LUIZ FUX, O ÁLIBI E O IN DUBIO PRO REO.
Enquanto ouvia a leitura do voto do Ministro Luiz Fux, na Apn. 470-DF, surgiu a questão sobre acima. Foi algo dito “de passagem”. Mas mesmo tratando-se de “obter dictum”, advindo de um Ministro do Supremo Tribunal Federal e, mais, de um Eminente Processualista, certamente merece
Enquanto ouvia a leitura do voto do Ministro Luiz Fux, na Apn. 470-DF, surgiu a questão sobre acima. Foi algo dito “de passagem”. Mas mesmo tratando-se de “obter dictum”, advindo de um Ministro do Supremo Tribunal Federal e, mais, de um Eminente Processualista, certamente merece
m consideração atenta e, quando cabível, uma crítica teórica.
Não se trata de crítica judicial, ou de análise do caso concreto. Abstenho-me, portanto, de data venia.
O debate precisa ser colocado em seu lugar devido, quando se trata de processo penal, em que a transposição de conceitos processuais civis podem vulnerar garantias específicas do acusado, que não se impõem no campo privado.
Álibi, etimologicamente, significa em outra parte, em outro lugar. É uma defesa muito freqüente no processo penal. O acusado nega a autoria do delito, alegando que, no momento do cometimento do crime, estava em outro local, sendo impossível sua participação no ato delituoso. Na prática, contudo, o conceito vem sendo ampliado, passando a significar qualquer hipótese de impossibilidade material de ter o acusado praticado o delito. Assim, é possível que, o acusado não consiga provar em que lugar estava no momento em que o crime foi cometido, mas tenha demonstrado que, por exemplo, duas horas antes, estava em um determinado lugar que torna impossível a sua presença no local do crime, quando este era praticado. É o que Elena M. Catalano (La prova d’alibi, Milano, 1998, p. 16-17), denomina “quase álibi”.
Se o álibi estiver plenamente demonstrado, o juiz deve absolver o acusado, por não ter cometido o delito. Toda a controvérsia surge, no momento em que o acusado não consegue provar plenamente o álibi. Neste caso, se a prova produzida for dúbia, no sentido de que o acusado poderia estar em outro local no momento da prática do delito, como deverá decidir o juiz? Em outras palavras, aplica-se ou não ao álibi o in dubio pro reo?
Essa foi a questão posta hoje, pelo Ministro Luiz Fux. Diverge-se da conclusão de que se o acusado alega um álibi, o ônus da prova seria da defesa.
Tal posicionamento, defendido por muitos na doutrina e na jurisprudência, ao que parece, tem por premissa – em nosso entendimento, equivocada – de que o álibi seria uma exceção material, o posta pelo acusado ou seu defensor.
Todavia, o álibi não é uma exceção, como, aliás, já negava há séculos Mittermaier (Tratado da prova em matéria criminal, capítulo XX).
Para a correta compreensão da natureza do álibi é necessário distinguir, de um lado, a exceção, e de outro, a negação motivada, com esclarecer Gian Antonio Michele (L’onere della prova. Padova: 1966 p. 403).
Em sua resposta, acusado poderá negar genericamente o fato que lhe é imputado (“não pratiquei o crime”); pode também, alegar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do efeito jurídico pretendido pelo autor (por exemplo, “pratiquei o crime, há mais de vinte anos, e o delito está prescrito”), por fim, poderá alegar que os fatos se passaram de forma diversa ou incompatível com a alegada pelo autor (“não pratiquei o crime, porque estava em outro local no momento em que ele ocorreu”).
Destas três formas de defesa, é fácil perceber que o álibi se enquadra na última. Quem invoca um álibi, na verdade, está negando o fato constitutivo do direito de punir. Trata-se de negativa motivada ou per positionem. De qualquer forma, não se trata de alegação de fato diverso (modificativo, extintivo ou impeditivo) do fato constitutivo do direito do autor, que impeça sua eficácia jurídica. Para que o álibi fosse considerado exceção, seria necessário que, em tal forma de defesa, o acusado admitisse como verdadeiro o fato constitutivo do direito do autor – que inclui a imputação da autoria –, mas alegasse um fato modificativo, impeditivo ou extintivo de tal direito. Não é isto que ocorre.
Mesmo as teses mais limitadas sobre o conteúdo do fato constitutivo do direito de punir, entendem que cabe ao Ministério Público provar a prática de um fato típico e sua autoria. Inegavelmente, o acusador tem de provar a autoria do fato imputado, para que possa ser proferida uma sentença condenatória, posto que a dúvida acarretará a absolvição. Há, contudo, diversas formas de se negar a autoria delitiva. Pode ser feito através de uma simples negação genérica, quando o acusado se limita a asseverar que não foi ele que praticou o delito. Mas, pode ser, também, uma negativa indireta ou motivada, quando o acusado nega a imputação da autoria contida na denúncia ou queixa, não de forma direta, mas pela afirmação de fato com ela incompatível. O álibi é uma negação formal do fato. Com o álibi, explica Malatesta (A Lógica das provas em matéria criminal, v. II, Parte V, I Seç, cap., VI, tit. II, § 1): “não se faz senão afirmar uma condição positiva: a condição de tempo e espaço do acusado, em relação à hora e local do crime, condição positiva provável diretamente e incompatível, pelas leis do tempo e do espaço, com a criminalidade determinada”. Neste caso, o acusado afirma que não foi ele o autor do delito porque estava em outra cidade no momento da prática do crime. Em consequência, como destaca Mittermaier (Tratado ..., cap. XX) o álibi não é “uma verdadeira exceção, pois não é isso outra coisa mais do que uma simples negação emanada do acusado, e ao mesmo tempo uma demonstração de que foi visto em lugar determinado e diverso no momento em que fora o crime cometido”.
Sob o ponto de vista da alegação, realmente o álibi constitui um exemplo de tema de prova defensivo que se inclui na esfera de conhecimento do próprio acusado e que, dificilmente pode emergir no processo se não for por ele alegado. Provavelmente, somente quem está sendo acusado de um crime que não cometeu, sabe o lugar – diverso – que estava no momento em que o delito foi praticado. Não se pode ver, porém, em tal situação, um verdadeiro ônus de alegar o álibi, pois, ainda que não alegado pelo acusado, se o álibi chegar ao conhecimento do juiz, poderá ser considerado para fins de absolvição. Muito menos, tal situação autoriza a conclusão de que o ônus da prova do álibi pesa sobre o acusado.
Basta atentar para a verdadeira natureza do álibi, que não é exceção material, mas sim uma negativa indireta do fato constitutivo do direito do autor, para se perceber o equívoco da afirmação de que o ônus da prova do álibi pesa sobre o acusador.
Ensina Chiovenda (Principii di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1965, p. 787) que “mesmo em caso de negação indireta, isto é, de afirmação de um fato incompatível com o alegado pelo autor (negatio per positionem), não tem o réu, para o momento, de provar o fato que ele alega; portanto, se bem afirme um fato autônomo, o faz para negar o fato constitutivo de direito do autor, e não apenas para opor-se a seus efeitos jurídicos”.
Aplicando tais premissas num processo penal em que vigora o in dubio pro reo, a dúvida sobre a autoria, em qualquer hipótese, deve levar à absolvição. Se assim não fosse, seria melhor que o acusado nunca alegasse um álibi, mas se limitasse a negar genericamente a autoria, pois, negada a autoria, a dúvida levaria à absolvição; mas se fosse afirmado um álibi, a dúvida sobre sua ocorrência, que também é uma dúvida sobre a autoria delitiva, implicaria a condenação do acusado. A iniqüidade da situação demonstra que, também quanto ao álibi, no caso da dúvida, deve ser aplicado o in dubio pro reo.
Num sistema fundado na presunção de inocência, com o ônus da prova pensando sobre a acusação, o álibi não se liga à verificação do tema defensivo da estraneidade do acusado em relação ao fato material, mas sim a infirmar o tema da acusação. Não sendo, pois, a negativa de autoria uma exceção, consistente na asserção de um fato novo, diverso do fato constitutivo do direito do autor, não se aplica a ela a regra reus in exceptione actor est. A dúvida sobre o álibi se traduz automaticamente em uma dúvida sobre a participação do acusado na autoria delitiva, cujo ônus de probatório incumbe ao Ministério Público.
Assim, também com relação ao álibi tem plena aplicação a regra in dubio pro reo. O Ministério Público ou o querelante tem o ônus de eliminar qualquer dúvida relativa ao álibi, fornecendo prova da presença de que o acusado estava no local do cometimento do delito, tendo concorrido para sua prática. Exigir que o acusado forneça prova plena do álibi, sob pena de ser condenado, é violar a presunção de inocência.
Concluo, transcrevendo a posição do Professor de todos nós, o Eminente Afrânio Silva Jardim (Direito Processual Penal. Rio de Janeiro, 2002, p. 213): “A dúvida sobre se ele estava ou não naquele lugar distante nada mais é do que a dúvida sobre se ele estava no lugar afirmado na denúncia ou queixa. É intuitivo. Dessa maneira, ao sustentar tal álibi, o réu não assume o ônus de provar fato positivo que negue a acusação, permanecendo o autor como ônus de provar aquilo que originalmente afirmou.”
Não se trata de crítica judicial, ou de análise do caso concreto. Abstenho-me, portanto, de data venia.
O debate precisa ser colocado em seu lugar devido, quando se trata de processo penal, em que a transposição de conceitos processuais civis podem vulnerar garantias específicas do acusado, que não se impõem no campo privado.
Álibi, etimologicamente, significa em outra parte, em outro lugar. É uma defesa muito freqüente no processo penal. O acusado nega a autoria do delito, alegando que, no momento do cometimento do crime, estava em outro local, sendo impossível sua participação no ato delituoso. Na prática, contudo, o conceito vem sendo ampliado, passando a significar qualquer hipótese de impossibilidade material de ter o acusado praticado o delito. Assim, é possível que, o acusado não consiga provar em que lugar estava no momento em que o crime foi cometido, mas tenha demonstrado que, por exemplo, duas horas antes, estava em um determinado lugar que torna impossível a sua presença no local do crime, quando este era praticado. É o que Elena M. Catalano (La prova d’alibi, Milano, 1998, p. 16-17), denomina “quase álibi”.
Se o álibi estiver plenamente demonstrado, o juiz deve absolver o acusado, por não ter cometido o delito. Toda a controvérsia surge, no momento em que o acusado não consegue provar plenamente o álibi. Neste caso, se a prova produzida for dúbia, no sentido de que o acusado poderia estar em outro local no momento da prática do delito, como deverá decidir o juiz? Em outras palavras, aplica-se ou não ao álibi o in dubio pro reo?
Essa foi a questão posta hoje, pelo Ministro Luiz Fux. Diverge-se da conclusão de que se o acusado alega um álibi, o ônus da prova seria da defesa.
Tal posicionamento, defendido por muitos na doutrina e na jurisprudência, ao que parece, tem por premissa – em nosso entendimento, equivocada – de que o álibi seria uma exceção material, o posta pelo acusado ou seu defensor.
Todavia, o álibi não é uma exceção, como, aliás, já negava há séculos Mittermaier (Tratado da prova em matéria criminal, capítulo XX).
Para a correta compreensão da natureza do álibi é necessário distinguir, de um lado, a exceção, e de outro, a negação motivada, com esclarecer Gian Antonio Michele (L’onere della prova. Padova: 1966 p. 403).
Em sua resposta, acusado poderá negar genericamente o fato que lhe é imputado (“não pratiquei o crime”); pode também, alegar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do efeito jurídico pretendido pelo autor (por exemplo, “pratiquei o crime, há mais de vinte anos, e o delito está prescrito”), por fim, poderá alegar que os fatos se passaram de forma diversa ou incompatível com a alegada pelo autor (“não pratiquei o crime, porque estava em outro local no momento em que ele ocorreu”).
Destas três formas de defesa, é fácil perceber que o álibi se enquadra na última. Quem invoca um álibi, na verdade, está negando o fato constitutivo do direito de punir. Trata-se de negativa motivada ou per positionem. De qualquer forma, não se trata de alegação de fato diverso (modificativo, extintivo ou impeditivo) do fato constitutivo do direito do autor, que impeça sua eficácia jurídica. Para que o álibi fosse considerado exceção, seria necessário que, em tal forma de defesa, o acusado admitisse como verdadeiro o fato constitutivo do direito do autor – que inclui a imputação da autoria –, mas alegasse um fato modificativo, impeditivo ou extintivo de tal direito. Não é isto que ocorre.
Mesmo as teses mais limitadas sobre o conteúdo do fato constitutivo do direito de punir, entendem que cabe ao Ministério Público provar a prática de um fato típico e sua autoria. Inegavelmente, o acusador tem de provar a autoria do fato imputado, para que possa ser proferida uma sentença condenatória, posto que a dúvida acarretará a absolvição. Há, contudo, diversas formas de se negar a autoria delitiva. Pode ser feito através de uma simples negação genérica, quando o acusado se limita a asseverar que não foi ele que praticou o delito. Mas, pode ser, também, uma negativa indireta ou motivada, quando o acusado nega a imputação da autoria contida na denúncia ou queixa, não de forma direta, mas pela afirmação de fato com ela incompatível. O álibi é uma negação formal do fato. Com o álibi, explica Malatesta (A Lógica das provas em matéria criminal, v. II, Parte V, I Seç, cap., VI, tit. II, § 1): “não se faz senão afirmar uma condição positiva: a condição de tempo e espaço do acusado, em relação à hora e local do crime, condição positiva provável diretamente e incompatível, pelas leis do tempo e do espaço, com a criminalidade determinada”. Neste caso, o acusado afirma que não foi ele o autor do delito porque estava em outra cidade no momento da prática do crime. Em consequência, como destaca Mittermaier (Tratado ..., cap. XX) o álibi não é “uma verdadeira exceção, pois não é isso outra coisa mais do que uma simples negação emanada do acusado, e ao mesmo tempo uma demonstração de que foi visto em lugar determinado e diverso no momento em que fora o crime cometido”.
Sob o ponto de vista da alegação, realmente o álibi constitui um exemplo de tema de prova defensivo que se inclui na esfera de conhecimento do próprio acusado e que, dificilmente pode emergir no processo se não for por ele alegado. Provavelmente, somente quem está sendo acusado de um crime que não cometeu, sabe o lugar – diverso – que estava no momento em que o delito foi praticado. Não se pode ver, porém, em tal situação, um verdadeiro ônus de alegar o álibi, pois, ainda que não alegado pelo acusado, se o álibi chegar ao conhecimento do juiz, poderá ser considerado para fins de absolvição. Muito menos, tal situação autoriza a conclusão de que o ônus da prova do álibi pesa sobre o acusado.
Basta atentar para a verdadeira natureza do álibi, que não é exceção material, mas sim uma negativa indireta do fato constitutivo do direito do autor, para se perceber o equívoco da afirmação de que o ônus da prova do álibi pesa sobre o acusador.
Ensina Chiovenda (Principii di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1965, p. 787) que “mesmo em caso de negação indireta, isto é, de afirmação de um fato incompatível com o alegado pelo autor (negatio per positionem), não tem o réu, para o momento, de provar o fato que ele alega; portanto, se bem afirme um fato autônomo, o faz para negar o fato constitutivo de direito do autor, e não apenas para opor-se a seus efeitos jurídicos”.
Aplicando tais premissas num processo penal em que vigora o in dubio pro reo, a dúvida sobre a autoria, em qualquer hipótese, deve levar à absolvição. Se assim não fosse, seria melhor que o acusado nunca alegasse um álibi, mas se limitasse a negar genericamente a autoria, pois, negada a autoria, a dúvida levaria à absolvição; mas se fosse afirmado um álibi, a dúvida sobre sua ocorrência, que também é uma dúvida sobre a autoria delitiva, implicaria a condenação do acusado. A iniqüidade da situação demonstra que, também quanto ao álibi, no caso da dúvida, deve ser aplicado o in dubio pro reo.
Num sistema fundado na presunção de inocência, com o ônus da prova pensando sobre a acusação, o álibi não se liga à verificação do tema defensivo da estraneidade do acusado em relação ao fato material, mas sim a infirmar o tema da acusação. Não sendo, pois, a negativa de autoria uma exceção, consistente na asserção de um fato novo, diverso do fato constitutivo do direito do autor, não se aplica a ela a regra reus in exceptione actor est. A dúvida sobre o álibi se traduz automaticamente em uma dúvida sobre a participação do acusado na autoria delitiva, cujo ônus de probatório incumbe ao Ministério Público.
Assim, também com relação ao álibi tem plena aplicação a regra in dubio pro reo. O Ministério Público ou o querelante tem o ônus de eliminar qualquer dúvida relativa ao álibi, fornecendo prova da presença de que o acusado estava no local do cometimento do delito, tendo concorrido para sua prática. Exigir que o acusado forneça prova plena do álibi, sob pena de ser condenado, é violar a presunção de inocência.
Concluo, transcrevendo a posição do Professor de todos nós, o Eminente Afrânio Silva Jardim (Direito Processual Penal. Rio de Janeiro, 2002, p. 213): “A dúvida sobre se ele estava ou não naquele lugar distante nada mais é do que a dúvida sobre se ele estava no lugar afirmado na denúncia ou queixa. É intuitivo. Dessa maneira, ao sustentar tal álibi, o réu não assume o ônus de provar fato positivo que negue a acusação, permanecendo o autor como ônus de provar aquilo que originalmente afirmou.”
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