Caso Escher e outros vs. Brasil e sua importância para o processo penal brasileiro
Diogo Malan
Advogado
Professor Adjunto de Processo Penal da FND/UFRJ
Doutor em Processo Penal pela USP
Associado e Representante Regional do IBRASPP do Rio de Janeiro
"Always the eyes watching you and the voice enveloping you. Asleep or awake, working or eating, indoors or out of doors, in the bath or in bed – no escape. Nothing was your own except the few cubic centimeters inside your skull."
GEORGE ORWELL, Nineteen eighty-four
No último dia 06.07.2009 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ao julgar o caso Escher e outros vs. Brasil, condenou o Estado brasileiro por violações aos direitos fundamentais à vida privada, à honra e à reputação, consagrados no artigo 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). 1
Em apertada síntese, os fatos que ensejaram tal condenação foram interceptações telefônicas autorizadas pelo Juízo da Comarca de Loanda/PR a pedido da Polícia Militar paranaense em 1999, cujos alvos eram integrantes de organizações sociais supostamente ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
O teor das comunicações telefônicas interceptadas foi posteriormente divulgado pela Secretaria de Segurança Pública do Paraná durante entrevista coletiva e por diversos veículos da mídia.
A CIDH entendeu caracterizada a violação ao sobredito dispositivo da CADH em decorrência dos seguintes fatos: (i) os alvos da interceptação telefônica não estavam sendo submetidos a procedimento investigativo formal; (ii) a interceptação durou quarenta e nove dias, sem comprovação de prorrogação judicialmente autorizada ao final da primeira quinzena; (iii) a decisão judicial autorizadora da medida extrema não estava devidamente fundamentada; (iv) o Ministério Público não foi notificado da decretação da medida em apreço; (v) o sigilo sobre o conteúdo das comunicações interceptadas, que estavam sob custódia do Estado, foi violado.
Não é nosso objetivo emitir juízo de valor sobre as questões fáticas debatidas nessa sentença da CIDH, e sim apontar a importância de algumas das premissas jurídicas fixadas no bojo desse ato decisório para o processo penal brasileiro.
Com efeito, ao condenar o Estado Brasileiro a Corte de São José da Costa Rica reafirmou a importância e a normatividade do direito fundamental ao sigilo de comunicações telefônicas.
A CIDH incluiu expressamente no âmbito de proteção do direito fundamental a não sofrer ingerências arbitrárias ou abusivas na vida privada por parte do Estado ou de particulares (artigo 11 da CADH) a inviolabilidade das comunicações telefônicas (§§ 113 e 114). 2
Não obstante, a sentença reafirma que a intangibilidade das conversas telefônicas não caracteriza direito fundamental absoluto, podendo ele sofrer restrições desde que estas não tenham cariz abusivo ou arbitrário.
Para legitimar tais restrições, é necessária a presença de três requisitos cumulativos: (i) legalidade; (ii) legitimidade dos fins; (iii) idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (§§ 116 e 129).
Quanto ao primeiro aspecto, a Corte entende que a medida restritiva deve ter seus pressupostos, circunstâncias autorizadoras e procedimento probatório definidos, de forma clara e detalhada, na lei – em sentido formal e material (§§ 130 a 132).
Mais adiante, a CIDH reafirma que a decisão judicial autorizadora deve estar fundamentada de maneira substancial, através de argumentação racional que considere as alegações das partes processuais e os elementos informativos carreados aos autos, além de demonstrar a ponderação de todos os requisitos legais da medida (§ 139).
Ademais disso, a Corte entendeu ser dever do Estado assegurar o sigilo sobre o teor de comunicações telefônicas interceptadas durante investigação criminal, para fins de: (i) proteção da vida privada dos alvos da interceptação; (ii) resguardo da eficácia da própria apuração dos fatos; (iii) viabilização de "adequada administração da Justiça". Assim, o sobredito teor deve ser acessível a número reduzido de servidores públicos (§ 162).
Ante o exposto, é lícito concluir que a sentença prolatada pela CIDH no caso Escher e outros vs. Brasil representa importante precedente jurisprudencial no sentido de reafirmar a importância, âmbito de proteção e densa estrutura normativa do direito fundamental à inviolabilidade de comunicações telefônicas 3 consagrado no artigo 11 da CADH.
Nada obstante, no sistema de administração da Justiça criminal brasileira infelizmente ainda persiste caldo cultural de base ideológica autoritária, portanto refratário à assimilação dos valores democráticos hauridos do Pacto de São José da Costa Rica e da jurisprudência da CIDH, inclusive a força normativa do direito fundamental à inviolabilidade de comunicações telefônicas. 4
Consequência direta desse fenômeno social é certo grau de banalização do emprego da medida cautelar de interceptação de comunicações telefônicas verificada na prática forense contemporânea. 5
Com efeito, malgrado se trate de meio de busca de prova de cariz excepcional, cuja finalidade é permitir a descoberta e localização de provas materiais, o que se vê na prática é sua vulgarização como instrumento investigativo de prima ratio, mesmo havendo outras formas possíveis de apuração dos fatos.
O que é pior: não são raras no País as interceptações telefônicas autorizadas com base somente em notícia-crime anônima ou sem a imprescindível instauração formal de procedimento investigativo previsto em lei (v.g. procedimentos administrativos criminais amorfos; medidas cautelares atípicas etc.) ou até mesmo nos autos de procedimentos administrativos ou processos judiciais de natureza extrapenal.
Tampouco são incomuns decisões judiciais autorizadoras da medida em apreço ou sua prorrogação que possuem fundamentação aparente, sequer ponderando casuisticamente os requisitos constitucionais (artigo 5º, XII, LIII e LIV da Lei Magna) e legais (artigos 1º e 2º da Lei nº. 9.296/96) da medida extrema, dentre os quais avulta a importância da proporcionalidade. 6
No plano midiático, também se verifica certo grau de fetichização – consciente ou inconsciente – do poder punitivo, hoje a referência hegemônica do discurso dos meios de comunicação de massa. 7 Reflexo disso é a sedimentação de cultura favorecedora da permissividade e impunidade quanto ao crime (artigo 10 da Lei nº. 9.296/96) de divulgação do conteúdo sigiloso de conversas telefônicas interceptadas que estão sob a guarda do Estado, inclusive para fins simbólicos ou midiáticos (v.g. propaganda institucional de órgãos públicos).
De fato, aparenta prevalecer no sistema de administração de Justiça criminal a
concepção de que o direito ao sigilo de comunicações telefônicas supostamente seria
subterfúgio para acobertar atos criminosos, a exigir pronto sacrifício no altar da defesa social
contra a criminalidade. Tal grave deformação cultural impede a percepção da importância
desse direito como instrumento de proteção da cidadania contra o arbítrio, a onipotência e o
exercício abusivo do poder estatal.
A resistência a esse discurso, na academia e no foro, é imprescindível para a construção de um Processo Penal democratizado e respeitoso dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro na tutela dos Direitos Humanos. Oxalá a sentença prolatada no caso Escher e outros vs. Brasil sirva de alerta para a necessidade de se levar a sério o direito fundamental ao sigilo de comunicações telefônicas neste País. 8
Notas
1 CIDH, Caso Escher e outros vs. Brasil, sentença de mérito de 06.07.2009. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_esp1.pdf>. Acesso em 08.07.2012.
2 No mesmo sentido: CIDH, Caso Tristán Donoso vs. Panamá, sentença de mérito de 27.01.2009 (§§ 55 a 57). Disponível em: <http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_ing.pdf>. Acesso em 08.07.2012.
3 URBANO CASTRILLO, Eduardo de. El derecho al secreto de las comunicaciones. Madrid: La Ley, 2011.
4 Sobre o conceito de autoritarismo na acepção de ideologia política, ver: FRAGOSO, Christiano. Autoritarismo e sistema penal, p. 86-92. Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Direito da UERJ (2011). Sobre a formação cultural inquisitiva dos protagonistas do sistema penal brasileiro, ver: CARVALHO, Salo. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo, p. 73 e ss. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
5 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A farra dos grampos telefônicos no Brasil, In: Gazeta Mercantil, Caderno A, p. 13, 18.08.2008.
6 GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990.
7 BATISTA, Nilo. A criminalização da advocacia, In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, n. 20, p. 85-91, out./dez. 2005.
8 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.
BIBLIOGRAFIA:
BATISTA, Nilo. A criminalização da advocacia, In: Revista de Estudos Criminais, Porto
Alegre, n. 20, p. 85-91, out./dez. 2005.
CARVALHO, Salo. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010.
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A farra dos grampos telefônicos no Brasil, In: Gazeta
Mercantil, Caderno A, p. 13, 18.08.2008.
CIDH, Caso Escher e outros vs. Brasil, sentença de mérito de 06.07.2009. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_esp1.pdf>. Acesso em
08.07.2012.
CIDH, Caso Tristán Donoso vs. Panamá, sentença de mérito de 27.01.2009. Disponível em:
<http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_ing.pdf>. Acesso em 08.07.2012.
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.
FRAGOSO, Christiano. Autoritarismo e sistema penal. Tese de Doutorado apresentada à
Faculdade de Direito da UERJ (2011).
GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamentales
en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990.
URBANO CASTRILLO, Eduardo de. El derecho al secreto de las comunicaciones. Madrid:
La Ley, 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário