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23/09/2013

ENTRE TÊMIS E LEVIATÃ : O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NA TENSÃO ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE Professor Doutor Orlando Villas Bôas Filho

ENTRE TÊMIS E LEVIATÃ : O ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO NA TENSÃO ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE
Professor Doutor Orlando Villas Bôas Filho
Professor da Faculdade de Direito - UPM
RESENHA
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado
democrático de direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
O livro de Marcelo Neves, intitulado Entre Têmis e Leviatã:
uma relação difícil: o Estado democrático de direito a partir e além
de Luhmann e Habermas, congrega qualidades poucas vezes
encontradas na produção nacional acerca do direito. Trata-se de
uma obra originalmente publicada em alemão, em 2000, pela
Editora Nomos que, sob vários aspectos, sintetiza um longo
itinerário intelectual, pois a partir dela o autor obteve seu título de
livre-docente na Universidade de Friburgo, Suíça.
O livro retoma e aprofunda temas já tratados em outros livros
(sobretudo no intitulado A constitucionalização simbólica, publicado
em 1994), em capítulos de obras coletivas e em artigos dispersos por
inúmeras publicações especializadas.Trata-se, portanto, de uma
obra de síntese que permite reconstruir os principais aspectos do
pensamento desse autor.
2
Várias são as qualidades deste livro, cuja pretensão, já
antevista no próprio título, não é em nada singela, uma vez que
expressa um esforço de síntese que, além de recuperar
reconstrutivamente, com riqueza de detalhes, a tensão existente
entre a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e a teoria do
discurso de Jürgen Habermas, procura avançar nas discussões,
fornecendo interpretações inovadoras e aportes teóricos importantes
para a compreensão do Estado democrático de direito na atualidade,
sobretudo no que concerne à articulação entre a facticidade do
poder estatal e a pretensão de legitimidade do direito (associados,
em termos metafóricos, às figuras de Leviatã e Têmis,
respectivamente).ii
Para dar conta da tarefa a que se propõe, a obra está
estruturada em cinco capítulos seguidos de um excurso, intitulado
Perspectiva: do Estado democrático de direito ao direito mundial
heterárquico ou à política interna mundial?, inserido à guisa de
observações finais, no qual são discutidos os impactos engendrados
pela emergência de ordens jurídicas globais no plano do Estado
democrático de direito.
Na estruturação da obra percebe-se claramente – inclusive por
indicação do próprio autor – um nexo entre os capítulos que permite
dividi-la em duas partes: a primeira, abrangendo os três primeiros
capítulos, apresenta uma pormenorizada análise reconstrutiva dos
modelos teóricos com os quais o autor dialoga, e a segunda, que
abarca os dois últimos capítulos e o excurso que figura como
conclusões finais, veicula o modelo de fundamentação e as
condições de realização do Estado democrático de direito, além de
abordar criticamente os novos problemas que lhe são impostos pela
emergência de ordens jurídicas globais e pela política mundial.
3
Os três capítulos iniciais, que compõem a primeira parte do
livro, reconstituem criticamente os modelos propostos por Luhmann
e Habermas, pontuando seus distanciamentos e, o que é mais
interessante, seus paralelos.iii Trata-se de uma análise que, além de
desvelar convergências e divergências entre esses dois paradigmas,
também procura apontar as limitações apresentadas por ambas. No
que concerne a esse ponto, é preciso ressaltar que, embora o autor
se preocupe em observar que sua intenção não é realizar uma
reconstrução exaustiva das teorias desses dois pensadores alemães,
a profundidade e a extensão de sua análise fornecem um panorama
abrangente acerca destas teorias que embasará, em seguida, a
construção do argumento do autor.
Assim, essa primeira parte da obra tem início com a análise
dos modelos de evolução social propostos por Luhmann e Habermas,
seguida de um cotejo das diferenças paradigmáticas que estruturam
a teoria dos sistemas e a teoria do discurso, ao redor da diferença
“sistema/ambiente” e a diferença “sistema/mundo da vida”,
respectivamente. Por fim, tendo por base as digressões analíticas
realizadas anteriormente, o autor enfoca a concepção de Estado
democrático de direito nas perspectivas da teoria dos sistemas e da
teoria do discurso.
Ainda nessa primeira parte da obra, além da abrangente
exposição das concepções de Luhmann e Habermas, Marcelo Neves
também já começa a apontar as limitações apresentadas por tais
concepções para lidar com o pluralismo que caracteriza a sociedade
complexa hodierna, aspecto esse que será retomado e aprofundado
em seguida.
Nesse sentido, a segunda parte do livro – na qual o autor
estrutura um modelo de Estado democrático de direito e aborda as
4
condições e os novos problemas enfrentados por este em meio às
exigências da sociedade mundial e que está amplamente respaldada
pelas análises realizadas nos capítulos anteriores – inicia-se pela
retomada comparativa dos traços básicos dos modelos de Luhmann
e Habermas a respeito da modernidade e do Estado democrático de
direito indicando, sobretudo, a ênfase dada pelo autor da teoria dos
sistemas ao dissenso conteudístico que caracteriza a sociedade
moderna e a ênfase da teoria do discurso na obtenção do consenso a
partir de procedimentos com potencialidade normativa universal.
Feita essa comparação inicial, Marcelo Neves aponta a
sobrecarga que a pretensão consensualista do modelo habermasiano
impõe ao horizonte dos agentes comunicativos (“mundo da vida”),
tornando-o, segundo o autor, incapaz de dar conta adequadamente
da divergência em torno de conteúdos morais e valorativos que são
próprios da sociedade moderna, caracterizada pela superação da
moral conteudística e hierárquica que marca as sociedades
tradicionais.
A esse respeito, vale ressaltar que Marcelo Neves considera o
conceito habermasiano de intersubjetividade insuficiente para a
apreensão da complexidade da sociedade contemporânea, pois,
segundo ele, as relações intersubjetivas orientadas para o
entendimento comunicativo engendram uma pretensão
consensualista que não seria compatível com o caráter plural e
multifacetado que caracteriza as sociedades pós-tradicionais.iv
Baseando-se, em parte, na abordagem de Gunther Teubner, o
autor propõe uma releitura do modelo habermasiano à luz da teoria
dos sistemas, sugerindo assim que o conceito de “mundo da vida”
seja considerado uma esfera social na qual a comunicação é
reproduzida por meio da linguagem natural cotidiana e não a partir
5
da especialização que pauta a linguagem dos sistemas funcionais.v
Nesse particular, importa notar que Marcelo Neves explora aspectos
virtualmente contidos na proposta de Teubner que não haviam sido
levados até suas últimas conseqüências pelo autor alemão. Um
exemplo disso está em sua ênfase no dissenso intersubjetivo que
decorre da hipercomplexidade da sociedade moderna.vi
Desse modo, Marcelo Neves caracteriza a sociedade moderna
como pautada não pelo consenso, mas pelo dissenso conteudístico
decorrente de uma esfera pública pluralista, na qual os conteúdos
valorativos e as visões de mundo discrepantes se entrechocam.
Trata-se da idéia de uma “arena do dissenso” que funciona como um
campo complexo de interferência e tensão entre “mundo da vida”
(entendido, em termos genéricos, como uma esfera social não
estruturada sistêmico-funcionalmente),vii subsistemas
funcionalmente diferenciados (economia, ciência, educação, arte
etc.) e sistema constitucional.
No entanto, a própria continuidade da esfera pública pluralista
somente é garantida pela existência de procedimentos
constitucionais que assegurem o fluxo livre e eqüitativo de valores,
expectativas e interesses heterogêneos, razão pela qual o consenso
procedimental se coloca como pressuposto imprescindível à própria
salvaguarda do caráter plural e multifacetado que caracteriza a
esfera pública. E é justamente nesse contexto que o Estado
democrático de direito é definido pelo autor como uma forma de
intermediação entre consenso procedimental e dissenso
conteudístico.
Essa proposta que, em alguns de seus aspectos, se aproxima
da reinterpretação feita por Ingeborg Maus acerca da teoria kantiana
da legislação democrática, também se mostra coerente com o
6
diagnóstico relativo à hipercomplexidade da sociedade hodierna, na
medida em que, baseando-se na idéia de “hierarquias entrelaçadas”
[tangled hierarchies], proposta por Douglas Hofstadter e amplamente
utilizada por Niklas Luhmann,viii não superestima o processo
legislativo em detrimento dos demais procedimentos do Estado
democrático de direito.
Ao enfatizar a circularidade internormativa e
interprocedimental como característica do Estado democrático de
direito, com a decorrente rejeição da prevalência hierárquica do
processo legislativo em relação aos demais procedimentos, a
perspectiva de Marcelo Neves afasta o problema da imposição
unilateral de conteúdos morais e valorativos que poderia criar
restrições incompatíveis com a multiplicidade de visões de mundo
que caracteriza a esfera pública pluralista da sociedade
contemporânea. A idéia de “hierarquias entrelaçadas” permite a
inserção crítica permanente no âmbito dos sistemas político e
jurídico, o que permite que as visões e os argumentos minoritários
permaneçam como possibilidades contínuas de mutação da ordem
jurídico-política.ix
Trata-se, portanto, de uma perspectiva preocupada em
manter-se adequada ao caráter plural da sociedade pós-tradicional,
na qual não é mais possível conceber a soberania do povo (entendida
como forma de heterolegitimação do Estado que, na perspectiva
sistêmica, deve articular-se com a autolegitimação proporcionada
pela autonomia funcionalmente condicionada e territorialmente
determinada do sistema político) em termos da manifestação de uma
vontade geral homogênea e unitária.
Atento ao caráter heterogêneo que é próprio de uma concepção
despersonalizada de soberania do povo – algo que expressa uma
7
posição embasada em pressupostos distanciados das premissas da
filosofia da consciência –, o autor procura caracterizá-la em termos
de uma “inserção contínua dos mais diversos valores, interesses e
exigências presentes na esfera pública pluralista nos procedimentos
do Estado Democrático de Direito”.Trata-se, assim, de um fator de
reciclagem permanente do Estado diante de novas situações e
possibilidades constituindo-se também como condição indispensável
à sua heterolegitimação num contexto hipercomplexo marcado pela
heterogeneidade ética e pelo pluralismo das posições jurídicas.
Entretanto, Marcelo Neves não se contenta apenas em
construir um modelo teórico de Estado democrático de direito com a
pretensão de aplicação indistinta a todo e qualquer contexto social.
O autor se preocupa em indicar o caráter heterogêneo que marca a
sociedade moderna, definida enquanto sociedade mundial (ou seja,
sem barreiras territoriais à comunicação), que condiciona de
maneiras diferentes a realização do Estado democrático de direito,
razão pela qual distingue, no desenvolvimento da sociedade
moderna, uma bifurcação que leva à sua divisão em uma
modernidade central e outra periférica.
Essa distinção entre modernidade central e periférica – que
também é explorada pelo autor em outros textosxi – constitui um
esforço de fundamental importância para a superação de uma visão
homogeneizada e empiricamente limitada da sociedade moderna.
Assim, Marcelo Neves enfatiza que nos países da modernidade
central, nos quais se encontrariam os Estados democráticos de
direito historicamente realizados, seria possível encontrar
autonomia sistêmico-funcional e constituição de uma esfera pública,
nos termos anteriormente definidos, fundada na generalização
institucional da cidadania, enquanto nos países da modernidade
8
periférica observar-se-ia justamente o contrário, ou seja, a falta de
autonomia sistêmico-funcional e a insuficiente constituição de uma
esfera pública pautada na generalização institucional da
cidadania.xii
Indicadas as diferenças entre esses dois contextos, Marcelo
Neves expõe os problemas específicos que o Estado democrático de
direito encontraria em cada um deles. É nesse sentido que,
referindo-se aos países da modernidade central, o autor ressalta que
o problema fundamental estaria relacionado à heterorreferência do
Estado (que se expressa tanto na dificuldade de responder
adequadamente às exigências dos demais sistemas funcionais
quanto na dificuldade de uma inter-relação adequada entre política
e direito), ao passo que, nos países da modernidade periférica, o
problema estaria relacionado essencialmente à auto-referência
deficitária dos sistemas político e jurídico.
Nas sociedades da modernidade periférica, definida como
negativa, a exclusão social e o bloqueio destrutivo à auto-referência
do direito, que conduz a uma situação de “corrupção sistêmica”,
apresentaria uma tendência à generalização na experiência jurídica,
e o Brasil, segundo o autor, figuraria justamente nesse contexto
como um exemplo de uma sociedade na qual se observa a
persistência de privilégios e exclusões que obstruem a construção de
uma esfera pública pautada pela generalização institucional da
cidadania e a instrumentalização particularista do direito por
indivíduos ou grupos sobreintegrados.xiii
Uma característica relevante que a abordagem de Marcelo
Neves (apesar de estar fundada em premissas teóricas diversas)
partilha com análises recentes acerca do Brasil – tais como as de
Lúcio Kowarick, Luís Roberto Cardoso de Oliveira, Wanderley
9
Guilherme dos Santos e Jessé Souza – consiste na reinterpretação
crítica da realidade brasileira não em termos da clássica referência
explicativa a condicionantes pré-modernas que obliterariam nosso
ingresso na modernidade.xiv
A sociedade brasileira é tratada em termos de modernidade,
ainda que periférica. Isso significa que se parte da premissa de que
em nossa sociedade teria havido a superação do moralismo
hierarquicamente estruturado que caracteriza as sociedades
tradicionais. Ao indicar as vicissitudes negativas que, em seu
entendimento, caracterizam a experiência brasileira concernente à
implementação do Estado democrático de direito, Marcelo Neves
ressalta que “não se trata aqui de um problema estritamente
antropológico-cultural do Brasil. Ele é indissociável do próprio tipo
de relações sociais em que se encontra envolvido o Estado na
modernidade periférica em geral, ultrapassando os limites de
‘antropologias nacionais’ e correspondentes singularidades
culturais”.xv
Por fim, são analisadas as pressões engendradas pela dinâmica
da sociedade mundial e pelos conflitos étnicos e fundamentalistas
sobre o Estado democrático de direito que, segundo o autor,
enfraquecem sua capacidade funcional e força integrativa, ensejando
a necessidade de busca de mecanismos, procedimentos e
instituições que forneçam alternativas, com caráter jurídico e
político, à incapacidade regulatória e déficits funcionais do Estado.
Para tanto, empreende uma análise que conjuga tanto a perspectiva
de Gunther Teubner acerca da pluralidade heterárquica de ordens
jurídicas que caracterizaria a sociedade mundial hodierna afetando
a unidade hierárquica do Estado democrático de direito quanto a
proposta de Jürgen Habermas que procura superar os impasses e
10
limites da capacidade reguladora do Estado na sociedade mundial
coetânea na unidade de uma política mundial transnacional.
Partindo das perspectivas de Teubner e Habermas, Marcelo
Neves, sem desconsiderar as pressões exercidas pela globalização
econômica e pelos fundamentalismos e conflitos étnicos que
caracterizam os tempos atuais, enfatiza que o Estado democrático de
direito, que não deve ser reduzido apenas à sua forma usual de
“Estado nacional”, se apresenta como a única instância institucional
que se firmou contra as investidas expansionistas do sistema
econômico, além de constituir um importante mecanismo de
reprodução regional da sociedade mundial heterárquica, permitindo
assim a implementação e proteção de direitos que não poderiam ser
adequadamente tutelados pelo intervencionismo de escala mundial.
Com a leitura deste livro fascinante, observa-se a
extraordinária capacidade do autor em articular temas e em tomar
um distanciamento conseqüente das teorias que mobiliza para
sustentar seu argumento, explorando-as em suas afinidades e
diferenças.
Entretanto, essa proposta de Marcelo Neves não consiste – e
isso fica bastante evidente não apenas pelas ressalvas feita pelo
autor, mas, sobretudo, pela sofisticação e profundidade de sua
análise – numa abordagem eclética que busca levar a um
denominador comum dois modelos que, como é sabido, divergem em
pontos nevrálgicos. Trata-se, antes, de uma apropriação original e
conseqüente que retira, de ambos, os elementos necessários à
construção de um modelo mais abrangente, cuja pretensão é dar
conta das limitações encontradas nas duas perspectivas com as
quais o autor dialoga.
11
Assim, se é possível afirmar que o grau de maturidade teórica
das apropriações feitas do pensamento de clássicos para a análise
do Brasil e de suas instituições pode ser aferido pela capacidade
com que essas apropriações tornam possível um uso criativo e
consistente de tais pensamentos, não há quem possa discordar de
que esta obra de Marcelo Neves constitui uma expressão acabada
dessa maturidade.
Os principais artigos e capítulos em obras coletivas de Marcelo Neves disponíveis no Brasil são:
NEVES, M. A interpretação jurídica no Estado democrático de direito. In: GRAU; E. R.; GUERRA
FILHO, W. S. (Org.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São
Paulo: Malheiros, 2001. p. 356-376; ______. Del pluralismo jurídico a la miscelánea social: el
problema de la falta de identidad de la(s) esfera(s) de juridicidad en la modernidad periférica y sus
implicaciones en América Latina. In: VILLEGAS, M. G.; RODRÍGUEZ, C. A. (Ed.). Derecho y
sociedad en América Latina: un debate sobre los estudios jurídicos críticos. Bogotá: Universidad
Nacional de Colômbia, 2003. p. 261-290; ______. Do consenso ao dissenso: o Estado
democrático de direito a partir e além de Habermas. In: SOUZA, J. (Org.). Democracia hoje: novos
desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
2001. p. 111-163; ______. E se faltar do décimo segundo camelo? Do direito expropriador ao
direito invadido. In: ARNAUD, A-J.; LOPES JR., D. Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia
jurídica. Traduções de Dalmir Lopes Jr.; Daniele Andréa da Silva Manão e Flávio Elias Riche. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 145-173; ______. Entre subintegração e sobreintegração: a
cidadania inexistente. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, p. 253-275,
1994; ______. Justiça e diferença numa sociedade global complexa. In: SOUZA, J. (Org.).
Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 2001. p. 329-363; ______. Luhmann, Habermas e o Estado de direito.
Lua Nova – Revista de Cultura Política, n. 37, p. 93-106, 1996; ______. Estado democrático de
direito e discriminação positiva: um desafio para o Brasil. In: SOUZA, J. (Org.). Multiculturalismo e
racismo: uma comparação Brasil e Estados Unidos. Brasília: Paralelo, 1997. p. 253-275.
ii Trata-se, nesse sentido, de uma preocupação semelhante à que aparece no livro Direito e
democracia: entre facticidade e validade, de Jürgen Habermas. Entretanto, o encaminhamento da
análise da tensão entre facticidade do poder e pretensão de legitimidade baseia-se
essencialmente na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.
iii Uma das inovações na análise comparativa dos modelos de Habermas e Luhmann que pode ser
encontrada na abordagem de Marcelo Neves consiste na indicação de seus pontos de
convergência, e não na ênfase em seus distanciamentos. Via de regra, as análises que cotejam os
modelos desses dois autores ressaltam as clivagens existentes entre ambas. Em certo sentido,
isso decorre do próprio distanciamento que Habermas e Luhmann reciprocamente se impõem
desde as discussões que deram origem à obra coletiva, intitulada Teoria da sociedade ou
tecnologia social, publicada no início da década de 70, cujos desdobramentos posteriores
aparecem, por exemplo, nos livros O discurso filosófico da modernidade e direito e democracia:
entre facticidade e validade, de Habermas e nos artigos Autopoiesis, ação e entendimento
comunicativo e Intersubjetividade ou comunicação: dois diferentes pontos de partida para a
construção de uma teoria sociológica, e nos livros O direito da sociedade e A sociedade da
sociedade, de Luhmann.
12
iv Para uma análise das insuficiências atribuídas por Neves ao modelo habermasiano, ver: NEVES,
M. Entre Têmis e Leviatã, p. 125 e ss.; ______. Do consenso ao dissenso: o Estado democrático
de direito a partir e além de Habermas. In: SOUZA, J. (Org.). Democracia hoje: novos desafios
para a teoria democrática contemporânea, p. 111-136.
Ao analisar os problemas de regulação social decorrentes do caráter reflexivo que a teoria dos
sistemas atribui ao direito, Gunther Teubner propõe um modelo explicativo do modo pelo qual
ocorreria a inter-relação entre subsistemas sociais. No livro intitulado O direito como sistema
autopoiético, Teubner propõe a utilização de dois mecanismos que, não obstante distintos, uma
vez conjugados, permitiriam implementar a regulação social pelo direito. Trata-se dos mecanismos
da interferência e da informação (cf. TEUBNER, G. O direito como sistema autopoiético. Tradução
de José Engrácia Antunes. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 130). Segundo
Teubner, os subsistemas sociais (direito, economia, política etc.), por comporem a sociedade e
estarem pautados na comunicação, poderiam contar com o mecanismo da interferência que
permitiria a articulação de tais subsistemas a partir de um mesmo e comum evento comunicativo.
Para Teubner, isso seria possível pelas seguintes razões: em primeiro lugar, porque todos os
subsistemas sociais utilizam o sentido (Sinn) como matéria-prima. Em segundo lugar, porque tais
subsistemas reproduzem-se com base na comunicação e, em terceiro lugar, porque todas as
formas de comunicação especializadas em quaisquer dos subsistemas sociais (interação,
organização, subsistema funcional) constituem, simultaneamente e uno actu, formas de
comunicação social geral (cf. Idem, ibidem, p. 173). A esse respeito, embora Teubner enfatize que
sua proposta não acarreta uma exclusão da clausura operacional dos sistemas, pois interferência
não significa que a informação seja carreada entre os subsistemas por meio de uma relação do
tipo input/output, mas sim gerada novamente no interior de cada subsistema social, mediante um
mesmo evento comunicativo, sua proposta o leva pressupor a existência de algo semelhante ao
“mundo da vida”, no qual circulariam comunicações gerais não balizadas pelos códigos
especializados dos subsistemas funcionais (cf. Idem, ibidem, p. 177). Posteriormente, Teubner
procurou desenvolver uma nova solução para a questão da regulação entre subsistemas,
utilizando o conceito de reentrada (re-entry), proposto por George Spencer Brown e amplamente
utilizado por Niklas Luhmann. Cf. TEUBNER, G. Altera pars audiatur: law in the collision of
discourses. In: RAWLINGS, R. (Ed.). Law, society and economy: centenary essays for the London
School of Economics and Political Science 1895-1995. Oxford: Clarendon Press, 1997. p. 149-176.
Para uma análise crítica da proposta de Teubner, ver: VILLAS BÔAS FILHO, O. O direito na teoria
dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Max Limonad, 2006. p. 237-247.
vi Ao elaborar sua proposta de interferência mútua entre os subsistemas sociais, Teubner baseiase
num conceito genérico de “mundo da vida” que, em sua concepção, aparece como uma
instância caracterizada por comunicações gerais não especializadas. Essa utilização genérica do
conceito de “mundo da vida”, feita por Teubner, lhe valeu a crítica de Habermas que, reportandose
à sua abordagem, afirma: “esta proposta não se presta à conceitualização do direito como um
sistema autopoiético. Ele aponta, ao invés disso, na direção de uma teoria do agir comunicativo, a
qual introduz a distinção entre um ‘mundo da vida’, ligado ao medium da linguagem coloquial, e
sistemas dirigidos por códigos especiais, abertos adaptativamente ao ambiente”. HABERMAS, J.
Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1, p. 81. Marcelo Neves, entretanto, numa abordagem mais
precisa, ressalta que, quando alude ao conceito de “mundo da vida”, não está se referindo ao
horizonte de ação dos agentes comunicativos, e sim a uma esfera social não estruturada em
termos sistêmico-funcionais. Com isso, consegue explorar, melhor que Teubner, a idéia de um
“mundo da vida” como arena multicultural e plural, na qual a interação é pautada tanto pelo
consenso quanto pelo dissenso. Para uma análise pormenorizada do que Marcelo Neves entende
por “mundo da vida”, ver: NEVES, M. Do consenso ao dissenso, p. 126 e ss; ______. Entre Têmis
e Leviatã, p. 125 e ss.
vii Note-se que, conforme já ressaltado anteriormente, Marcelo Neves atribui ao conceito de
“mundo da vida” uma conotação distinta da que é dada por Habermas que, ao considerá-lo o
horizonte dos “agentes comunicativos”, orientados à busca do entendimento intersubjetivo, acaba
sobrecarregando-o com uma pretensão consensualista. É certo que o autor não desconsidera que,
em Habermas, o consenso não é fático, funcionando normativamente como uma idéia reguladora.
Entretanto, mesmo assim, a perspectiva habermasiana carrega consigo uma pretensão
consensualista inverossímil no contexto da hipercomplexidade que caracteriza a sociedade
13
contemporânea. Cf. NEVES, M. Do consenso ao dissenso, p. 125; ______. Entre Têmis e Leviatã,
p. 125; ______. Luhmann, Habermas e o Estado de direito, p. 93 e ss.
viii A esse respeito, veja-se, por exemplo, LUHMANN, N. La restitution du douzième chameau: du
sens d’une analyse sociologique du droit. In: Droit et Société. n. 47, 2001, p. 23.
ix Essa questão é tratada especialmente nas seções 2 e 6 do capítulo IV do livro. Na última seção
desse capítulo o autor propõe um interessante modelo de interpretação jurídica no Estado
democrático de direito, que recupera aspectos do pensamento de Wittgenstein para fundamentar
critérios de correção, de caráter não fundamentalista, nas interpretações. Essa proposta já havia
sido publicada anteriormente pelo autor em: NEVES, M. A interpretação jurídica no Estado
democrático de direito, p. 356-376.
NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã, p. 165.
xi Cf. NEVES, M. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994. p. 147 e ss;
______. E se faltar do décimo segundo camelo? Do direito expropriador ao direito invadido, p.
145-173; ______. Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente, p. 253-275;
______. Luhmann, Habermas e o Estado de direito, p. 93-106, 1996
xii Separação entre modernidade central e periférica e a consideração da segunda como
contraponto negativo da primeira não é isenta de problemas, tal como reconhece o próprio autor
que procura distanciar sua proposta das concepções ideológicas e esquemáticas que pautaram as
“teorias da exploração” nas décadas de 60 e 70. Cf. NEVES, M. A constitucionalização simbólica,
p. 147; ______. Entre Têmis e Leviatã, p. 226.
xiii A esse respeito, ver especialmente: ______. Entre subintegração e sobreintegração: a
cidadania inexistente, p. 253-275; E se faltar do décimo segundo camelo? Do direito expropriador
ao direito invadido, p. 146 e ss.
xiv Para uma análise desses paralelismos, ver: VILLAS BÔAS FILHO, O. Uma abordagem
sistêmica do direito no contexto da modernidade brasileira. 2006. Tese (Doutorado em Direito) –
Faculdade de Direito – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 253-270.
xv NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã, p. 247-248.

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