Autos
n° 006.12.002469-7
Ação: Auto
de Prisão Em Flagrante/Indiciário
Indiciado: Diogo
Brunken
DECISÃO
Cuida-se
de Auto de Prisão em Flagrante no qual Policiais Militares
responsáveis pela prisão relataram à Autoridade Policial que
em investigações
preliminares feitas por colegas policiais de farda de Joinville e
por meio de informações
anônimas se
averiguou ser o conduzido um dos suspeitos pela morte (latrocínio)
de um PM havida no dia 4 de agosto de 2012 em Joinville, além de
outros roubos naquela Comarca. Segundo asseveram os militares, também
obtiveram informações de que o conduzido estaria escondido nesta
Comarca de Barra Velha, com a pistola subtraída do militar morto,
pesando contra o conduzido, ainda, um mandado de prisão por tráfico
de drogas. Por essas razões, uma equipe de Policiais Militares de
Joinville se
dirigiram até o local indicado e lá efetuaram a prisão. Busca
efetuada no interior da residência, localizaram a pistola dentro de
uma mochila,
além de 200 gramas de maconha. Aduziram que a arma apreendida
é possivelmente
subtraída do policial vítima do roubo e
que os
indícios até aqui apontam para o conduzido.
A
prisão em flagrante, no caso, é ilegal.
O
conduzido não teve assistência de advogado.
O
artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República, assegura,
como direito fundamental, a inviolabilidade do domicílio, garantia
esta que somente é excepcionada nas hipóteses de flagrante próprio,
desastre ou para prestar socorro, de consentimento expresso e
comprovado do morador, ou, durante o dia, por determinação
judicial. Portanto, no caso, a ação policial somente estaria
legitimada se houvesse mandado judicial para busca e apreensão na
residência do indiciado, se houvesse flagrante próprio ou se
estivesse demonstrado nos autos o expresso consentimento do morador
da residência onde as drogas e armas foram apreendidas.
No
entanto, não havia determinação judicial, não há prova de que o
conduzido haja autorizado o ingresso da polícia na residência e
tampouco a situação fática descrita nos autos configura flagrante
próprio, mas sim flagrante em crime permanente. Destaco que, em que
pese o tráfico de entorpecentes e posse de armas sejam delitos
permanentes, o ingresso na residência sem mandado judicial não
estava autorizado, porque o
que se protrai no tempo, como é o caso do crime permanente, não tem
a urgência que justificaria a quebra da garantia da inviolabilidade
de domicílio, sem a devida determinação judicial. Ora, se havia
fundada razão para se acreditar que o indiciado, investigado em
Joinville, estava no local, a Polícia Militar deveria haver
noticiado a suspeita à Polícia Civil ou ao Ministério Público
para que, realizada investigação a respeito, houvesse a
representação pela busca e apreensão na residência, seguindo-se,
então, o devido processo legal.
Analisando
os autos, verifico que o único trabalho investigativo realizado
pelos Policiais Militares foi breve campana, que fundamentou o
ingresso na residência. Não se pode dizer que este breve
acompanhamento à residência do indiciado seja razão suficiente
sequer para autorizar a expedição de mandado de busca e apreensão,
e menos ainda para o ingresso na residência sem o devido mandado
judicial.
A
quantidade de drogas por si só não indicia a traficância de forma
absoluta. Não existe nenhum elemento de prova que aponte para o
comércio ilícito de entorpecentes. A atuação policial está
baseada, em verdade, em mera denúncia anônima, em suposições, em
palavras como provavelmente,
grande chance, indícios e investigações preliminares.
Sabe-se
que a Polícia Militar ao assim agir está buscando coibir o
incremento da criminalidade e o faz da maneira que lhe é possível,
diante dos meios materiais e de pessoal que estão sendo fornecidos
pelo Estado. No entanto, não é aceitável que a busca pelo
resultado (redução da criminalidade) justifique e fundamente a
quebra e a violação de garantias constitucionais. Não se pode
admitir que os fins (coibir a criminalidade) justifiquem os meios
(investigações criminais e ações policiais ao arrepio da lei e da
Constituição Federal). Sobre
a impossibilidade de quebra da inviolabilidade do domicílio nas
hipóteses de crime permanente, cito e adoto como razões de decidir
a doutrina de Alexandre Morais da Rosa (Tráfico
e Flagrante: apreensão da droga sem mandado. Uma prática
(in)tolerável? inserta
em http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/2010/03/trafico-sem-mandado.html ).
O
discurso de que a sensação de impunidade é a causa do incremento
da criminalidade é senso comum e pode ser ouvido e lido diariamente
na imprensa, sendo repetido pela população em geral. Disse-se que o
Estado deve punir a fim de coibir a prática de crimes. No entanto,
não se discute a real razão do aumento da criminalidade, ou seja, a
ausência de políticas sociais realmente comprometidas com a
educação e a melhoria das condições de vida da maioria da
população brasileira. O salário mínimo é inconstitucional e não
consegue garantir a existência com um mínimo de dignidade. A
garantia de uma existência digna, com emprego, alimentação,
educação, saúde e moradia para todos os cidadãos é a solução
para a redução da criminalidade.
No
entanto, o que se vivencia em nosso País é um Estado cada vez mais
reduzido, sem nenhuma garantia aos direitos sociais e totalmente
sucateado no que se refere à segurança pública. A segurança
pública como um todo está sucateada. As investigações policiais,
quando feitas, não raro são anuladas diante da não observância
das garantias e direitos fundamentais dos envolvidos. Não se
realizam perícias por falta de estrutura dos Institutos de Perícia,
não se investiga por falta de estrutura da Polícia Civil e
invariavelmente ilegalidades são cometidas sob a justificativa de
combater a impunidade e reduzir a criminalidade. Ocorre que as
investigações criminais mal conduzidas, apressadas, no afã de dar
a resposta que a sociedade espera, são causas de impunidades. Isso
porque, em um Estado Democrático de Direito, não se admite que
prisões sejam realizadas ilegalmente e que cidadãos sejam
processados e condenados sem que se observe o devido processo legal.
A respeito do assunto, recente artigo publicado no Jornal de Santa
Catarina, de minha autoria (Iolmar Alves Baltazar), elucida a
questão, e dele transcrevo o seguinte excerto (Investigações
Criminais, inserta
em http://www.clicrbs.com.br/jsc/sc/impressa/4,182,3631021,18770):
Investigações
policiais importantes têm sido anuladas pelo Judiciário, a exemplo
da Operação Satiagraha, gerando sensação de impunidade.
Recentemente, rumorosa denúncia contra o ex-governador Leonel Pavan
foi rejeitada. Em 20 de dezembro, ao conceder habeas corpus ao
coronel Djalma Beltrami, acusado de receber propina de traficantes de
São Gonçalo (RJ), o
desembargador Paulo Rangel registrou perplexamente que "investigação
não é brinquedo de polícia".
O
sistema jurídico brasileiro, desde 1988, está estruturado sob um
regime republicano e democrático, calcado em garantias
constitucionais. No entanto, ainda convivemos com renitentes
procedimentos e práticas criminais inquisitoriais que produzem
dissonâncias insanáveis no plano da validade das provas produzidas.
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Jorge Mussi,
quando da invalidação da operação Castelo de Areia, assentou que
"essa volúpia desenfreada de se construir arremedos de prova
acaba por ferir de morte a Constituição". Logo, são
inservíveis denúncias anônimas, escutas ilegais, torturas,
invasões de domicílio e quaisquer abusos de autoridade. Para o
combate da criminalidade, forçoso concluir que os fins não
justificam os meios, sob o risco de revivermos barbáries contra a
humanidade.
Além
disso, mas não menos importante, não há elementos outros nos
autos, além das alegadas e inservíveis denúncias anônimas e
suposições, que indiciem a prática do delito de tráfico pelo réu,
fato que deverá ser melhor amadurecido durante a instrução do
feito, a ser realizada sob o crivo do contraditório e da ampla
defesa, em sendo o caso.
Na
verdade, a
violação do domicílio caso venha a ser confirmada poderá macular,
por derivação, a própria prova da materialidade dos crimes de
tráfico de drogas e posse de armas, devendo preponderar, portanto, o
estado de inocência.
Em
cognição sumária, não há indicativos de que a entrada dos
policiais na residência do acusado se deu por autorização expressa
e comprovável, conforme ensina Guilherme de Souza Nucci, na nota 42
do seu Código de Processo Penal Comentado:
Consentimento
do morador e cessação da autorização: sem mandado judicial,
ausente o flagrante, ou com mandado judicial, ausente o flagrante,
mas à noite, somente pode ingressar a polícia no domicílio, se
houver consentimento do morador. Essa autorização deve ser, como já
mencionado, expressa e comprovável, inadmitindo-se a forma tácita
ou presumida. Por outro lado, já que o executor está sem mandado
judicial ou, possuindo-o, procede à diligência durante a noite, a
qualquer momento pode o morador interromper o consentimento dado,
expulsando os agentes da autoridade de seu domicílio.
(9
edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 542)
Neste
norte, considerando que a entrada no local não foi franqueada pelo
dono da residência, imprescindível era a policia estar municiada
previamente de mandado judicial, o que, de igual forma, não consta
nos autos.
Não
se pode admitir, imaginar, que alguém ilegalmente preso haja
livremente franqueado o acesso à residência, tido como asilo
inviolável, a não ser que se concorde com um modelo inquisitorial,
com uma atuação policialesca à margem da Constituição Federal.
Logo,
diante da ausência de qualquer hipótese prevista no artigo 5º,
incisos X e XI, da Constituição da República Federativa do Brasil,
o que deverá ser comprovado estreme de dúvidas, os elementos até
então colhidos estão a demonstrar, em cognição sumária, que pode
ter realmente havido ofensa à garantia constitucional da
inviolabilidade do domicílio, configurando, pois, prova ilícita,
por derivação, todos os demais elementos probatórios colhidos após
a entrada dos policiais na residência, inclusive a apreensão da
droga e armas no interior da residência, o
que poderá macular de invalidade, infelizmente, por falha do Estado,
a própria materialidade dos crimes.
Acerca
do assunto, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal, de acordo
com o entendimento do ministro Celso de Mello:
BUSCA
E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO
QUARTOS DE HOTEL) - SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE
OCUPADO, AO CONCEITO DE "CASA" - CONSEQÜENTE NECESSIDADE,
EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES
PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL.
Para
os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da
Constituição da República, o conceito normativo de "casa"
revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de
habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4º, II),
compreende, observada essa específica limitação espacial, os
quartos de hotel. Doutrina. Precedentes.
Sem
que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente
previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente
público poderá, contra a vontade de quem de direito ("invito
domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em
aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova
resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se
inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina.
Precedentes (STF).
ILICITUDE
DA PROVA - INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE
QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) - INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA
RESULTANTE DA TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS
DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS.
A
ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de
poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade,
não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos,
sob pena de ofensa à garantia constitucional do "due process of
law", que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas
ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras
no plano do nosso sistema de direito positivo.
A
Constituição da República, em norma revestida de conteúdo
vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os
postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas
(CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público,
derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional,
repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que
resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do
direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no
ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade
probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene
retentum". Doutrina. Precedentes.
(HC
93050 MC/RJ - MEDIDA CAUTELAR NO HABEAS CORPUS, Relator Min. CELSO DE
MELLO. Julgamento em 30/11/2007 e publicação em 5/12/2007)
Dessa
forma, e caso fique comprovada a invasão, não há se dizer que, ao
final, com a apreensão da droga e armas, com o suposto flagrante,
tudo acabou sanado. Isso porque o flagrante restou contaminado com a
eiva da invalidade de cunho constitucional (invasão ilegal de
domicílio), cabendo as seguintes palavras do Ministro Jorge Mussi,
do Superior Tribunal de Justiça, acerca do malferimento do devido
processo legal, quando da invalidação da chamada Operação Castelo
de Areia: se
a prova é natimorta, passemos desde logo o atestado de óbito...
Essa volúpia desenfreada de se construir arremedos de prova acaba
por ferir de morte a Constituição.
Vale
ressaltar, ainda, a lição trazida por Tales Castelo Branco:
Não
se pode encampar, sob o nome de flagrante, diligências policiais
mais ou menos felizes, que venham, porventura, a descobrir e prender,
com alguma presteza, indigitados autores de crimes. É preciso não
confundir os efeitos probatórios que possam resultar de tais
diligências, quanto ao mérito da ação, e as consequências
processuais, rigorosíssimas, decorrentes da flagrância, em si mesma
considerada. Pois que esta, nos crimes inafiançáveis, sujeita o
acusado à prisão, contemporaneamente ao delito. (...) A flagrância,
em qualquer de suas formas, por isso mesmo que se apóia na imediata
sucessão dos fatos, não comporta, dentro da relatividade dos juízos
humanos, dúvidas sérias quanto à autoria. Daí a grande prudência
com que se deve haver a justiça, em não confundi-la com diligências
policiais, post delictum, cujo valor probante, por mais forte que
pareça não se encadeie em elos objetivos, que entrelacem,
indissoluvelmente, no tempo e no espaço, a prisão e a atualidade
ainda palpitante do crime.
(Da
prisão em flagrante, 5 edição, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 54)
Acerca
do assunto, já se posicionou o STF:
A
doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos frutos da árvore
envenenada) repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios
probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento
ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da
ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por
efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados
probatórios somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão
de anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes
estatais, que desrespeitaram a garantia constitucional da
inviolabilidade domiciliar. Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em
decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios
a que os órgãos estatais somente tiveram acesso em razão da prova
originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por
agentes públicos, de direitos e garantias constitucionais e legais,
cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo
brasileiro, traduz significativa limitação da ordem jurídica ao
poder do Estado em face dos cidadãos. Ser, no entanto, o órgão da
persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos
elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova
que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da
prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação
causal, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente
admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude
originária.
(HC
93.050-RJ, 2ª. T. Rel. Celso de Mello, 10.6.2008, v.u).
A
atuação policial ao arrepio da lei e da constituição acaba
contribuindo para a sensação de impunidade dos cidadãos, já que
todo o trabalho de apuração se tornará inválido em Juízo,
garante dos direitos fundamentais de quem quer que seja. Por essa
razão, urge que a polícia trabalhe muito mais a área de
inteligência, mão mais se admitindo persecução com base em
violações a direitos fundamentais ou de forma truculenta, abusiva.
Esse sentimento, a propósito, foi retratado pelos editoriais dos
principais jornais do país (Estado de São Paulo, em 12.6.2011, e
Folha de São Paulo, em 13.6.2011) após o reconhecimento de nulidade
da Operação Satiagraha pelo STJ envolvendo o banqueiro Daniel
Dantas.
Pois
bem. Diante de todo o exposto, e porque sou juiz de pobres e ricos,
indistintamente, além de fiel à Constituição Federal, haja vista
indícios de que pode realmente ter havido violação à norma
constitucional (violação do domicílio), o que poderá redundar no
reconhecimento da obtenção da prova da materialidade dos crimes por
meio ilícito, ainda que por derivação, o que não se conformaria
com o devido processo legal, tenho que deva preponderar, por ora, o
estado de inocência do acusado, à luz do regime garantista
constitucional.
Além
disso, a consideração da certidão de antecedentes criminais
caracterizaria duplo e injurídico sancionamento (non bis in idem),
além de indesejado e inconstitucional (diante da intangibilidade da
coisa julgada) conteúdo estigmatizante. Como já motivei em várias
decisões anteriores envolvendo fatos dessa natureza, a partir da
Constituição Federal de 1988, devemos trabalhar, ordinariamente,
com o direito penal do fato e não com o direito penal do autor.
Sobre essa distinção, que é importante, leia-se doutrina de
Zaffaroni, Política Criminal Latinoamericana, p. 166. Sobre o
assunto, transcrevo:
Os
modelos deterministas, descaracterizados desde a opção pelo modelo
penal garantista, produziram, segundo Ferrajoli, desde o século
passado, uma crise regressiva no conteúdo da culpabilidade, seja
pela opção em substituí-la pela noção de periculosidade do réu
ou na elaboração de outras figuras similares de qualificação da
personalidade (modelos de culpabilidade pela conduta de vida).
(Aplicação
da Pena e Garantismo, Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho,
Lumen Juris, 3 edição, 2004, p. 38)
Quanto
à garantia da ordem pública, por seu turno, como bem aponta Aury
Lopes Júnior:
Muitas
vezes a prisão preventiva vem fundada na cláusula genérica
garantia da ordem pública, mas tendo como recheio uma argumentação
sobre a necessidade de segregação para o reestabelecimento da
credibilidade das instituições. É uma falácia. Nem as
instituições são tão frágeis a ponto de se verem ameaçadas por
um delito, nem a prisão é um instrumento apto para esse fim, em
caso de eventual necessidade de proteção. (...) Noutra dimensão, é
preocupante – sob o ponto de vista das conquistas democráticas
obtidas – que a crença nas instituições jurídicas dependa da
prisão de pessoas. Quando os poderes públicos precisam lançar mão
da prisão para legitimar-se, a doença é grave, e anuncia um grave
retrocesso para o estado policialesco e autoritário, incompatível
com o nível de civilidade alcançado. Na mais das vezes, esse
discurso é sintoma de que estamos diante de um juiz comprometido com
a verdade, ou seja, alguém que, julgando-se do bem (e não se
discutem as boas intenções), emprega uma cruzada contra os hereges,
abandonado o que há de mais digno da magistratura, que é o papel de
garantidor dos direitos fundamentais do imputado. Como muito bem
destacou o Min. Eros Grau (HC 95.009-4) 'o combate à criminalidade é
missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário).
(...) No que tange à prisão preventiva para em nome da ordem
pública sob o argumento de risco de reiteração de delitos, está
se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de
polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do
processo penal. Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível
de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal), é
flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a
Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em
relação a fatos futuros. (...) A prisão para garantia da ordem
pública sob o argumento de perigo de reiteração bem reflete o
anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja do que
pode (ou não) vir a ocorrer. Nem o direito penal, menos ainda o
processo, está legitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto,
indeterminado, imprevisível). Além de inexistir um periculosômetro
(tomando emprestada a expressão de ZAFFARONI), é um argumento
inquisitório, pois irrefutável. Como provar que amanhã, se
permancer solto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de
ser feita, tão impossível como a afirmação de que amanhã eu o
praticarei. Trata-se de recusar o papel de juízes videntes, pois
ainda não equiparam os foros brasileiros com bolas de cristal...
(Direito
Processual Penal e sua conformidade constitucional,
v. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 110-111)
Em
conclusão, para a devida validade da denúncia anônima,
imprescindível que ela venha acompanhada de ulteriores elementos
investigativos aptos a comprovar a veracidade da informação,
colhidos pelos meios hábeis do ponto de vista legal e constitucional
a compor um conjunto probatório, o que não existe no caso (diante
da invasão de domicílio sem mandado judicial e de investigações
precárias do ponto de vista da legalidade que beiram o abuso de
autoridade).
Isso
posto, RELAXO a
prisão do conduzido. Expeça-se alvará de soltura, salvo
se por outro motivo estiver preso.
Abra-se
vista ao Ministério Público, inclusive para se manifestar acerca da
competência.
Tendo
em vista a informação (folha 32) de que o conduzido está foragido
do sistema prisional de outra Comarca, providencie-se,
com brevidade, o seu recambiamento, oficiando-se, em acréscimo, para
este fim, ao Juízo da Execução Criminal de Criciúma.
Intimem-se.
Cumpra-se.
Barra
Velha (SC), 14 de agosto de 2012.
Iolmar
Alves Baltazar
Juiz
Substituto
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