As internações de urgência nos hospitais
e o direito dos consumidores -4-6-2012
Por
Rizzatto Nunes
Num
de meus artigos do ano passado (de 18-4-2011) eu contei uma estória para ilustrar o drama vivido por centenas de
consumidores neste país. Vou transcrevê-la a seguir e depois continuo o
presente.
Ei-la:
José
da Silva, usuário do plano de saúde X, que firmou para si e sua família, chega
ao Hospital Y, para internar sua esposa que teve um ataque cardíaco. A situação
é grave e ela necessita de atendimento médico urgente.
Ele, tenso, vai ao
balcão de atendimento da entrada de
emergência do hospital e entrega a carteirinha do plano de saúde. A
atendente, então, com muita calma, num contraste muito forte com a dor do Sr.
José, pede a guia de internação.
José está tão nervoso
que sequer entende o pedido:
“Guia ? Que guia ?“.
“Para sua esposa dar
entrada no hospital o senhor tem que me apresentar a guia de internação
expedida pelo seu plano“, responde a mocinha do balcão, com uma frieza de
mármore e, claro, lendo um roteiro escrito a sua frente.
Confuso, José gagueja e
diz que não tem guia alguma. E, levantando a voz, assim, meio sem querer,
aponta para sua mulher deitada na maca:
“Ela teve um ataque...
São duas horas da madrugada! Ela teve um ataque...precisa de ajuda...”
“Eu sei meu senhor. Eu
sei. Mas este é o procedimento.”, devolveu a mármore que fala.
José já ia responder,
quando a treinada funcionária hospitalar interviu:
“Mas, não se preocupe.
Nós temos a solução. O senhor assine, por favor, um cheque-caução e me entregue
que está tudo resolvido “
“O que é isso?”,
perguntou, atônito, José.
“É o seguinte: o
senhor deixa um cheque conosco; ele fica como garantia dos gastos aqui no
hospital; se o plano de saúde não cobrir os valores que o hospital vai cobrar,
então, nós depositamos o cheque”
“Mas, como? Se eu
tenho plano de saúde é exatamente pra não ter que passar por isso. Veja minha
mulher, ela está morrendo... Está morrendo!”.
“Calma, calma. É
rápido. Pegue seu talão que eu vou calcular quanto é o valor para o
preenchimento...”
“Eu... Eu não tenho
talão de cheque aqui comigo”.
“Então me passa o
relógio!”
*
* * * * * * *
A narrativa da estória (tirando,
claro, o pedido do relógio) mostrava o que acontecia regularmente nos
atendimentos de urgência de muitos hospitais brasileiros. Por isso,
evidentemente, a Lei 12.653, recentemente promulgada, que tipificou o crime de condicionamento de
atendimento médico-hospitalar emergencial é bem vinda[i].
Ela coloca uma pá de cal nos absurdos argumentos que sempre pretenderam
justificar em Juízo a validade do procedimento.
Assim, escrevo este
artigo não para falar do que já sabemos, mas apenas para lembrar que, como se
trata de lei penal, a mesma não retroage e existem centenas de casos de abusos
praticados anteriormente nos moldes em que a lei agora vem coibir
expressamente. E, quero consignar que esses consumidores que foram violados no
passado não estão desprotegidos. Isso porque, mesmo antes da introdução desse
novo crime no Código Penal (CP) já era possível enquadrar a conduta lesiva dos
hospitais nas normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e até do próprio
CP.
Com efeito, o poder
Judiciário já vinha anulando contratos obtidos desse modo abusivo pelos
hospitais, com base nas normas em vigor. E mais: um elemento importante que foi
considerado muitas vezes dizia respeito ao ônus da prova para a demonstração da
lisura do procedimento. Entendia-se que havia presunção “juris tantum” de que,
em internações hospitalares de urgência, os funcionários dos hospitais impunham
seus contratos e títulos aos próprios pacientes ou seus acompanhantes.
Transcrevo, para
terminar, trechos de uma dessas decisões:
“(...)conforme vem decidindo esta C.
Câmara, toda vez que o consumidor alega que foi coagido a assinar contrato de
prestação de serviço hospitalar ou o chamado cheque-caução numa internação de
emergência, inverte-se o ônus da prova para que o hospital demonstre o inverso.
Isto é, há mesmo presunção juris tantum de que, em internações
hospitalares de urgência, os funcionários dos hospitais impõem seus contratos
aos próprios pacientes ou seus acompanhantes em flagrante violação ao sistema
legal. Infelizmente, trata-se de prática conhecida que vige no setor.
Com efeito, a prática é claramente
abusiva, conforme definido pelo Código de Defesa do Consumidor, no inciso V do
artigo 39, que assim dispõe:
‘Art. 39. É vedado ao fornecedor de
produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
V- exigir do consumidor vantagem
manifestamente excessiva.”
E, para se fixar o sentido de “vantagem
manifestamente excessiva”, deve-se valer do § 1º do artigo 51 do mesmo diploma
legal, que, por sua vez, dispõe:
‘§1º Presume-se exagerada, entre outros
casos, a vantagem que:
I – ofende os princípios fundamentais do
sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações
fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto
ou o equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa
para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o
interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso’.
Não resta dúvida, portanto, de que a
imposição de contrato ou título de crédito a ser assinado na véspera de uma
internação de emergência é ilegal. E, se assim o é, como de fato se verifica,
tal comportamento dos funcionários dos hospitais ___ claro, a mando
dos administradores e proprietários destes ___ configura em tese o
crime de constrangimento ilegal previsto no artigo 146 do Código Penal, assim
tipificado:
‘Art.
146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe
haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena
- detenção, de três meses a um ano, ou multa.’
Esta C. Câmara vem decidindo nesse
sentido regularmente. Por exemplo nas apelações 7.051.878-4, Des. Relator
Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, j. 25.06.08, v.u. e 7.109.503-1,
Des. Relator Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, j. 04.02.09, v.u.
Destaque-se do apelo nº 7.051.878-4,
acima citado, o seguinte trecho que deixa patente o abuso:
‘Anote-se que a prática abusiva da autora contra a
ré se deu no ato da internação, que se realizava em caráter de urgência,
previamente a qualquer definição do valor final devido, que dependia de
apuração, sem que fosse concedido tempo suficiente para a devida reflexão por
parte da ré, dadas as condições da paciente.
Como bem apontado pela r. sentença atacada, ‘a
conduta da autora, na hipótese, caracteriza verdadeira coação psicológica, a
invalidar o termo de responsabilidade e a emissão da nota promissória
referidos, sem o que nenhuma obrigação reste a cargo da ré, a respeito das
despesas ora cobradas.’ (fls. 146)’.
Desse modo, patente o abuso da exigência feita pelo
hospital réu que não se desincumbiu, repita-se, de seu ônus de provar a
licitude do contrato firmado, era de se julgar procedente a ação.
Diante do exposto, dá-se provimento ao
recurso para julgar a ação procedente.”[ii]
[i]
A Lei acrescentou o art. 135-A ao Código Penal:
Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial
Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial
Art. 135-A. Exigir cheque-caução,
nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de
formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar
emergencial:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da
negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o
triplo se resulta a morte.
[ii]
Apelação nº 9226644-96.2007.8.26.0000 (Comarca de São Paulo). Eu sou o Relator,
j. 18-04-2012, v.u., publ. 24-04-2012.
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