Desconstruindo a ordem pública e reconstruindo a prisão preventiva.
Por Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo[1].
Sumário: 1. Desconstruindo a “ordem pública”; 2 Reconstruindo a prisão preventiva.
Resumo: Uma breve incursão em torno da prisão preventiva a partir de uma análise retórico-analítica, com espeque nos estudos desenvolvidos no âmbito da Filosofia do Direito. Nesse sentido, o texto propõe uma análise filosófico-retórico em torno de um aspecto específico do Processo Penal, qual seja, a questão da ordem pública enquanto hipótese de decretação da prisão preventiva.
Abstract: A brief foray around the remand from a rhetorical analysis-Analytical underpinnings in the studies developed within the philosophy of law. In this sense, the text proposes a philosophical and rhetorical analysis around a specific aspect of Criminal Procedure, namely the question of public policy as hypothesis decree of custody.
Palavras-chave: 1. Retórica; 2. Filosofia do Direito; 3. Prisão preventiva; 4. Ordem pública.
Keywords: 1. Rhetoric 2. Philosophy of Right, 3. Probation 4. Public policy.
1 Desconstruindo a “ordem pública”.
Quando se reflete sobre a “ordem pública” como hipótese de cabimento da prisão preventiva (CPP, art. 312), o estudioso do assunto defronta-se com um sério problema hermenêutico, dentre tantos outros. Tal problema refere-se à melhor conceituação que se pode atribuir a tal expressão. E quando se reflete sobre o ato de conceituar é preciso lembrar que todo conceito é uma metáfora (Nietzsche)[2], vez que é sempre a generalização de um evento singular e irreptível.
Aliás, entre o evento e a linguagem há sempre uma generalização ao quadrado. Há sempre dois abismos gnosiológicos que se colocam entre o evento e o conceito. O primeiro se encontra entre o evento e o pensamento que este desperta no observador. E o segundo, reside entre o pensamento e o uso da linguagem. Linguagem que, como se sabe, se vale do uso de conceitos. E os conceitos, por sua vez, são metáforas da realidade que foi experimentada por meio do arsenal sensorial humano, a partir dos quais se constitui a memória. Ah, a memória, esse arquivo de metáforas, cárcere do aprendizado e depósito de culpas.
Diante disso, é possível concluir que não há uma identificação entre conceitos e eventos. Conceitos são como máscaras, ao mesmo tempo em que escondem a individualidade do ator, auxiliam na representação de um personagem. A individualidade do ator é a atuação do ser humano no teatro de sua existência. O personagem é um papel da peça da vida. Esta peça escrita por um único roteirista, a linguagem. Uma criança levada que joga dados com os signos[3], que brinca com o silêncio, que se vale dos gestos e abusa da imagem. Eis o que é a razão moderna, um milagre derivado da fé humana na linguagem.
Diante disso, a primeira recomendação que é cabível quanto ao uso da expressão “ordem pública” é que seja entoado pela doutrina o réquiem à ingenuidade. Não convém discutir qual seria, em tese, a melhor definição de tal expressão, vez que todo significante tem o seu significado determinado pelo intérprete diante das peculiaridades de cada caso e segundo os valores determinantes. Em suma, se o significante é semântico e sintático, todo significado é pragmático. Logo, discutir se a expressão “ordem pública” deve ser entendida como clamor público ou como a prática de um crime de relevante gravidade, por exemplo, é uma discussão inútil. Tal discussão só tem algum sentido para os adoradores da legalidade e os beatos da segurança jurídica. Mas é preciso adverti-los: a credulidade é irmã da ingenuidade.
Esclarecida a natureza metafórica peculiar a todo conceito, logo se percebe que o conceito, “ordem pública”, pode ser desconstruído. Desconstruir não é destruir conceitos, mas reconstruí-los (Derrida) de acordo com a singularidade do caso e dos valores envolvidos. Afinal, todo conceito é uma caricatura da percepção. E a percepção, esse fenômeno que o processo penal nomina como prova, é sempre limitada. Como limitada é a compreensão humana sobre a singularidade do evento, pois o todo é demais para o ser humano (Jacinto Coutinho). E o ser humano, em tempos de modernidade tardia (ou pós-modernidade), não é o super-herói racionalista de Descartes, mas o ser carente de Blumenberg. Assim falou Zaratrusta!
Logo, o artigo 312 não é uma norma, mas um texto de lei (Sobota). E o texto de lei não se confunde com a norma, antes colabora de forma parcial com a sua produção. A norma é o fruto da relação dialética entre texto de lei, caso e valor (Adeodato). Enquanto a lei é genérica, a norma é concreta. Enquanto a lei é declarada, a norma é construída. E, enquanto existir um seminarista doutrinado pela Escola de Exegese haverá o desejo de que o processo penal busque uma verdade (real, formal, processual, ou seja, lá qual for...) e de que o intérprete alcance o espírito da norma, como se o processo hermenêutico fosse uma “lipoaspiração epistemológica” (Streck). Pobres fiéis!
2 Reconstruindo a prisão preventiva.
Ora, se a expressão “ordem pública” não é norma, e se a norma não é uma entidade fantasmagórica errante possuída por um espírito obssessor que precisa ser exorcizado pelo sacerdote intérprete, então, é possível reconstruí-la. Eis o ponto, é preciso reconstruir, em tempos de sociedade do espetáculo (Debord), o conceito de “ordem pública”, de sorte a adequá-lo à realidade social contemporânea (bem diferente daquela existente nos idos da década de 40, quando o Código de Processo Penal vigente foi gestado) e harmonizá-lo à natureza cautelar da prisão preventiva. Em suma, reconstruir a “ordem pública” é salvaguardar a tão combalida presunção de inocência. Sempre tão propalada, nunca antes pela média tão questionada!
Reconstruir a “ordem pública” implica compreendê-la com os olhos de Orwell (1984) e com a advertência de Foucault inspirada em Bentham. Se é o “clamor publicado” que importa “ordem pública”, então, é a partir da lógica do “reality show” que esta expressão precisa ser reconstruída pelo Processo Penal contemporâneo. Isto porque na sociedade do espetáculo a eloqüência das imagens substituiu a sonolência das palavras. As relações sociais tornaram-se representações cênicas e os indivíduos foram substituídos por pessoas. E, como se sabe, ser pessoa é atuar (Hobbes) segundo o enredo da cultura de massa estabelecido pelas modernas condições de produção (Debord). Em suma, quando o mundo real se tornou uma “república das imagens”, o Processo Penal se tornou um “game show” e a sentença uma mercadoria “fast food” (Baudrillard), os meios de comunicação de massa se transformaram em máquinas de alienação do indivíduo (Ramonet).
Ora, quando os meios de comunicação de massa foram alçados a tal condição, a média se tornou o “grande irmão”, que tudo vê e a todos vigia. E, neste instante, foi reconstruído o significado da expressão “ordem pública”. O clamor público que antes justificava a decretação a prisão preventiva, tonar-se, então, motivo de manutenção da liberdade do acusado durante o curso do processo. Afinal, para que prender alguém que se encontra vigiado? Quando o inquérito policial se transformou em chamada de abertura do telejornal que vai ao “ar” em rede nacional, o modelo do panóptico foi reinventado, e o acusado de desconhecido se tornou celebridade. Para que prender alguém que já perdeu a liberdade?
Por conseguinte, quando as relações sociais se tornaram mais complexas, as instâncias informais de controle (a exemplo, a religião) se diluíram e o Direito experimentou uma “sobrecarga ética” (Adeodato), o Processo Penal se viu obrigado a se adaptar a essa nova realidade. E, neste contexto, a expressão “ordem pública” tornou-se motivo de manutenção ou concessão da liberdade ao acusado (CPP, artigo 310, parágrafo único). Em outras palavras, a “ordem pública” transformou-se em hipótese de revogação da prisão preventiva, por ausência de qualquer cautelaridade (inexiste o periculum libertatis) e em respeito à preservação da presunção de inocência (princípio que determina a subsidiariedade do instituto da prisão provisória). Afinal, qual é a possibilidade de fuga para o acusado quando este tem o seu rosto mostrado, repetidas vezes, em todo o território nacional? Qual é o perigo que a “liberdade” do acusado traz ao processo, se ele já se encontra vigiado pelas câmeras e encarcerado pelos holofotes?
Se a expressão “ordem pública” não é um disfarce hermenêutico (De Man) para transformar a prisão preventiva em medida de antecipação de pena, então, força é convir que assista razão à tese aqui sufragada. Quando o Processo Penal se tornou a novela diária do tele-expectador alienado, o acusado se tornou o Cristo a ser crucificado. E ao acusado resta rogar aos céus e repetir as palavras do Messias dos cristãos: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”!
[1] Mestre em Direito Público pela UFBA - Universidade Federal da Bahia na Linha de Limites do Discurso com a dissertação: O ato de decisão judicial - uma irracionalidade disfarçada. Pós-Graduado em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da UFBA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSAL. Professor de Direito Penal da Universidade Salvador - UNIFACS; Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador - UCSAL; Analista Previdenciário da Procuradoria Federal Especializada do INSS. Autor do livro: AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. A importância dos atos de comunicação para o processo penal brasileiro: o esboço de uma teoria geral e uma análise descritiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 215 p. Área de dedicação e pesquisa: Direito Penal, Direito Processual Penal, Hermenêutica Jurídica e Filosofia do Direito.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira. Tradução: Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2007.
[3] AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O ato de decisão judicial: uma irracionalidade disfarçada. No prelo.
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