos", entendendo que não se pode considerar como tal quem, estando convencido de ter tido, no passado, uma linguagem ou um comportamento heréticos, declara que esqueceu tudo. O inquisidor é implacável a esse respeito: se era certo que a memória guarda sempre inalteradas as lembranças de fatos marcantes, a prática de atos heréticos deixaria uma marca indelével na memória. Logo, alguém (como os luteranos) que tivesse profanado locais sagrados, pregado idéias heréticas, destruído imagens, merecia ser processado. Isso porque "a marca que a prática dos hereges deixa na memória nunca se apaga".
Seguindo na classificação dos opositores à verdade absoluta, o Manual faz ainda a distinção entre o herege e o heresiarca, "príncipe dos hereges". No entendimento do inquisidor, o heresiarca não se limita a se enganar e a se apegar a seus erros, também os formula, inventa e os apregoa. Além dos criadores de heresias, consideravam-se heresiarcas quem as difundia, desenterrava velhos erros, para apregoá-los novamente ou retomá-los escondido. Não fosse assim, diz PENA, chegar-se-ia à conclusão de não existiam mais heresiarcas, ou existiam em número reduzido. Com esse argumento, o inquisidor, aparentemente, busca ampliar o número de heresiarcas, no intuito de ampliar sua jurisdição, com isso, pretensamente fortalecer a fé católica.
Em função dessas distinções, as disposições jurídicas não eram as mesmas para julgar os hereges e os heresiarcas. A condição de heresiarca era uma circunstância agravante, ensejando a pena máxima. Não se deveria livrá-lo do último suplício, mesmo se estivesse sinceramente arrependido. O arrependimento ou conversão era vista pelo inquisidor como mero artifício para fugir da tortura. Para os demais hereges, a pena era tanto mais rigorosa quanto maior fosse o apego à heresia e a recusa em confessar e abjurar. Aos hereges tidos como pertinazes e impenitentes, por exemplo o castigo era serem entregues ao braço secular para serem executados.
Também se reservava a execução, sem novo julgamento, para hereges relapsos (reincidentes na heresia, após abjurarem-na). A opinião geral era de que relapsos fossem queimados vivos em praça pública, não sem antes serem amordaçados, para que suas blasfêmias não chegassem aos ouvidos dos presentes à execução. Não se perdoava o penitente relapso por uma razão muito clara: reincidir era como confessar que não ocorrera uma conversão sincera, no passado. Era, portanto, absolutamente justo que a Igreja considerasse os relapsos como inúteis, sempre infectados de heresia e, por isso, dignos de ser definitivamente expulsos e entregues ao braço secular.
No caso dos blasfemadores, havia inclusive a distinção entre blasfemadores comuns, e aqueles que atacavam diretamente as verdades da fé católica. Estes eram considerados hereges ou suspeitos de heresia pelo inquisidor e julgados como tais. Segundo a prática inquisitorial, a gravidade da blasfêmia era medida de acordo com as virtudes do blasfemador, cujo status social determinava o rigor da repressão. Se fosse um nobre ou alguém importante, por exemplo, era obrigado a abjurar e dele se cobrava uma alta soma em dinheiro, sendo ainda lhe reservada a clausura temporária em um convento. Observa-se aqui a prática arrecadatória, em benefício dos cofres da inquisição.
A jurisdição da inquisição se estendia sobre todos os hereges, entre os quais se compreendiam judeus e infiéis. Partindo da premissa de que todos os homens, sejam fiéis ou infiéis, são ovelhas de Cristo, o inquisidor persegue os seguidores de outras religiões, uma vez que podem servir de obstáculo à verdadeira fé. Se a bíblia continha verdades comuns a judeus e católicos, argumentava o inquisidor que deviam respeitá-las, sob pena de serem considerados hereges contra a sua própria religião.
O autor defende a inquisição contra eventuais acusações de ser um tribunal de exceção. Como argumenta EYMERICH, cabe ao inquisidor, e não ao poder civil, afastar os infiéis da comunidade cristã, persegui-los e julgá-los previamente. A Igreja deve intervir para condenar onde, justamente, reis e príncipes tenham a audácia de proteger os judeus. Sem a Igreja, esses hereges seriam, na verdade, protegidos.
Ninguém escapava dos tentáculos da inquisição. Quando o inquisidor não conseguia interferir, como no caso de certos apóstatas (clérigo que se laiciza e o monge que abandona o convênio), decretava-lhes uma sentença de excomunhão. Se ficassem um ano sob efeito dessa pena, seriam suspeitos de heresia, e, assim, sujeitavam-se ao julgamento do inquisidor. Mesmo no caso dos suspeitos de heresia, PENA defendia ser legitimo torturá-los para fazê-los confessar e, depois, abjurar. O manual enumera os dez casos de forte ou veemente suspeita de heresia. O fracamente suspeito não era herege, no entanto, era obrigado a abjurar, assim como o fortemente suspeito. Já o violentamente suspeito era tido por herege, passando pelas mesmas punições dos demais. A suspeita grave por si só era o bastante para condenar, não se admitindo nenhum tipo de defesa nesse caso.
PEÑA faz algumas ressalvas, quanto a regras como a que determinava que todo mundo deveria expulsar de casa o irmão, o pai, o filho ou o cônjuge herético. Para ele, a consangüinidade não deveria ser motivo para não se aplicar a pena, servindo apenas para atenuar o rigor da punição. A clemência do inquisidor seria, pois, proporcional à proximidade dos laços de parentesco. A condenação atingia até parentes próximos de quem acolhia os hereges. Sendo o "hospedeiro" judeu, ou outro tipo de infiel, era processado sem maiores investigações e condenado às penas previstas habitualmente: prisão perpétua, entrega ao braço secular, confisco dos bens. Para além da excomunhão do protetor de hereges, estava prevista a demolição total da casa que os abrigara, o exílio do proprietário e, ainda a interdição de reconstruir e o confisco dos bens. A perseguição dos inquisidores, mais do que tudo, era movida pelo ódio aos hereges, como admite PEÑA.
Na perseguição aos heréticos, a inquisição considerava tanto as denúncias de testemunhas corajosas e honestas, mas também o testemunho de hereges, traidores, criminosos etc. Os textos pontifícios não faziam nenhuma distinção entre o valor das acusações de uns e de outros. A acusação valia por si mesma em qualquer situação: bastava que uma pessoa fosse publicamente apontada, para receber uma pena canônica, ou, se a recusasse, ser expulsa da Igreja. Para os relapsos (reincidentes), nem mesmo se garantia o processo: em qualquer caso, seriam entregues ao braço secular.
A partir da definição dos hereges e seus castigos e punições, observa-se que o direito inquisitorial tendia a estender sua jurisdição, tornando-se um tribunal de exceção em relação ao poder secular. Em nome de uma fé pretensamente verdadeira e absoluta, considerava crime passível de punição qualquer desvio dos fiéis e dos convertidos à fé, incluindo crianças, não obstante as tratasse com menos rigor. Fundamentava a perseguição e a acusação no pressuposto de que de o acusado era culpado de plano. Assim, o ônus da prova era mínimo para o inquisidor, que poderia basear o processo em meras suspeitas, ou em depoimentos de testemunhas inidôneas. Se o suspeito não fosse herege, poderia assim tornar-se, apenas pelo decurso do prazo (caso de quem ficava na situação de excomunhão por um ano).
Na segunda parte do manual, Eymerich concentra-se nas instruções sobre o exercício da prática inquisitorial, propriamente dita. Começa por orientar o inquisidor recém-nomeado pelo Papa a primeiro apresentar-se ao rei ou ao governante do estado para onde fora enviado, mostrando-lhe suas credenciais, bem como solicitando-lhe e oferecendo-lhe ajuda para "eliminar a perversidade herética e exaltar a fé católica". Obtido o salvo-conduto para si e sua comitiva, o inquisidor deveria ainda procurar o arcebispo ou o bispo locais e lhes apresentar seu mandato apostólico. Era uma medida preventiva, para não sofrer entraves na sua missão, fosse da parte dos bispos, ou do poder secular.
Era facultado ao inquisidor exigir das autoridades civis o juramento de protegê-lo durante o exercício das suas funções. A recusa ao juramento era punida com o interdito das terras e cidades governadas pelos recalcitrantes.
Quem fosse assim condenado era impedido de exercer a medicina e o direito. Além disso, ficava proibido de vestir roupas caras e usar ornamentos de ouro ou prata, ter magistraturas e administrações, exercer função pública ou praticar ato público. A pena passava da pessoa do condenado para os filhos e netos, que ficavam sujeitos aos mesmos impedimentos! Àqueles que julgam injusta a punição dos filhos por causa dos delitos dos pais, PENA argumenta que se esquecem do efeito da pena de expropriação dos filhos sobre muitos pais, impedindo-os, com efeito, de cair em heresia: "o amor paterno é tão bonito, tão nobre, que, muitas vezes, os pais temem muito mais pelos filhos do que por eles próprios".
Eymerich previa a aplicação de sanções às autoridades com o fim de obrigá-las a atender as ordens do inquisidor. Ao comentar esse tópico, PENA defende o castigo rigoroso para pecado de desobediência ao inquisidor. No entanto, quando se tratasse de conselheiros e pessoas importantes, aconselhava a imposição de penas menos duras, como a doação de uma grande soma em dinheiro, de forma que o crime não ficasse impune e para que incutisse o medo nos demais. A pena pecuniária sugere que os suplícios físicos ficavam reservados àqueles cuja condição social não lhes permitisse colaborar com o financiamento da inquisição. Daí porque, PENA advertia o inquisidor para ter muito cuidado antes de punir poderosos, já que iria precisar constantemente dos poderes civis, cuja amizade e simpatia seriam indispensáveis.
Obtido ou não o juramento das autoridades, o inquisidor faria nomear um comissário inquisitorial, com a função de receber as denúncias, informações e acusações, citar criminosos e testemunhas, prender, ouvir depoimentos e confissões, torturar para obter confissões etc. Ficava, porém, reservada ao inquisidor a aplicação da sentença definitiva.
O passo seguinte à nomeação dos comissários inquisitoriais, era a definição de uma data para o sermão geral, a respeito do qual exigia-se dos párocos locais que avisassem ao povo. O comparecimento era premiado com quarenta dias de indulgência. Ao final do sermão, o inquisidor então mandava ler a Ordem de delação, dirigida a todos, leigos e membros do clero. Sob pena de excomunhão, deveriam falar sobre o que sabiam sobre hereges, inclusive os suspeitos de heresia, Deixava claro ainda que os delatores não mereciam críticas, ao contrário, deveriam ser considerados bastantes obedientes à fé divina.
Após a leitura desta ameaça, seu sentido era resumidamente explicado pelo inquisidor, que lembrava aos assistentes que sua presença ao sermão lhes garantia quarenta dias de indulgência. Prometia mais três anos de indulgência a quem lhe ajudasse a cumprir sua tarefa, por exemplo, denunciando um herege ou um suspeito. Por fim, fixava a época do perdão (que durava um mês, no máximo, quarenta dias), período em que seria concedida uma graça especial a todos os potenciais hereges, que se apresentassem espontaneamente.
Não obstante as promessas de clemência a quem se entregasse voluntariamente, o beneficio do perdão não era incondicional. O inquisidor não lhes ministrava, por exemplo, o sacramento da confissão, sob o fundamento de que os hereges e suspeitos, temerosos de ser capturados pela Inquisição, apresentavam-se voluntariamente, pedindo para ser ouvidos na confissão, no intuito de fugir do processo e da punição. Além disso, o perdão não seria concedido sem antes o inquisidor verificar se o depoente já tinha sido acusado de alguma coisa ou se já tinha sido objeto de delação ou acusação em outro lugar.
Quanto ao recebimento das denúncias, sendo numerosos os delatores, seus nomes e as informações, assim como o nome das testemunhas e a indicação da residência eram escritos num caderninho preparado para tal, a Agenda das delações. Após o tempo do perdão, o inquisidor consultava a agenda, selecionando os crimes mais perigosos para a fé, por onde começaria a investigação, citando o denunciante. A investigação era uma das três formas de abertura de processo inquisitorial, que também poderia ser instaurado com a acusação ou por denúncia.
A peculiaridade no processo por acusação era a declaração do acusador afirmando que aceitava a lei de talião, ou seja, se perdesse, pagaria a pena que o acusado pagaria, se ficasse provada a culpa deste último.
À época de PENA, a lei de Talião estava em desuso e havia justificativa para tanto: o risco de punição ao acusador gerava a dificuldade de se encontrar delatores, o que redundaria na impunidade dos crimes, para grande prejuízo do Estado. Segundo PENA, não se deveria entregar ao braço secular o acusador que perdesse, porque, em quaisquer das circunstâncias, o acusador é menos perigoso que o herege. De qualquer forma, em seu tempo, o papel do acusador era já atribuído a um "Fiscal" que, após a investigação, formulava as acusações em termos precisos, de modo que o acusado soubesse de que exatamente era, para que pudesse defender-se. No entanto, não constava dos autos de acusação o nome do denunciante, pois havia situações em que se devia enganar o culpado.
Na abertura de um processo por denúncia, um delator denunciava alguém de heresia ou de protecionismo à heresia e declarava fazer isso para não se arriscar à excomunhão. O inquisidor mandava colocar por escrito os termos exatos da denúncia, inquirindo também o delator sobre suas motivações para a denúncia: se por maldade, ódio, ressentimento ou, ainda, por ordem de terceiros.
Dispondo-se apenas de boatos, a respeito do que alguém disse ou fez contra a fé ou em favor dos hereges, neste caso, a abertura do processo se dava com a investigação do inquisidor, conforme suas atribuições.
Instaurado o processo numa causa de heresia, por uma das três formas acima, o processo se desenvolvia devendo seguir o procedimento sumário, simples, sem complicações e tumultos, nem ostentação de advogados e juízes. Não se podia mostrar os autos de acusação ao acusado nem discuti-los. Tampouco se admitiam pedidos de adiamento e medidas similares. Durante o interrogatório, que poderia legalmente ultrapassar o teor da acusação, a ordem das perguntas ficava ao arbítrio de cada inquisidor, que poderia oferecer maior clemência ao acusado, mas com o fim, maliciosamente oculto, de obter sua confissão, de forma mais clara e rápida. Cabia também ao inquisidor definir a frequência dos interrogatórios, respeitando sempre o princípio de silenciar sobre tudo o que pudesse dar pista dos delatores ao acusado. A isso, PENA sugeria que, durante o interrogatório, o acusado se sentasse numa cadeira mais baixa, mais simples que a cadeia do inquisidor, o que se pode ver como um símbolo da situação de inferioridade do acusado, no processo.
Em seus comentários, PENA advoga mais rigor em relação às recomendações de Eymerich. Um exemplo é quanto aos hereges "de brincadeira" que, segundo ele, não mereciam muita condescendência. Ao menos, deveriam pagar uma boa multa que revertesse em benefício de um local de culto! Mais prosaicas eram suas advertências para não se punir quem tivesse proferido heresias em sonhos, ou não se levar em consideração heresias provindas de criança ou de um velho senil.
Nos processos por investigação, o inquisidor mandava citar testemunhas entre as pessoas boas e honestas, a quem cabia confirmar a existência de boatos entre a população. A particularidade nessa modalidade de processo era a necessidade de apenas duas testemunhas para provar a existência de boatos, desde que íntegras e maiores de idade. Além disso, dois depoimentos divergentes quanto aos fatos bastavam para provar a existência de boatos: podia-se "proceder". Para afastar qualquer suspeita de irregularidade, cinco pessoas deviam estar presentes aos interrogatórios dos delatores e testemunhas: o juiz inquisitorial, a testemunha ou o acusado, e duas testemunhas inquisitoriais.
Nas observações que precedem o interrogatório dos hereges, fica evidente que o inquisidor de antemão, considerava o acusado culpado. Dessa forma, era-lhe lícito utilizar qualquer artifício para obter a confissão de culpa. "A malícia é a melhor arma do inquisidor (...) para convencer o acusado de que aderiu a uma heresia", lembra PENA. Por isso exorta os inquisidores a mostrar sagacidade, reforçando as regras de Eimerich, que ensinava aos inquisidores a reconhecer os dez truques dos hereges para responder sem confessar, como simular idiotice ou demência.
No caso de fingida loucura, para que o inquisidor tivesse a consciência tranqüila de não estar condenando um louco de verdade, PENA sugere a tortura para qualquer louco, fosse ou não falso. Se não fosse louco, dificilmente o acusado poderia continuar a sua comédia sentindo dor. De toda maneira, não havia porque temer que o acusado morresse durante a tortura, já que "a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo".
Em resposta aos truques dos hereges, o Manual apresenta os dez truques do inquisidor para neutralizá-los, devendo, sobretudo, usar de malícia, a fim de forçar o herege a revelar os erros, convertendo-os em verdade: com fala calma, sem irritação, e considerando sempre o acusado como culpado. Já antevendo eventuais objeções ao uso da malícia para enganar o acusado, PENA sai em defesa dessa artimanha. Segundo ele, a mentira que se prega judicialmente, em benefício do Direito, do bem comum e da razão, é absolutamente louvável. Mais ainda o é a mentira que se prega "para detectar a heresia, erradicar os vícios e converter os pecadores". Em outras palavras, para a inquisição, não importam os meios, se os fins são justos.
Além dos truques para detectar hereges, o manual relaciona as particularidades dos rituais, de vestuário e outros indícios exteriores de heresia. Considerando que a lista dos indícios exteriores de heresia seria longa, Pena conclui existir "indício exterior de heresia toda vez que houver atitude ou palavra em desacordo com os hábitos comuns dos católicos".
Por fim, quanto ao processo, Eymerich relaciona as causas da demora dos processos e do atraso na promulgação das sentenças, sendo que a maioria delas se vinculam ao que se considera direitos processuais do acusado, como o grande número de testemunhas. Conforme a lei da Inquisição, bastavam duas testemunhas. O fato de dar o direito de defesa ao réu também se considerava motivo de lentidão no processo, razão pela qual o inquisidor entendia que essa concessão nem sempre era necessária. Para o inquisidor, se o réu confessasse o crime para quem o denunciou e a confissão correspondesse às denúncias, não valeria a pena oferecer-lhe um defensor para atuar contra as testemunhas. Ademais, quanto à credibilidade, a confissão tinha mais valor do que o depoimento das testemunhas. Ao contrário do que ocorria em outros tribunais, diante do Tribunal da Inquisição, bastava a confissão do réu para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma, alega PENA, para demonstrar que Eymerich tinha razão ao falar da inutilidade da defesa. Nesse contexto, o defensor não tinha outro papel que o de agilizar a condenação.
Em alguns casos, o réu poderia apelar para o Papa, sendo a apelação também considerada uma causa da dilação do processo. Recebida a cópia da apelação, o inquisidor tinha o prazo de dois dias para acusar o recebimento da apelação, além de mais trinta dias para fazer o julgamento apostólico. Poderia inclusive prorrogar o prazo da resposta. E na pendência da resposta à apelação, não era preciso retardar a tortura, caso os indícios se mostrassem suficientes a sua aplicação. Com o argumento de que a apelação não tinha a finalidade de proteger a injustiça, uma resposta apostólica positiva nunca seria considerada como uma sentença definitiva, pois inocentaria o réu.
Incluía-se também entre as alegadas causas de dilação processual a destituição do inquisidor e a fuga do acusado, que não deixa de ser uma forma de defesa.
Finalmente, quanto à conclusão do processo da Inquisição, o encerramento sempre se limitava a treze veredictos, por meio dos quais puniam-se inclusive o caluniado de heresia e os suspeitos, que ficavam sujeitos à expiação canônica e à abjuração, conforme a gravidade da suspeita. Mesmo no caso de absolvição do acusado, o inquisidor evitava declarar na sentença absolutória que o acusado era inocente ou isento, e sim esclarecer que nada havia sido legitimamente provado contra ele. Dessa forma, se, mais tarde, fosse trazido novamente diante do Tribunal, poderia ser condenado sem problemas, apesar da sentença de absolvição.
Um dos veredictos era o interrogatório, aplicável ao réu que não confessou e de quem não se tinha provas de que era herege, durante o decorrer do processo. O manual é bastante detalhista sobre o procedimento do interrogatório, a respeito das situações em que o réu vacilar, e ainda nas quais se aplicaria a tortura. Aliás, o inquisidor reconhece que a tortura nem sempre é eficaz, uma vez que existem pessoas com o espirito tão fraco, que confessam tudo com o mínimo de tortura, mesmo se não cometeram nada. Outras, são tão obstinadas que não abrem a boca, independentemente dás torturas que sofrerem. Quanto a crianças e os velhos, PENA admitia sua tortura, desde que com uma certa moderação. No caso de uma mulher grávida, não deveria ser torturada nem aterrorizada, para evitar que desse à luz ou aborte. Depois do parto, não haveria mais nenhum obstáculo à tortura.
O valor da confissão era absoluto quando obtido sob ameaça de tortura ou através da apresentação dos instrumentos de tortura. Nesse caso, considerava-se que o réu confessou espontaneamente, tendo em vista que não foi torturado. A mesma coisa, se a confissão era obtida com o réu já despido e amarrado para ser torturado. Apenas se confessasse durante a tortura, deveria, depois, confirmar a confissão, já que esta foi obtida através do sofrimento e do terror.
Apesar disso, PENA alega que os inquisidores não são carrascos. Isso porque seguiriam regras bem definidas sobre quantas vezes podem-se "recomeçar" as torturas. Não haveria mesmo crueldade ao se aplicar uma terceira série de torturas, se o réu tivesse sido torturado com uma certa timidez, nas duas séries anteriores. A respeito do veredicto de abjuração por suspeita leve, mais uma vez, PENA vai em defesa do sistema inquisitorial, ao dizer que não se trata aqui de penas, mas de punições, já que não se pode aplicar uma pena contra quem é levemente suspeito. Em que pese ter consciência dos abusos cometidos durante o processo, o autor justifica os procedimentos inquisitoriais em nome da fé absoluta, cuja defesa desconhece escrúpulos.
Outro veredicto era a prisão perpétua, entendendo-se por "prisão" a cidade em que morava o condenado, que seria então atormentado, para todo o sempre, pelo pão do sofrimento e a água da amargura. Merece citação o veredicto aplicado ao penitente relapso que, independentemente do arrependimento, era entregue ao braço secular para ser executado. Impenitente ou penitente, esse tipo de réu seria executado. Só escapava do braço secular quem, antes de reincidir, tivesse abjurado para purgar uma suspeita leve. O castigo final (execução) também era reservado ao herege impenitente e não relapso. Esgotados os recursos para forçá-lo à conversão, o réu era entregue ao braço secular. No caso de ser impenitente e relapso, o herege deveria morrer, não obstante manifestasse seu arrependimento. E para completar sua condenação, no caminho para fogueira, seria pressionado a desistir dos seus erros. O que seria em vão, pois, mesmo que se arrependesse in extremis, não seria admitido no âmbito da Igreja. Quanto ao réu, não-relapso, que persiste negando, se, in extremis, disser que se arrepende e quiser confessar, mesmo se já está ardendo em chamas, escapará com vida, indo para a prisão perpétua. Era presumida, portanto, a culpabilidade do herege que não confessava.
A última parte do Manual responde a questões recorrentes, relativas às práticas inquisitórias, servindo como fonte de consulta rápida, caso o inquisidor se depare com as situações ali previstas. O autor começa por relacionar os requisitos que deve cumprir um inquisidor, entre os quais a idade mínima de quarenta anos e o doutorado em Teologia, Direito Canônico e Direito Civil. A autoridade do inquisidor lhe era delegada por meio de uma bula papal, e subsistia mesmo com a morte do papa que tivesse editado referida bula.
Sendo representantes do Papa, somente a ele os inquisidores deviam obediência e submissão, no que tange à representação. Assim, somente ao papa cabia punir diretamente os inquisidores com a destituição. PENA invoca Santo Tomás para lembrar que "é sempre melhor evitar punir os inquisidores, porque, com a punição, é a instituição inquisitorial que é atingida: logo ela não será mais respeitada e temida pela plebe ignara"
Nessa parte, Eymerich trata ainda das dúvidas quanto aos privilégios dos inquisidores, como o de não serem excomungados por um delegado da Santa Sé, sem que, para tal, houvesse uma ordem apostólica expressa. A finalidade do privilégio não era outra senão impedir interferências na prática do Santo Ofício. Não obstante os privilégios, o inquisidor não estava livre da excomunhão, que poderia ser-lhe aplicada pelo papa, quando, por exemplo não perseguisse quem deveria perseguir, ou quando, sob qualquer pretexto, no exercício de suas funções, extorquisse dinheiro. Como se vê, só a igreja poderia confiscar bens e dinheiro dos fiéis. Havia inclusive a preocupação de o dinheiro arrecadado com a imposição de penas pecuniárias ser desviado por membros do próprio clero, "bispos de mão fechada e bolsos recheados". Esse dinheiro deveria ser empregado principalmente, para o trabalho da Inquisição, pois, não poderia existir "causa mais nobre e instituição mais útil ao Estado que a Inquisição". A essa, junte-se a preocupação do inquisidor em evitar acusação pública de avareza e cupidez, razão porque PENA recomenda a moderação, na aplicação de penas pecuniárias.
Outra questão respondida nessa parte do manual refere-se à possibilidade de o inquisidor proceder contra os mortos que, antes ou depois do falecimento, fossem denunciados como hereges. Se em Direito Civil, a morte do culpado faz cessar qualquer possibilidade de perseguição por causa de um delito, esse princípio geral não valia para o delito de lesa-majestade divina, como era vista a heresia. PENA vai além, admitindo o julgamento do suposto herege, até 40 anos depois da sua morte, com o fim de confiscar-lhe os bens em proveito da igreja. Em se tratando de condenar a memória do morto, não havia limite temporal, podendo-se fazê-lo após 40 anos. Nesse caso, os filhos do falecido ficariam com seus bens, mas seriam declarados infames e inaptos para o exercício de cargos públicos. Embora lamente que a punição pudesse atingir o inocente, o autor afirma que a pena é juridicamente correta.
Quanto à indagação de o inquisidor pode obrigar os herdeiros de um herege que morreu, a suportar as punições que seriam aplicáveis ao, o autor responde afirmativamente, se a pena não disser respeito diretamente à pessoa, devendo ser cumprida em bens materiais (construção de um hospital, por exemplo).
Ainda nessa terceira parte, EYMERICH retoma, com detalhes, o assunto dos interrogatórios e da tortura, dispondo sobre as circunstâncias aplicáveis, o que dá uma dimensão da importância que tais métodos de investigação criminal tinham para o exercício da inquisição. Na falta de jurisprudência a respeito, o manual apresenta sete regras para determinar em que situações podia-se proceder à tortura, sendo uma delas quando o acusado vacilasse nas respostas. Recomendava a tortura também para o suspeito contra o qual só houvesse uma testemunha. Na presunção de culpa, uma única acusação era o suficiente.
A respeito da tortura, PENA adverte para o fato de que sua finalidade é menos de provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala. Assim, sendo possível provar o fato de outra maneira, sem torturar, não se deveria torturar. Ironicamente, qualificava como sanguinários juízes inquisidores que, em sua época, recorriam facilmente à tortura, sem tentar, através de outros meios, completar a investigação. Segundo ele, só se deveria recorrer à tortura nos delitos ocultos, mais difíceis de comprovar, não nos delitos manifestos. O inquisidor deveria ter sempre em mente que o acusado deve ser torturado de tal forma que saia saudável para ser libertado ou para ser executado. Tal preocupação, no entanto, não se fundava em quaisquer razões humanitárias, era apenas porque poderia obter a condenação de forma mais célere, sem o uso da tortura.
Além disso, PENA é inflexível ao dizer que, para o terrível crime de heresia não existe privilégio de exceção: todos podiam ser torturados. O motivo? O interesse da fé. E vai além, dizendo que esse rigor não deveria ser causa de espanto. Se para o crime de lesa-majestade não existia isenção nem privilégio, por que haveria para o crime de lesa-majestade divina, lembra ele. A despeito dessa afirmação, admitia exceções à regra geral, baseadas na idade e no estado dos acusados: não se submetiam à tortura crianças, velhos e mulheres grávidas. Contudo, as crianças com idade inferior a quatorze anos podiam, em sua opinião ser aterrorizadas e chicoteadas, assim como os velhos. Ainda defendia que padres e religiosos não fossem torturados por leigos, mas por seus pares.
Relativamente às testemunhas, os autores concordam com a faculdade conferida ao inquisidor para mandar torturá-las com o fim de obrigá-las a contar a verdade ou, para puni-las, por prestarem um falso testemunho. Qualquer desses casos (não testemunhar, ou prestar um falso testemunho), equivalia a colocar obstáculos ao exercício do trabalho da Inquisição. PENA apenas ressalvou que os filhos e descendentes dos culpados de falso testemunho não seriam infamados, como acontecia aos descendentes dos condenados pelo delito da heresia (considerada mais grave que o falso testemunho).
No procedimento inquisitorial, ninguém escapava da obrigação de testemunhar sob juramento. Nada de privilégios ou exceções a este princípio. Se havia uma atenuante era para quem não denunciasse o cônjuge, um membro da família ou um amigo, que em função disso, não seria perseguido como benfeitor da heresia, mas como contumaz, por desobediência à ordem inquisitorial. Fora este tipo de circunstância, não testemunhar correspondia a declarar-se inimigo da fé da Igreja.
Os depoimentos deviam ser claros, límpidos, sem ambigüidades, pois, em matéria de fé, o acréscimo ou a omissão de uma palavra numa frase poderia ser suficiente para modificar o sentido de uma declaração, transformando um dogma em heresia, e vice-versa. Em caso de dúvida, considerava-se a interpretação da declaração (se fosse escrita) que inocentava o acusado. Todavia, se a frase ambígua fosse proveniente de um inglês ou um alemão, habitantes de países onde grassava a heresia, somente se aceitava a interpretação acusatória.
Ainda a respeito dos depoimentos, o autor esclarece que só se deveria recusar o testemunho de um inimigo mortal do acusado. Essa era a única exceção ao princípio geral sobre a validade universal dos testemunhos. Havia ainda a recusa do testemunho de um herege em favor de outro. Só era aceitável o testemunho desfavorável, nesse caso. Da mesma forma, só eram aceitos os depoimentos desfavoráveis, quando prestados pela mulher, filhos ou parentes do acusado de heresia. PENA discorda da opinião de EYMERICH, que negava a possibilidade de um herege testemunhar contra ou a favor de um fiel. Assim desconsidera tal opinião, admitindo sua validade somente para negar a importância de um testemunho de defesa vindo de um herege.
As orientações dos autores sobre a prática inquisitorial só vêm corroborar a conclusão de que o suspeito ou acusado de heresia era, de plano, visto como culpado e que sua condenação, ao cabo do processo, era quase uma certeza. Dentro da lógica dos inquisidores, não havia possibilidade de defender a verdade da fé, senão pela intolerância e a repressão. Nesse contexto, as parcas garantias processuais, como a possibilidade de apelação ao papa, e de ter um defensor eram apenas meios de conferir legitimidade ao processo inquisitorial. E nem se poderia concluir de forma diferente, já que o papel do advogado era "fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido". Além disso, se havia previsão de ter cinco testemunhas presentes aos interrogatórios de delatores e testemunhas, era para afastar as suspeitas de irregularidade, em relação ao processo.
Por fim, a ampla atividade persecutória da inquisição, não obstante seu propósito manifesto de defender a verdade da fé católica, pode ser vista como uma forma de a igreja prevalecer sobre o poder secular: preservava-se, assim, a hierarquia clerical e a autoridade do papa.