Corte europeia cria regras para júri democrático
Nessa semana, a Europa viu um dos sistemas mais antigos de julgamento, o tribunal do júri popular, caminhar pela corda bamba e balançar. Desequilibrou ao ponto de assustar pelo menos os mais de 30 países europeus que mantêm alguma forma de júri, mas não caiu. A Corte Europeia de Direitos Humanos não decretou que julgamentos feitos pelo povo, em si, violam direitos fundamentais, mas ditou garantias mínimas que devem ser escritas e respeitadas pelos Estados europeus.
A problemática de uma decisão tomada por um corpo de jurados leigos é a falta de razões para ela. Os jurados não precisam — e, em muitos casos, não podem — explicar por que decidiram de determinada maneira. Ao final de um longo julgamento, então, muitas vezes o réu recebe o seu veredicto próprio e dito, sem qualquer explicação, apenas acompanhado da pena que terá de cumprir.
Agora, por ordem da corte europeia, as decisões dadas por tribunais do júri não podem mais ser assim. O condenado precisa compreender claramente as razões que levaram à sua condenação. De acordo com os juízes europeus, só assim fica garantido ao acusado um julgamento justo, como prevê a Convenção Europeia de Direitos Humanos.
A corte, por outro lado, ressaltou que não se pode exigir dos jurados, sem formação jurídica, que expliquem a sua decisão. A solução apontada pelos julgadores europeus está na parte do julgamento que necessariamente cabe a um juiz profissional: a elaboração das perguntas. As questões colocadas para o júri responder precisam ser precisas ao ponto de que, mesmo os jurados só podendo responder sim ou não, o acusado consiga entender as razões que levaram o grupo ao veredicto. Em bom português, o juiz que preside o júri não poderá mais, nos países europeus, elaborar apenas perguntas como “o fulano matou o sicrano”?” e “ele premeditou o crime?”.
Outro ponto que ficou estabelecido pela corte europeia é que, quando há mais de um acusado sendo julgado ao mesmo tempo, as perguntas precisam ser orientadas o máximo possível para cada um dos réus. Não podem ser coletivas. O júri tem de responder perguntas para cada um dos envolvidos, de maneira que eles consigam compreender as razões da sua condenação.
Ao afirmar que o tribunal do júri, por si só, não viola a Convenção Europeia de Direitos Humanos, o tribunal apontou que há procedimentos que garantem que as decisões não sejam arbitrárias, mesmo quando tomadas por leigos. Além de perguntas precisas, orientações dadas pelo juiz-presidente do tribunal do júri aos jurados, para que eles entendem as questões legais levantadas no caso também são garantias do acusado de ter um julgamento justo. Como exemplo, a corte europeia apontou um julgamento num júri francês em que os jurados tiveram de responder nada menos do que 768 questões. As respostas obtidas bastaram para justificar a decisão, sem que cada jurado precisasse explicar as suas razões.
Martelo do povo
Colocar nas mãos do povo o poder de decidir se um cidadão é criminoso e deve ficar atrás das grades é algo que a instituição Estado tem feito há séculos. Para os defensores do júri, é um dos pontos fortes da democracia. Concordem ou não, o fato é que, na Europa, os países mais desenvolvidos e com sistemas democráticos aplaudidos mundo afora mantêm até hoje a convocação de cidadãos para julgar acusados de determinados crimes, como o homicídio. É o caso da Áustria, Bélgica, da Espanha, do Reino Unido, da Noruega e da Suíça.
Em outro grupo de países europeus, não há julgamentos feitos única e exclusivamente por leigos. O que existe é a composição de um tribunal misto, com cidadãos leigos e juízes concursados, que chegam juntos a um veredicto. Aqui, se destacam a Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Portugal e o pequeno e rico Principado de Mônaco, além da Suíça e Noruega, que trabalham com júri e também com tribunais mistos.
Dos Estados que integram a Europa, em apenas 14 não existe nenhuma espécie de julgamento com a participação da sociedade. Dentro deste grupo, de destaque como potência europeia, dá para citar só a Holanda e Luxemburgo, e este último mais porque foi o local escolhido para sediar o Judiciário da União Europeia.
Esta semana, ao se debruçar sobre júri e respeito aos direitos fundamentais do homem, a Corte Europeia dos Direitos Humanos considerou que a existência ou não de julgamentos populares reflete a história, tradição e cultura de cada Estado e não é da alçada do tribunal padronizar isso. Cada governo é soberano para poder escolher o seu próprio sistema de Justiça criminal. O que cabe ao tribunal é apenas observar se essa escolha respeita os preceitos da convenção europeia assinada por todos.
A morte do ministro
A discussão sobre a validade do júri na Europa foi levada à corte pelo belga Richard Taxquet, que foi condenado há 20 anos por participar do assassinato de um ministro belga em 1991. Na época, o homicídio teve grande repercussão dentro do país e foram apontadas inclusive razões políticas para o crime. O belga reclamou que foi condenado sem que entendesse direito os motivos.
Foram levados para um tribunal do júri na Bélgica oito acusados pela morte do ministro, entre eles, Taxquet. Uma das provas, mesmo que não oficialmente parte do processo, que sustentou a participação de Taxquet no assassinato foi o depoimento de uma testemunha anônima apenas para promotores, e não durante o julgamento. De acordo com o processo, a testemunha anônima não presenciou o que contou. Ela se baseou em relatos de outra testemunha ocular, nome de quem se negou a revelar.
Para a defesa de Taxquet, impedir que o réu soubesse quem é a testemunha violou o seu direito de se defender corretamente. Esta argumentação, no entanto, não foi considerada pela Corte Europeia. Para os julgadores, o simples fato de o condenado não ter entendido os motivos da sua condenação são suficientes para considerar o júri arbitrário e, portanto, não válido.
A decisão foi tomada pela instância máxima da Corte Europeia. Em 2009, uma turma do tribunal já havia considerado o julgamento inválido. De olho nisso, a Bélgica modificou a sua legislação, primeiro para tentar adaptar às regras do júri aos preceitos da convenção europeia. E, segundo, para permitir que a revisão de júris considerados irregulares pela Corte Europeia dos Direitos Humanos. Taxquet, então, além de receber 4 mil euros (quase R$ 9,4 mil) de indenização por danos morais, volta para o banco dos réus no Judiciário belga.
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21/11/2010
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