Autos n° 023.09.039518-5
Ação: Ação Penal - Tóxicos/Especial
Autor:
Ministério Público EstadualDenunciado:
K P A
Vistos, etc.
1. Trato de ação penal proposta pelo Ministério Público em face de K P A, imputando a este a seguinte conduta: "Na manhã do dia 22 de maio de 2009, por volta das 10h30min, no conhecido Morro da N. D., nesta Comarca, após o recebimento de denúncia anônima dando conta que o denunciado K. P. A, conhecido no meio policial pela prática contínua do crime de tráfico de entorpecentes, teria recebido grande quantidade de drogas e que as teria escondido num matagal existente atrás de sua casa, policiais do serviço de inteligência da Polícia Militar dirigiram-se atá a sua residência, localizada na Rua General. n.XX, Morro da N. D., centro desta Capital, para averiguações das informações. Chegando ao local, franqueada a entrada dos policiais, esses lograram encontrar inicialmente, dentro da residência, 01 cigarro artesanal (0,8 gramas) e 02 porções de maconha (54,6 gramas). Ato contínuo, realizada uma vistoria no matagal existente atrás da residência de K, lograram os policiais apreender duas mochilas, uma contendo 08 porções grandes de maconha (9.751,6 gramas) e outra contendo 07 porções menores de maconha (742,3 gramas), todas embaladas em plástico incolor e em fita adesiva bege, as quais o denunciado mantinha em depósito para fins de comercialização, fornecimento e distribuição aos usuários e outros traficantes do Morro da N D, juntamente com três facas e um rolo de fita adesiva bege, tudo sem autorização legal e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. As substâncias apreendidas foram submetidas ao exame de constatação, verificando se tratar ao todo cerca de 10,550Kg (dez quilos e quinhentos e cinquenta gramas) da erva Cannabis sativa Lineu, popularmente conhecida como maconha, que tem o seu comércio e uso proscritos em todo o Território Nacional, nos termos da Portaria n. 344/98, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, atualizada pela RDC n. 7/2009." Em assim agindo, estaria incurso nas sanções do art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06.
Certificados os registros (f. 46-52). Notificado preliminarmente (f.71), apresentou defesa e arrolou testemunhas (f. 57-58). A denúncia foi recebida (f. 65). Durante a instrução foi colhida prova testemunha e interrogado o acusado (f. 76-85). Atualizados os antecedentes (f. 86-93). Em alegações finais o representante do Ministério Público requereu a condenação do acusado (f. 95-101). A defesa, por seu turno, em preliminar, requereu fosse analisada laboratorialmente se há diferença entre a droga apreendida na casa do acusado e a encontrada pela polícia. Asseverou que o acusado usa droga e que o crime é o do art. 28 da Lei n. 11.343/06. Impugnou a maneira como a ação policial foi realizada, bem assim que foi forjada a entrada com a contaminação do amealhado depois. Trabalhou as declarações dos policiais e requereu a absolvição do acusado.
É o breve relatório.
1. A decisão no processo penal não é ato de conhecimento, mas sim de compreensão, em que os sujeitos incidentes, no evento semântico denominado sentença, realizam uma fusão de horizontes, para usar a gramática de Gadamer. Neste contexto, diante da apresentação de uma hipótese fático-descritiva pela acusação, procede-se a um debate em contraditório, entre partes, nos quais os ônus são compartilhados. O resultado da produção válida de significantes será composta em uma decisão judicial, a qual não se assemelha, nem de longe, ao mito ultrapassado da verdade real. A verdade real é empulhação ideológica que serve para "acalmar" a consciência de acusadores e julgadores. O que existe é a produção de significantes e uma decisão no tempo e espaço. As únicas garantias existentes são: a) um processo como procedimento em contraditório; b) processo acusatório, entre partes, sem atividade probatória do juiz, com as garantias constitucionais (presunção de inocência, etc.; c) decisão fundamentada por parte dos órgãos julgadores. A legitimidade desta decisão decorre, também e fundamentalmente, da sua concordância com a Constituição (MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006).
2. Destaque-se, por básico, que a pseudo-prova produzida no 'Inquérito Policial' somente pode servir para análise da condição da ação (GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Justa Causa no Processo Penal: Conceito e Natureza Jurídica. In: BONATO, Gilson (Org.). Garantias Constitucionais e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 199-200), ou seja, dos elementos necessários para o juízo de admissibilidade positivo da ação penal. No mais, não há qualquer possibilidade de valoração democrática, no Processo Penal constitucionalizado, por ser ela desprovida das garantias processuais. A recente reforma do CPP, dando nova redação ao art. 155, ao indicar a possibilidade de seu uso é flagrantemente inconstitucional (MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um Processo Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 83-97; BARROS, Flaviane de Magalhães. (RE)Forma do Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 23-27; GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) Do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008)23-36). É que quando de sua produção ainda não existia acusação formalizada, despreza o defensor – além de alguns ainda negarem a publicidade dos atos, embora sumulada a situação – e, ademais, viola a garantia de que seja produzida em face de juiz imparcial, sob contraditório (PIZA, Evandro. Dançando no escuro: apontamentos sobre a obra de Alessandro Baratta, o sistema penal e a justiça. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (Org.). Verso e reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 106-108.). Decorrência direta do princípio da publicidade é a conclusão de somente as provas produzidas (significantes) em face do contraditório é que podem ser levadas em consideração nos debates e também na decisão judicial. Os elementos indiciários não devem adentrar validamente no debate porque, por evidente, não havia acusação quando colhida, violando, dentre outros, o princípio da publicidade. Logo, as declarações prestadas naquele momento são – para se utilizar o estatuto probatório italiano, perfeitamente aplicável ao brasileiro –, absolutamente inutilizáveis, conforme lição de Paolo Tonini (A prova no processo penal italiano. Trad. Alexandra Martins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 76): "O termo inutilizabilidade descreve dois aspectos do mesmo fenômeno. Por um lado, indica o 'vício' que pode conter um ato ou um documento; por outro lado, ilustra o 'regime jurídico' ao qual o ato viciado é submetido, ou seja, a não possibilidade de ser utilizado como fundamento de uma decisão do juiz. A inutilizabilidade é um tipo de invalidade que tem a característica de atingir não o ato em si mas o seu 'valor probatório'. O ato pode ser válido do ponto de vista formal (por exemplo, não é eivado de nulidade), mas é atingido em seu aspecto substancial, pois a inutilizabilidade o impede de produzir o seu efeito principal, qual seja, servir de fundamento para a decisão do juiz." No Processo Penal democrático, o conteúdo do Inquérito Policial está maculado pela ausência de contraditório, sendo utilizável exclusivamente para análise das questões prévias (condições da ação e pressupostos processuais aplicáveis – MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A natureza cautelar da decisão de arquivamento do Inquérito Policial. In: Revista de Processo, São Paulo, n. 70, p. 49-58, 1993.). Enfim, é absolutamente antidemocrática a utilização dos elementos do Inquérito Policial para efeito de condenar o acusado. Claro que se for consultar Damásio, Mirabete e Capez, todos dirão da validade, pois ainda não fizeram o giro democrático que a Constituição de 1988 preconiza!
3. O pleito preliminar da defesa no sentido de que seja periciada a droga apreendida é de ser rejeitado por ter sido realizado a destempo, ou seja, não pode a defesa esperar o final da instrução para, em alegações finais, reabrir a discussão. Sua tese deveria ser ventilada na audiência de instrução e julgamento. Sabe-se, ademais, que as provas acompanham uma lógica e, no caso, já se passou o momento do requerimento.
4. A Materialidade consta dos autos (f. 14, 16-17 e 62-63), mas a apreensão foi inconstitucional. Explico.
5. A função do Poder Judiciário é o de garantir Direitos Fundamentais do sujeito em face do Estado, a saber, as intervenções na esfera privada somente se justificam se houver uma relevância coletiva e, no caso de investigações criminais, os fundamentos precisam ser firmes. Por isto, para se investigar alguém, numa democracia, não se pode iniciar com o "denuncismo anônimo" contemporâneo em que a polícia recebe a denúncia anônima e se dá por satisfeita. Tanto assim que agora se fomenta programas "covardes" como o do "Informante Cidadão". É preciso que as investigações aconteçam no limite da legalidade. O processo da inquisição acontecia com testemunhas sem rosto, sem face, sem nome, num denuncismo sem limites. Para isto a Constituição da República em vigor há mais de VINTE ANOS, estabeleceu claramente no art. 5º, IV: "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato." Paulo Rangel (A Linguagem pelo Avesso: a Denúncia Anônima como causa (i)legitimadora da Instauração de Investigação Criminal: Inconstitucionalidade e Irracionalidade. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (orgs). Processo Penal e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 477-494), promotor de Justiça no Rio de Janeiro, sem aceitar investigar a qualquer preço, pontua: "Pensamos que autoridade que determinar a instauração do procedimento criminal ou administrativo, tendo como base a denúncia anônima, ficaria sujeita, em tese, à responsabilidade criminal, nos exatos limites do art. 339 do CP. O denunciante anônimo se esconde atrás das vestes da impunidade, pois, se sua denúncia for falsa, ele não será responsabilizado. (...) O 'denunciado' tem o direito de demonstrar os motivos pelos quais quem o denuncia o faz: vingança, perseguição política, inveja, despeito, falta do que fazer etc. Sendo anônima a denúncia, não há como reagir contra o denunciante. Ele fica refém." Tourinho Filho (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.Processo Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 218) sustenta: "se o nosso CP erigiu à categoria de crime a conduta de todo aquele que dá causa à instauração de investigação policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, como poderiam os 'denunciados' chamar à responsabilidade o autor da delatio criminis, se esta pudesse ser anônima? A vingar entendimento diverso, será muito cômodo para os salteadores da honra alheia vomitarem, na calada da noite, à porta das Delegacias, seus informes pérfidos e ignominiosos, de maneira atrevida, seguros, absolutamente seguros da impunidade. Se se admitisse a delatio anônima, à semelhança do que ocorria em Veneza, ao tempo da inquisitio extraordinem, quando se permitia ao povo jogasse nas famosas 'Bocas dos Leões' suas denúncias anônimas, seus escritos apócrifos, a sociedade viveria em constante sobressalto, uma vez que qualquer do povo poderia sofrer o vexame de uma injusta, absurda e inverídica delação, por mero capricho, ódio, vingança ou qualquer outro sentimento subalterno." Decidiu-se no âmbito do Superior Tribunal de Justiça: "INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. DENÚNCIA ANÔNIMA.: Trata-se de habeas corpus em que se busca o trancamento de inquérito policial instaurado contra o paciente, visto que tal procedimento iniciou-se com a interceptação telefônica fundada exclusivamente em denúncia anônima. A Turma, por maioria, entendeu que, embora apta para justificar a instauração do inquérito policial, a denúncia anônima não é suficiente a ensejar a quebra de sigilo telefônico (art. 2º, I, da Lei n. 9.296/1996). A delação apócrifa não constitui elemento de prova sobre a autoria delitiva, ainda que indiciária; é mera notícia vinda de pessoa sem nenhum compromisso com a veracidade do conteúdo de suas informações, haja vista que a falta de identificação inviabiliza, inclusive, a sua responsabilização pela prática de denunciação caluniosa (art. 339 do CP). Assim, as gravações levadas a efeito contra o paciente, por terem sido produzidas mediante interceptação telefônica autorizada em desconformidade com os requisitos legais, bem como todas as demais provas delas decorrentes, abrangidas em razão da teoria dos frutos da árvore envenenada, adotada pelo STF, são ilícitas e, conforme o disposto no art. 5º, LVI, da CF/1988, inadmissíveis para embasar eventual juízo de condenação. Contudo, entendeu-se que é temerário fulminar o inquérito policial tão-somente em virtude da ilicitude da primeira diligência realizada. Isso porque, no transcurso do inquérito, é possível que tenha ocorrido a coleta de alguma prova nova e independente levada por pessoa estranha, ou seja, sem conhecimento do teor das escutas telefônicas. Realizar a correlação das provas posteriormente produzidas com aquela que constitui a raiz viciada implica dilação probatória inviável em sede de habeas corpus e a autoridade policial pode recomeçar as averiguações por outra linha de investigação, independente da que motivou a instauração do inquérito, ou seja, a denúncia anônima, tendo em vista que o procedimento ainda não foi encerrado, quer por indiciamento quer por arquivamento. Com esses fundamentos, concedeu-se parcialmente a ordem de habeas corpus. Precedentes citados do STF: Pet-AgR 2.805-DF, DJ 13/11/2002; RHC 90.376-RJ, DJ 18/05/2007; do STJ: HC 44.649-SP, DJ 8/10/2007; HC 38.093-AM, DJ 17/12/2004, e HC 67.433-RJ, DJ 7/5/2007." (HC 64.096-PR, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 27/5/2008).
6. Assim é que a denúncia anônima não pode ser tida, a priori, como verdade, nem justifica qualquer medida direta pela autoridade policial que não a investigação preliminar e, se for o caso, requerer-se ao Juízo competente, o respectivo mandado de busca e apreensão, apresentando-se as investigações preliminares. Claro que se verificar alguma das hipóteses do art. 302, I ou II, do CPP, estará autorizada a agir. Mas esta ação precisa estar autorizada anteriormente, ou seja, o flagrante não pode ser pressuposto, mas deve estar posto, a saber, não se pode achar que há droga e se adentrar. É preciso que a droga tenha sido vista anteriormente ou sua entrega ou mesmo a venda, situação diversa da presente.
7. Com efeito, o policial J, (f. 79-80) afirma que recebeu uma ligação anônima em seu celular, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegado droga no morro, na casa do acusado, indicando-se, ademais, o local onde estaria escondida e, como já conheciam o acusado, foram até a sua casa, acompanhado dos policiais Alessandro e Luciano. Ainda que haja controvérsia sobre quem teria batido na porta da casa do acusado, já que J. diz que acha que foi A., enquanto este diz que foi L., este último que confirmou ter batido na porta da casa do acusado, em nenhum momento havia evidências de tráfico que autorizasse a entrada na residência. Assim é que a atuação policial foi abusiva e inconstitucional, por violação do domicílio do acusado. Embora seja uma prática rotineira a violação da casa de pessoas pobres, porque a polícia não entra assim em moradores da Beira-Mar, não se pode continuar tolerando a arbitrariedade. Desde há muito se sabe – e os policiais não podem desconhecer a lei – que não se pode entrar na casa de ninguém – pobre ou rico – sem mandado judicial, salvo na hipótese de flagrante próprio, o qual não existe com denúncia anônima. Nem se diga que depois se verificou o flagrante porque quando ele se deu já havia contaminação pela entrada inconstitucional no domicílio. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (Processo Penal e Constituição – Princípios Constitucionais do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 92) aponta: "Em conclusão, só é possível o ingresso em domicílio alheio nas circunstâncias seguintes: à noite ou de dia, sem mandado judicial, em caso de flagrante próprio (CPP, art. 302, I e II), desastre ou prestação de socorro; e durante o dia, com mandado judicial, em todas as outras hipóteses de flagrante (CPP, art. 302, III e IV). Reconheço que a falta de estrutura do sistema investigatório brasileiro, tornando inviável o contato próximo e a tempo com a autoridade judiciária, possa fazer com que o entendimento exposto se transforme em mais um entrave burocrático à persecução penal. Não é essa a intenção, mas não se pode aceitar que a doutrina fique à mercê da boa-vontade dos governantes para dotarem a polícia dos recursos técnicos e humanos necessários para o desempenho da função." Assim é que não se pode tolerar violações de Direitos Fundamentais em nome do resultado, pois pelo mesmo argumento seria legítima a "tortura", a qual, no fundo não é tão diferente da ação iniciada exclusivamente por "denúncia anônima", à margem da legalidade e com franca violação dos Direitos Fundamentais. Perceba-se que a coisa é tão grave que a droga foi encontrada, por certo, conforme a denúncia, fora da casa do acusado, ainda que na sua propriedade, mas em lugar aberto, sem cercas, no meio do mato. Qualquer um agora pode plantar droga em quem quiser e depois ligar para polícia denunciando anonimamente o depósito de drogas no terreno e a polícia, sem mais, vai até o local, sem mandado, e prende o proprietário. Não dá para tolerar isto!
8. Claro que o argumento seguinte é: mas o proprietário autorizou a entrada! Será que alguém acredita mesmo que o acusado autorizou? Não há verossimilhança, ainda mais com a constante acolhimento jurisdicional desta prática, mormente em se tratando de crime permanente, como de tráfico. Até porque o acusado em seu interrogatório negou a autorização, não existe nada escrito, nem testemunha. A prevalecer esta lógica, a garantia do cidadão resta fenecida. Ana Maria Campos Tôrres (A busca e apreensão e o devido processo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 153-154) sustenta: "Ora, sabendo que alguém tem em depósito drogas, vende droga, ou outras situações de permanência é que pode, conforme a Constituição, penetrar em domicílio sem o consentimento do morador. Sabe, logo tem indícios que permitam solicitar ao juiz o mandado, imprescindível contra o abuso. Não basta a mera desconfiança, pois corre o risco de responder por descumprimento da lei, logo, impossível considerar válida a apreensão nesses casos, sem ordem judicial. Seria, como o é de fato, fazer vista grossa aos abusos policiais (..) Como entender urgente o que se protrai no tempo? É possível, graças à presença diuturna do judiciário guardião da lei, requerer e ser atendido em pouco tempo, o direito constitucionalmente previsto de entrar em domicílio. A facilidade do arguir-se urgência é forma espúria de desconhecer direitos, é subterfúgio para o exercício de força, é descumprimento do dever de acatar as diretrizes políticas assumidas pelo Estado. Impossível legalizar o ilícito. Deve, nestes crimes chamados permanentes, especificamente por durarem, não se reconhecer a urgência do flagrante próprio, pois nem se evita sua consumação, nem se impede maiores consequências, e, sobretudo, arrisca-se sequer determinar a autoria, interesse maior nesses casos. O argumento de urgência deve fundamentar pedido à autoridade judiciária, inclusive, modos legais de realização. Nada impede o respeito à intimidade nessa hipótese. (...) No caso do flagrante em crime permanente, vê-se com muita frequência não só o descumprimento da lei, mais que isto, um caminho perigoso a permitir retornem as más autoridade o modelo inquisitorial, buscando provar a qualquer custo, não se preocupando com mais nada, senão com a punição pela punição."
9. Por tais razões, diante das condições em que a droga foi apreendida, em decorrência de ilegal denúncia anônima, bem assim a atuação dos policiais sem mandado judicial, declaro ilegal a prova obtida por tal ação, implicando, pois, na ilegalidade da apreensão da droga e, por via de consequência, da ausência de materialidade.
10. Mesmo que superada esta questão – insuperável – tenho que diante do local onde a droga foi apreendida, fora da residência do acusado, sem cerca no terreno, por denúncia anônima, bem assim que a droga apreendida diverge da encontrada na casa do acusado, conforme foto de f. 17, restaria evidenciada a dúvida quanto a autoria.
Por tais razões, JULGO IMPROCEDENTE a denúncia de f. II-IV, para o fim de absolver o acusado K P A, devidamente qualificado, da imputação que lhe é feita ( art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06), nos termos do art. 386, II, do CPP. Sem custas.
Expeça-se alvará de soltura se por al não estiver preso.
P. R. I.
Transitada em julgado, dê-se a destinação legal à droga apreendida, bem assim aos demais bens que não não tiveram pedido de restituição.
Florianópolis (SC), 26 de agosto de 2009.
Alexandre Morais da Rosa
Juiz de Direito
Me emociono com sua capacidade de teorizar sobre um fato que muitas vezes nada representa para a polícia e judiciário: a prisão de um "perigoso" traficante.
ResponderExcluirAlém disso, vc consegui radicalizar de forma corajosa a aplicação dos direitos fundamentais.
Parabéns!
Parabens professor
ResponderExcluirÉ no mínimo um incontestável contrasenso o fato de o poder exercido pelo Estado, o qual encontra a sua legitimidade na defesa dos direitos fundamentais(dentre os quais o direito à inviolabilidade de domicílio), em nome de uma suposta e falaciosa proteção da sociedade, ofender justamente os bens jurídicos que lhe oferecem razões para existir. É sempre importante recordar que os direitos fundamentais de um indivíduo, representam os direitos de todos, afinal é impossível dissociar o todo dos seus componentes.
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ResponderExcluirParabéns.
ResponderExcluirQuero registrar a minha satisfação ao ler sua definição do programa Informante Cidadão: "covarde".
A definição é perfeita.
Caro Alexandre.
ResponderExcluirAmei a decisão, peço permissão para uisá-la na minha pesquisa sobre prevenção a dependência química. Estou na fase da escrita da dissertação. Posso trocar uma idéia com vc? ainda tenho seu contato da época em que estivemos juntos com Warat. Abs e sucesso, brilhe sua luz ainda mais.
Absolutamente... corajoso
ResponderExcluirAo deixar expresso a sentença em questão, V. Exa., avocou o espirito da nossa carta magna,que tem como nucleo axiológico, a dignidade da pessoa humana. parabéns
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ResponderExcluirCaro Magistrado.
ResponderExcluirSou Professor de Direito Constitucional em uma grande Faculdade de nosso Brasil. Na prática diária, não são poucas as vezes em que me pergunto porque ainda sigo neste rumo. É tanta hipocrisia que sinto vontade de largar tudo. Ao ler textos como o seu, me sinto na obrigação de não fugir. Nosso País necessita de gente como o senhor e de suas palavras para que possamos trilhar um caminho mais digno.
Espetacular sentença, corajosa e fundamentada como poucas que já li.
Espero que um dia possamos tê-lo para uma palestra em nossa faculdade e ofertar aos nossos alunos o que nata da Magistratura tem a dizer.
Grande abraço.
Carlosbs@pitágoras.com.br
Caro Magistrado,
ResponderExcluirNão me canso de ler esta e outras decisões de sua autoria. Chega ser surreal que esta não seja a conduta seguida por todos os que deveriam zelar pela aplicação do texto constitucional. Espero que continue nos brindando com verdadeiras aulas de saber em seus texos decisórios. Já li no sseu Blog, severas críticas aos que tratam este tema de maneira inquisitiva. Daí, fica a pergunta, o que podemos fazer para mudar o triste quadro que hoje impera em nosso país. Será que é possível de alguma maneira conscientizar a todos que condenar uma pessoa a viver no cárcere, única e exclusivamente pela incidência de indícios é realmente o que o país precisa?
Grande abraço.
Fui aluno do Professor Alexandre Rosa na Pós Graduação em Ciências Penais, e achei fantástica a aula ministrada. Me tornei um admirador da inteligência, capacidade e coragem do Juiz e da Pessoa do professor, pois há todo um sistema político criminal por trás da atuação jurisdicional que faz com que o magistrado fique pseudo-independente. Essa decisão, especificamente sobre a denúncia anônima, foi brilhante, pois embora se tenha indícios que os acusados fossem traficantes, não se pode aceitá-la como elemento de informação ou prova judicial para uma condenação. Temos que pensar assim, pois é um direito fundamental de todos nós, sem falar que qualquer um de nós pode estar na mesma posição, e aí então não seria justo nem razoável aceitar atitudes inquisitas.
ResponderExcluirMuito me espanta, não só a decisã proferida pelo Douto Magistrado, como os comentarios realizados por pessoas que se dizem "garantidores das normas constitucionais". Primeiramente, parece que ninguem acompanha os noticiarios e percebe em que situação está chegando esse país! Inumeros crimes sendo praticado a cada minuto, cada vez mais com requintes de crueldade, e quase todos relacionados com o uso e o tráfico de drogas. No caso especifico, temos uma invasão policial, que embora tenha se iniciado de forma duvidosa, logrou exito na apreesnsao descrita nos autos, e da prisao de mais um criminoso que financia todos os horrores presenciados por nós. Acho que se nao fosse encontrado nenhuma substancia na residencia do acusado, deveria entao os policiais serem processados pelo crime de invasao de domicilio. Porem, os policiais, com base em uma denuncia, mesmo que anonima, e por ja conhecerem o acusado, entram na casa deste e fazem uma excelente apreensao, que se fossem comercializados poderia chegar até a casa de qualquer uma das pessoas que postaram comentarios aqui, tanto como um assalto por um usuario atraz de dinheiro quanto a propria droga entrar na sua casa para consumo de seus filhos, netos... Tambem me admira essas pessoas que parabenizaram a decisao proferida, alegando que a Constituiçao veda o anonimato, porem postaram aqui como "anonimos".
ResponderExcluirCaro Rodrigo. Obrigado pelo post. É a sua opinião, da qual discordo. Como o link era antigo, algumas pessoas que postaram não estão mais com os mesmos mails. Deletei, obrigado. Quando postaram, todas, tinham nome e endereço. Faz tempo que não venho aqui neste post. Avise-me sempre. Retirei os sem nome. Uma única pergunta: se os policiais entram sem mandado cometem abuso de autoridade. Por isto, eles sempre acham alguma coisa, ou não? Quem sabe depois de não acharem nada eles vão se entregar numa delegacia de polícia! Vc sabe de algum caso que tenham entrado, nada achado e se denunciado? Não deveriam? Um grande abraço.
ResponderExcluirConcordo que são opiniões diferentes. Agora, quanto a sua pergunta, é simples: os policiais, como neste caso concreto, ja conheciam o individuo, sabendo do histórico do mesmo, e por este motivo que, ao receberem uma denuncia, perceberam a grande possibilidade de ser verdadeira e encontraram o material apreendido. Num caso de a denuncia for contra uma pessoa de bem, a policia não vai agir dessa forma. Quanto ao fato de se entregar, não entendi bem a sua colocação! Se falarmos no caso de os policiais entrarem na casa e não acharem nada, é obvio que não vão se entregar na delegacia, até porque ninguém é obrigado a constituir prova contra si mesmo, mas cabe a parte ofendida realizar uma denuncia, gerar uma investigação... Agora! Não creio que vc quiz insinuar que os policiais plantaram a substancia encontrada. Até porque, se considerarmos essa hipótese, pela quantidade encontrada, e considerando o salário dos policiais no Brasil, eles não iam nem comer pra poder comprar drogas pra plantar em cenas flagrante!
ResponderExcluirDoutor Alexandre,
ResponderExcluirTenho um caso parecido com este aqui.
Na fase indicíária, os Policiais Civis (PC) afirmaram que tiveram notícia de que uma senhora (já conhecida no meio policial) estava transportando uma certa quantia de droga de Sto Amaro da Imperatriz para Tijucas. Diante disso, os policiais ficaram de campana e, quando o carro passou pela cidade de Biguaçu, fizeram a abordagem e deram o flagrante. A indiciada foi conduzida e reconheceu a autoria na delegacia.
Sob o crivo do contraditório, os policiais passaram a afirmar que a notícia recebida tinha sido fruto de uma operação de inteligência da Polícia em relação ao tráfico num morro tal, por meio de interceptação telefônica (muito provavelmente oriunda de outro juízo de direito). A ré, em audiência, manteve a confissão.
Pergunto:
a) Convertendo-se o julgamento em diligência, descobre-se que a interceptação era legal. Com isso, o flagrante esperado torna-se válido e pode haver condenação se o cotejo dos demais elementos probatórios ir ao encontro da confissão. Certo? (em linhas gerais)
b)Convertido o julgamento em diligência, não houve resposta pela autoridade policial acerca da legalidade da interceptação ou a autoridade simplesmente não soube informar. Neste caso, se interceptaçao era ilegal (ou se não foi possível aferir sua legalidade, porque não houve resposta ao ofício), os atos posteriores (sobretudo o flagrante) devem ser havidos como ilícitos e, por isso, absolve-se a ré?
b.1) Aqui foi dito que a denúncia anônima, por si só, não pode ensejar o deferimento de uma interceptação ou de uma busca e apreensão, visto que seriam necessárias investigações prelimnares. Do mesmo modo, não podem os agentes estatais entrar numa residência, sem autorização (ou com a autorização "ficta" do morador) motivados somente por meras suspeitas ou uma denúncia anônima.
Pergunto: e quanto à abordagem "corriqueira" como no caso que colaciono? Se os agentes estatais são informados por informantes (perdoe a redundância) ou recebem uma denúncia anônima acerca de uma movimentação de entorpecentes e abordam o veículo? Considera-se uma fundada suspeita apta a autorizar a busca pessoal?
A questão é simples, porém deu nó nas minhas ideias.
Se o veículo está em movimento a autoridade policial de trânsito pode realizar blitz e, no veículo, encontrar material ilícito, não sendo, em princípio, ilegal. Agora a utilização de escuta sem informação, por certo, torna a prova nula. Claro que falo em tese, até porque os Tribunais salvam a operação policial com o argumento - insustentável - de crime permanente. Mas insustentável para quem defende os preceitos constitucionais. Quem defende o "combate" ao crime a qualquer preço, aceita entregar as garantias constitucionais como pagamento da eficiência do controle penal.
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