Mediação responsável e emancipatória
Desde a introdução da mediação no Ocidente, tem-se elaborado diferentes conceitos, teorias e procedimentos para tentar definir esse instituto e diferenciá-lo dos outros métodos de abordagem e resolução de conflitos.
Inicialmente foi incorporada nas Américas e na Europa para poder desafogar os fóruns excedidos pela sua demora funcional, agravada pela evolução da sociedade e pelo incremento das questões submetidas a julgamento.
Relações sociais e comerciais cada dia mais complexas exigiam soluções rápidas e econômicas para seus conflitos. Um mundo globalizado, com comunicações internacionais eficientes e imediatas, mudou a tradição regional pela necessária incorporação de tecnologia e metodologia mais dinâmicas que permitissem a competitividade e atendessem às novas necessidades sociais.
Assim foram atualizados procedimentos já utilizados tradicionalmente no Ocidente, como a conciliação e a arbitragem, e importado, das culturas não ocidentais, a mediação.
Das primeiras tentativas por ocidentalizar a mediação, ela foi associada a conceitos já familiares de nossa cultura, como o da negociação, o que traía em parte a sua natureza de origem cooperativa.
Como resultado dessa associação, formalizou-se a mediação como a intervenção de um terceiro auxiliar, facilitador da comunicação, para superar entraves que dificultavam o acordo[1], o que resultava no procedimento autocompositivo ideal para resolver conflitos de forma rápida e econômica.
Centrou-se assim o objetivo do mediador em conseguir o acordo validando as decisões dos participantes sem avaliar se ele era o resultado de uma equilibrada atenção das necessidades de todos ou o resultado de uma imposição pelo exercício de poder de um sobre o outro.
Do tradicional conceito ganha-perde que simbolizava os resultados impositivos do processo judicial ou da negociação de barganha, passam a caracterizar-se os acordos surgidos da mediação negocial como ganha-ganha, intentando reverter a tradicional resolução pelo enfrentamento na nova proposta dialogada e autocompositiva.
Em nossas sociedades europeias e latino-americanas, com uma forte tradição de intervenção do Estado na sua função reguladora e tuteladora, a liberalidade com que o acordo era obtido nessa mediação negocial levou as autoridades a conceberem uma dependência da mediação dos poderes judicial e executivo para tentar preservar o exercício dos direitos de cada cidadão. E até a pensar que somente um profissional do direito podia exercer a função de mediador para impedir “injustiças”.
Esses movimentos somente conseguiram perturbar ainda mais a natureza cooperativa e informal da mediação, burocratizando-a na sua adaptação ao processo judicial.
Estudos antropológicos e sociológicos permitiram “mergulhar” na mediação ainda utilizada pelas sociedades não ocidentais, de onde tinha sido importada ao ocidente no início da era industrial. Essas pesquisas demonstraram uma diferença fundamental na organização social desses povos que permitia o uso da mediação de uma maneira responsável e cooperativa: a compreensão de que o grupo social ou comunidade forma um todo inseparável entre cada membro, que produz uma solidariedade absoluta, pois o que acontece com um acontece com todos[2].
Simultaneamente, a prática da mediação e a investigação foram incorporando conceitos psicológicos, sociológicos e comunicacionais que permitiram o surgimento de novas escolas[3] e conceitos sobre a identidade diferenciadora desse instituto dos outros procedimentos, incluída a mediação negocial.
Considerada unicamente um procedimento de resolução de conflitos auxiliar e alternativo ao julgamento, a mediação foi mostrando, no seu cada vez mais estendido campo de ação, seu maior e melhor contributo como proposta filosófica e sociológica de organização social cooperativa e de comunicação interpessoal respeitosa e solidária.
Priorizando a participação responsável e a inclusão pela escuta, permitiu entender que o saber está nas pessoas envolvidas em conflitos e que são elas as que devem decidir segundo suas necessidades e projetos de futuro.
O importante é o efeito emancipador que esse posicionamento produz nos participantes, por se sentirem capazes de analisar e resolver os próprios conflitos e de conduzir a própria vida de maneira responsável, cooperativa e solidária.
Não podemos continuar pensando no mediador somente como um técnico da comunicação conhecedor de técnicas específicas para obter resultados na tentativa de resolver problemas, pois essa redução deixa a mediação vulnerável à influência da ideologia do entorno e não oferece o seu melhor serviço à população.
É fundamental que o mediador, como já dito muitas vezes, atue como o fruticultor que, para obter os melhores frutos (acordos), não se preocupa com eles, mas, sim, com as plantas, as árvores que os produzem (as pessoas participantes da mediação).
Mas esse “centrar o seu trabalho nas pessoas”, longe de liberá-lo da responsabilidade sobre os acordos, o responsabiliza mais ainda. Porque se o mediador não realiza o seu trabalho de acolhimento, de reconhecimento, de compreensão, se não se preocupa por analisar com os participantes exaustivamente as necessidades apresentadas por eles, se não se preocupa com que os mediados obtenham toda a informação necessária para decidir, se não introduz o respeito solidário e o relacionamento cooperativo e mutuamente responsável, se não os leva a revisar as opções de acordos numa projeção a futuro para perceber a repercussão destes sobre eles e sobre terceiros, o mediador voltará a ser um auxiliar da negociação, e não um mediador.
Por isso, neste breve escrito sobre mediação, esclarece-se que o diferencial e identificador da mediação é a de ser responsável e emancipatória. Não se trata somente de usar técnicas para que as pessoas se comuniquem, não se trata somente de promover com isenção a autocomposição, não se trata somente de procurar chegar a acordos. Trata-se fundamentalmente de que o mediador se responsabilize pelos mediados e pelo caminho de análise, reflexão e sensibilização que os unirá no trabalho por objetivar o que desejam para o futuro, por implementar eficaz e eficientemente essa programação do futuro com plena consciência da repercussão que cada uma das suas decisões vai ter na vida de cada um deles, de terceiros e essencialmente no relacionamento, para que os satisfaça de maneira completa.
O mediador deve trabalhar para que a autogestão de suas vidas seja programada com plena e total consciência para poder obter uma decisão emancipatória e responsável. O mediador é corresponsável por que a mediação atinja esses objetivos.
[1] Escola de Harvard e os seus procedimentos para superar impasses.
[2] O relacionamento social cooperativo descrito se expressa em várias culturas. Para os Maori, é a palavra whakapapa. Para os Navajos, hazho. Para muitos africanos, a palavra bantu ubuntu. Essas palavras contêm uma ideia comum: todos nós estamos interconectados numa cadeia de relacionamentos.
[3] Como a Circular Narrativa surgida da teoria sistêmica e a escola Transformativa nos desenvolvimentos teóricos realizados na América Latina, como os de Luis Alberto Warat sobre o Direito da Mediação.
Autor: Juan Carlos Vezzulla, Mediador, Co-fundador e Presidente Científico dos Institutos de Mediação e Arbitragem do Brasil e de Portugal (IMAB e IMAP), Formador Internacional, Medalha à Paz e à Concórdia México (2008), Autor de Livros e artigos sobre mediação. Este artigo foi publicado na RCSC – Revista Catarinense de Solução de Conflitos, núm. 1 – pág. 24 e 25. A Revista é uma edição da Fecema – Federação Catarinense das Entidades de Mediação e Arbitragem. Acesso Digital pelo link: http://www.fecema.org.br/rcsc
Nenhum comentário:
Postar um comentário