Universidade, a fábrica dos textosbaseados no plágio universal. Artigo de Peter Sloterdijk
Uma hiperprodução destinada a não ser lida. O filósofo alemão Peter Sloterdijk explica a peculiaridade desse "desprezo à propriedade intelectual" nasacademias. Com um convite: protejamos as citações, pois é graças às aspas que acultura avança.
O artigo foi publicado no jornal La Repubblica,12-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Não é trair um segredo, mas sim uma simples constatação, afirmar que auniversidade moderna, de uma forma generalizada e há muito tempo, estáenfrentando um problema sério – para usar um termo prudente. O escândalode Bayreuth (o ex-ministro da Defesa alemão, Karl-Theodor zu Guttenberg, acusado de plágio nasua tese de doutorado, em fevereiro de 2011) fez surgir apenas um minúsculosegmento de uma confusão que ninguém, ou quase ninguém, pode avaliar a dimensãohistórica e sistêmica de maneira realista. (...)
Seria preciso ser muito ingênuo para supor que os estudantes e os professoresde hoje deixam de ser, ao cruzar o limiar de uma universidade, filhos da suaépoca. O espaço universitário não pode simplesmente se tornar imune disso.(...)
Para compreender a diferença específica entre o plágio universitário e todos osoutros casos de desprezo à "propriedade intelectual", é preciso levarem conta as especificidades inimitáveis dos procedimentos acadêmicos. Visto defora, o mundo universitário provoca o efeito de um biótopo especializado naprodução de "textos" na maioria das vezes bizarros e totalmenteestranhos ao popular. Vão das apresentações em seminários e das tarefassemestrais às teses e às dissertações de habilitação, passando pelas teses dediploma ou de especialização e pelos escritos dos exames, sem falar dasavaliações, dos projetos de pesquisa, dos memorandos, dos projetos de estruturae de desenvolvimento etc.: tantos vegetais textuais que florescem exclusivamenteno microclima da academia – comparáveis àquelas plantas rasteiras dos Altos Alpes quesobrevivem em altitudes em que as árvores não crescem mais – e que,geralmente, não suportam ser transplantadas para as planícies livres e planasda vida editorial.
O plágio universitário se desenvolve consequentemente, na maioria dos casos, emcondições em que os motivos que intervêm frequentemente no não respeito dapropriedade intelectual – o fato muitas vezes evocado de se embelecer comas penas dos outros – não podem desempenhar papel algum. Enquanto em umterreno livre se considera que as penas dos outros melhoram a atratividade dequem as porta e aumentam a sua "fitness erótica", para empregar ojargão dos biólogos, as penas dos outros, no meio universitário, servem apenaspara se camuflar e para se imergir no ordinário. Elas ajudam o portador da penaa passar despercebido pelo fluxo regular das massas de textos.
O filósofo Michel Foucault resumiuessa situação ainda no início dos anos 1970 introduzindo a palavra"discurso" na autodescrição das produções textuais universitárias. Oque ele chama de "discurso" nada mais é do que o texto sem autor, odiscurso especializado como instituição. Essa interpretação das rotinasdiscursivas universitárias e, mais em geral, institucionais, nos abre o caminhonão tibetano rumo ao princípio da roda de oração. Quem não quer falar dediscursos faria melhor se não dissesse nada a propósito dos plágios.
A dissolução do plágio no discurso não é suficiente para compreenderexaustivamente a singularidade do plágio universitário. Nesse caso particular,intervém como suplemento um fator totalmente idiossincrático, para cujacompreensão o melhor seria recorrer à pesquisa literária. Com o seu livro O ato da leitura. Uma teoria doefeito estético (Editora34, 1996), escrito em 1972, Wolfgang Iser, oeminente representante de uma Escola de Constança que se tornou histórica, senão revolucionou a sua disciplina e as ciências humanas em geral, ao menos asfez avançar muito, ao demonstrar que é possível fazer aparecer em todo textouma cumplicidade íntima entre o autor e o leitor hipotético – um vínculoativado pela leitura.
Ler significa, por consequência, despertar para a vida estruturas de apeloinerentes ao texto e se entregar ao jogo da interpelação, da interpretaçãoantecipada, do engano, da recusa e da recuperação. Todo texto elaboradoconstitui uma entidade composta por sinais que guiam a recepção, que o leitorpõe em cena de um modo ao mesmo tempo voluntário e involuntário, na medida emque o lê realmente.
Na perspectiva da situação universitária, as análises sutis dos estetas da recepçãoprovocam o efeito de reminiscências de uma antiquíssima Idade do Ouro daleitura, em que todo texto ainda era quase um billet doux, uma carta de amor. Nenhum universitárioirá negar: é hora de completar a teoria do leitor implícito com a do não leitorimplícito. Devemos nos dar conta da situação partindo da ideia de que entre 98%e 99% de todas as produções de textos que saem da universidade são redigidos naexpectativa, justificada ou injustificada, de uma não leitura parcial ou totaldesses textos. Seria ilusório acreditar que isso poderia não ter um efeitosobre a ética do autor.
Para os membros de uma cultura que, em todas as coisas, lhes ensina a seguir ea não seguir a regra, deriva daí uma consequência obrigatória, a necessidade dedar ao não leitor o que lhe cabe. Paradoxalmente, dirigimo-nos ao não leitorimplícito dirigindo a ele gestos de rejeição, e esse não leitor é inerente aotexto, já que é ele que, de todos os modos, não irá vê-lo.
Quem escreve sem esperar uma recepção também tem, a seu despeito, a tendênciade integrar na sua produção passagens que não fazem parte dela e estãopredestinadas a alimentar a variante acadêmica da não leitura, na medida em queforam verificadas antecipadamente por leituras que, talvez, já podem ter sidofeitas em outros lugares. O reino das sombras da universidade gera, assim, ummundo textual de segunda ordem, no qual secundigênitos realmente não lidosmantêm no circuito primogênitos virtualmente não lidos.
Nesse sistema, a leitura real inesperada leva à catástrofe. Aqui, ointeressante é o fato de que o que chamamos de leitura real não pode ocorrer,tendo-se em conta as monstruosas avalanches que constituem as produçõesuniversitárias escritas. Hoje, apenas as máquinas de leitura digital e osprogramas de pesquisa especializada são capazes de assumir o papel de delegadosdo leitor autêntico e de entrar em diálogo ou em não diálogo com um texto. Oleitor humano – chamemo-lo de professor – é, ao invés, deficiente.É precisamente assim, enquanto homem da universidade, que o especialista écondenado há muito tempo a ser mais um não leitor do que um leitor.
A consequência prática de tudo isso só pode ser a redução das instigaçõessistêmicas a produzir um texto no modo da impostura. A melhor maneira parachegar a isso é lembrar com insistência, aos autores praticamente não lidos dostextos hoje e amanhã imanentes à universidade, a existência daqueles guardiõesdigitais dos bons costumes que, praticando a leitura automática, revelam adiferença entre plágios e citações.
Cometer-se-ia um erro se fossem legalizadas as citações não especificadas, comoexigem certos defensores do romanticismo da pirataria universitária. A culturada citação é o último fronte no qual a universidade defende a sua própriaidentidade. Ela pode ser desafiada por uma nova onda de subjetividades deimpostores que fazem uso do digital, da ironia e do espírito da pirataria; aosnovos jogadores, que fazem as suas zombarias jogando sobre a regra do mínimo detrabalho sério, é preciso fazer com que compreendam onde se situa o limite. Acultura avança sobre aquelas suas pequenas pernas que são as aspas. As aspassão a cortesia do pirata.
Deveríamos pôr na entrada de todas as faculdades o cartaz Cave lectorem! – para os não-latinistas:"Cuidado com o leitor". Com esse aviso, talvez poderia ter início oque os bem intencionados chamam de trabalho para uma nova ética docomportamento científico.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511508-universidade-a-fabrica-dos-textos-baseados-no-plagio-universal-artigo-de-peter-sloterdijk#.UAYXTLtDNB4.twitter
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21/07/2012
Universidade, a fábrica dos textosbaseados no plágio universal. Artigo de Peter Sloterdijk
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