Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

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05/08/2009

CTB - 306 - uma leitura Bafômetro







Autos n° 023.06.387369-1

Ação: Ação Penal - Delitos de Trânsito/Especial

Autor:Justiça Pública

Acusado: V M

 

 

Vistos para sentença.

 

I – Relatório.

O representante do Ministério Público em exercício nesta Comarca ofereceu denúncia contra V. M, já qualificado nos autos, dando-o como incurso nas sanções do art. 306 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), tendo em vista dos atos delituosos assim narrados na peça acusatória:

"No dia 25 de outubro de 2006, por volta das 18:15 horas, o denunciado V M, conduzindo seu veículo Ford/Fiesta, placa XXXXXXA, pela rodovia SC 404, sob influência de álcool, imprudentemente e sem observar as regras mínimas de direção, eis que dirigia em alta velocidade, colidiu contra a traseira do veículo Ford/xx, placa XXXX, que estava parado na referida Rodovia aguardando a abertura do semáforo.

Percebendo o visível estado de embriagues do denunciado, o condutor do veículo abalroado acionou a polícia militar que, ao submetê-lo ao exame de alcoolemia, constatou a presença de 23,6 decigramas de álcool por litro de sangue."

A denúncia foi recebida em 06/03/2007 (fl.63).

O Ministério Público deixou de oferecer proposta de suspensão condicional do processo, por não preencher os requisitos do artigo 89 da Lei 9.099/95.

O acusado foi citado à fl. 67.

Foi-lhe nomeado defensor dativo (fl. 68), que apresentou defesa prévia (fl. 71).

Foram ouvidas três testemunhas da acusação (fls. 86/88).

Veio aos autos novo procurador constituído pelo acusado (fl. 89), tendo sido indeferido às fls. 92/93 o rol extemporâneo de testemunhas.

Inquirida a testemunha arrolada pela defesa (fl. 108). Certificados os antecedentes do acusado (fls. 110/112).

Na fase do artigo 402 do CPP o Ministério Público e Defesa nada requereram (fl. 108).

Em alegações finais (fls. 114/117) o Ministério Público pugnou pela condenação de V M nas sanções do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, por estarem presentes tanto autoria quanto materialidade do delito, ainda por haver a exposição de outrem a perigo de dano potencial. Requereu, ainda, a aplicação da atenuante da confissão espontânea, artigo 65, inciso II, letra 'd', do Código Penal.

A defesa, requereu, derradeiramente, a aplicação do artigo 65, inciso III, letra "c", na fase da dosimetria da pena (fl. 118).

Os autos vieram conclusos para sentença.

É o relatório.

II – Fundamentação.

1. A decisão no processo penal não é ato de conhecimento, mas sim de compreensão, em que os sujeitos incidentes, no evento semântico denominado sentença, realizam uma fusão de horizontes, para usar a gramática de Gadamer. Neste contexto, diante da apresentação de uma hipótese fático-descritiva pela acusação, procede-se a um debate em contraditório, entre partes, nos quais os ônus são compartilhados. O resultado da produção válida de significantes será composta em uma decisão judicial, a qual não se assemelha, nem de longe, ao mito ultrapassado da verdade real. A verdade real é empulhação ideológica que serve para "acalmar" a consciência de acusadores e julgadores. O que existe é a produção de significantes e uma decisão no tempo e espaço. As únicas garantias existentes são: a) um processo como procedimento em contraditório; b) processo acusatório, entre partes, sem atividade probatória do juiz, com as garantias constitucionais (presunção de inocência, etc.; c) decisão fundamentada por parte dos órgãos julgadores. A legitimidade desta decisão decorre, também e fundamentalmente, da sua concordância com a Constituição (MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006).

2. Destaque-se, por básico, que a pseudo-prova produzida no 'Inquérito Policial' somente pode servir para análise da condição da ação (GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Justa Causa no Processo Penal: Conceito e Natureza Jurídica. In: BONATO, Gilson (Org.).Garantias Constitucionais e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 199-200), ou seja, dos elementos necessários para o juízo de admissibilidade positivo da ação penal. No mais, não há qualquer possibilidade de valoração democrática, no Processo Penal constitucionalizado, por ser ela desprovida das garantias processuais. A recente reforma do CPP, dando nova redação ao art. 155, ao indicar a possibilidade de seu uso é flagrantemente inconstitucional (MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um Processo Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 83-97; BARROS, Flaviane de Magalhães.(RE)Forma do Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 23-27; GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) Do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008)23-36). É que quando de sua produção ainda não existia acusação formalizada, despreza o defensor – além de alguns ainda negarem a publicidade dos atos, embora sumulada a situação – e, ademais, viola a garantia de que seja produzida em face de juiz imparcial, sob contraditório (PIZA, Evandro. Dançando no escuro: apontamentos sobre a obra de Alessandro Baratta, o sistema penal e a justiça. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (Org.). Verso e reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 106-108.). Decorrência direta do princípio da publicidade é a conclusão de somente as provas produzidas (significantes) em face do contraditório é que podem ser levadas em consideração nos debates e também na decisão judicial. Os elementos indiciários não devem adentrar validamente no debate porque, por evidente, não havia acusação quando colhida, violando, dentre outros, o princípio da publicidade. Logo, as declarações prestadas naquele momento são – para se utilizar o estatuto probatório italiano, perfeitamente aplicável ao brasileiro –, absolutamenteinutilizáveis, conforme lição de Paolo Tonini (A prova no processo penal italiano. Trad. Alexandra Martins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 76): "O termo inutilizabilidade descreve dois aspectos do mesmo fenômeno. Por um lado, indica o 'vício' que pode conter um ato ou um documento; por outro lado, ilustra o 'regime jurídico' ao qual o ato viciado é submetido, ou seja, a não possibilidade de ser utilizado como fundamento de uma decisão do juiz. A inutilizabilidade é um tipo de invalidade que tem a característica de atingir não o ato em si mas o seu 'valor probatório'. O ato pode ser válido do ponto de vista formal (por exemplo, não é eivado de nulidade), mas é atingido em seu aspecto substancial, pois a inutilizabilidade o impede de produzir o seu efeito principal, qual seja, servir de fundamento para a decisão do juiz." No Processo Penal democrático, o conteúdo do Inquérito Policial está maculado pela ausência de contraditório, sendo utilizável exclusivamente para análise das questões prévias (condições da ação e pressupostos processuais aplicáveis – MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A natureza cautelar da decisão de arquivamento do Inquérito Policial. In: Revista de Processo, São Paulo, n. 70, p. 49-58, 1993.). Enfim, é absolutamente antidemocrática a utilização dos elementos do Inquérito Policial para efeito de condenar o acusado. Claro que se for consultar Damásio, Mirabete e Capez, todos dirão da validade, pois ainda não fizeram o giro democrático que a Constituição de 1988 preconiza!

3. Trato de ação penal pública incondicionada, na qual é imputada ao acusado a prática do crime previsto no artigo 306 do Código de Trânsito.

3.1 Preliminarmente, verifico que os fatos se deram em 25 de outubro de 2006 e que há alteração posterior da legislação aplicável, ocorrida por meio da Lei n.º 11.705/08.

Trata-se de alteração mais favorável ao acusado, caracterizada que está a novatio legis in mellius, nos termos do artigo 5º, inciso XL da CF/88 e artigo 2º do Código Penal, impondo-se a aplicação da nova redação do artigo 306 do CTB.

O fundamento de tal constatação parte do cotejo entre o dispositivo antes em vigor e o vigente. Assim:

Redação anterior:

"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor."

Redação atual:

"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor."

Conforme a antiga redação do artigo 306, a caracterização do núcleo "sob a influência de álcool" se dava remetendo-se ao revogadoartigo 276 do CTB, o qual dispunha que a concentração de seis decigramas comprovava que o condutor estava impossibilitado de dirigir. Para tal aferição, o parágrafo único remetia à disposição do CONTRAN – bafômetro e teste de sangue.

Nessa esteira, o STJ reconheceu inconstitucional qualquer decisão contrária ao princípio nemo tenetur se detegere, com fulcro no artigo 5º, LXIII, da CF/88 e artigo 8º, § 2º, "g", do Pacto de São José da Costa Rica. (STJ, 6ª Turma, RMS 18017/SP, Min. Paulo Medina, DJ 02/05/2006, p. 390). Frente a tal entendimento, reconheceu-se que o indivíduo flagrado na condução de veículo, alcoolizado, não precisaria submeter-se ao exame, pois não é obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Assim é que, a Lei 11.275 de 2006 acrescentou o (já revogado) § 2º ao artigo 277 do CTB. Conforme a redação do parágrafo em referência, no caso de recusa do motorista em realizar os exames para verificação dos seis decigramas previstos no antigo 276 do CTB, a infração poderia ser caracterizada pela análise dos sinais externos de embriaguez – comprovados por testemunhas agentes de trânsito ou mesmo transeuntes.

A partir de então, prova testemunhal dos policiais, bafômetro, e-xame clínico externo realizado por médico –, todas as provas admitidas em direito bastavam para a caracterização do estado "sob influência do álcool". Ampliou-se, assim, os meios de prova do núcleo "sob a influência de álcool" do tipo previsto na antiga redação do artigo 306.

Agora, a novatio legis in mellius sustenta-se ao verificarmos a polêmica alteração havida pela Lei n. 11.705/08, que revogou o § 2º do artigo 277 do CTB. Nesse contexto, não há mais a possibilidade de aferição do estado alcoolizado do indivíduo por meio dos "sinais notórios de embriaguez". A exigência agora é a prova a ser feita para verificação, no tecido sanguíneo, dos 6 (seis) decigramas por litro de sangue.

O § 2º do artigo 277 previa que, em caso de recusa, proceder-se-ia à aferição dos sinais notórios de embriaguez. Com sua revogação, portanto, permanece como meio de prova apenas meio hábil a detectar a presença de seis decigramas de álcool no tecido sangüíneo.

Por outro lado, reitere-se, não há mais qualquer previsão (como outrora) ao condutor que, no exercício de seu direito de defesa não quiser produzir prova contra si e submeter-se aos exames de verificação da alcoolemia. Como exposto acima, o § 2º do artigo 277 que assim previa foi revogado pela novel alteração legislativa.

Consigne-se, por oportuno, que este é o entendimento do egrégio Tribunal de Justiça Catarinense:

"APELAÇÃO CRIMINAL – CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR SOB EFEITO DE ÁLCOOL (CTB, ART. 306) – ALTERAÇÕES DA LEI N. 11.705/2008 – VALOR TAXATIVO PARA CARACTERIZAÇÃO DO CRIME – NOVATIO LEGIS IN MELLIUS – RETROAÇÃO IMPOSTA (CF, ART. 5º, XL E CP, ART. 2º, PAR. ÚN.) – IMPOSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO DA EMBRIAGUEZ POR PROVA DIVERSA DA PRECONIZADA NO TIPO PENAL – ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE."(Apelação Criminal n. 2008.050511-9, de Campos Novos, Relatora: Desa. Salete Silva Sommariva. Data Decisão: 25/11/2008)

Nesse sentido:

"HABEAS CORPUS. PRISÃO EM FLAGRANTE. PRETENDIDO TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. AUSÊNCIA DO TESTE DO BAFÔMETRO. PROVAS TESTEMUNHAIS. DELITO PERPETRADO ANTES DA EDIÇÃO DA LEI 11.705/2008, QUE EXIGE A COMPROVAÇÃO DE QUE O AGENTE CONDUZIA O VEÍCULO COM SEIS OU MAIS DECIGRAMAS DE ÁLCOOL POR LITRO DE SANGUE EM SEU ORGANISMO. LEI PENAL NO TEMPO MAIS BENÉFICA, NESTE PONTO, AO PACIENTE. RETROATIVIDADE QUE SE IMPÕE. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 2º DO CÓDIGO PENAL. HIPÓTESE DE APLICAÇÃO AOS PROCESSOS EM ANDAMENTO. ORDEM CONCEDIDA."(Habeas Corpus n. 2008.058052-6, de Balneário Camboriú. Relator: Des. Sérgio Paladino. Data Decisão: 21/10/2008)

Não obstante, ora se discorda parcialmente do respeitável entendimento, exatamente no que toca à prova da materialidade, a qual, na alteração polêmica, passa a ser disciplinada por um Decreto, ato do Poder Executivo, em flagrante dissonância com o princípio da legalidade, estatuído no artigo 5º, inciso XXXIX da CR/88.

E, ao lado da inconstitucionalidade do parágrafo único do novel artigo 306, o qual remete ao dito Decreto, tem-se a invalidade do bafômetro como meio de prova hábil a caracterizar a materialidade do caput, que prescreve como crime 6 (seis) decigramas de álcool presentes no tecido sanguíneo.

Conclui-se, pois, pela ocorrência de novatio legis in mellius advinda por conta das alterações havidas com a Lei 11.705/08, uma vez que, extirpada a possibilidade de incriminação por prova testemunhal, resta apenas a possibilidade de obtenção de prova que detecte os seis decigramas no tecido sangüíneo. Entretanto, conforme orientação do STJ e por conta dos princípios que fundamentam o processo penal democrático, o indivíduo não é obrigado a submeter seu corpo aos exames que configurariam eventual materialidade de delito.

Isso porque a nova redação do artigo 306, ao exigir a verificação dos 6 (seis) decigramas no tecido sanguíneo do indivíduo, pressupõe que haja a intervenção corporal viabilizando a colheita da prova. Segundo a doutrina (Ariane Trevisan Fiori. A Prova e a Intervenção Corporal: sua Valoração no Processo Penal. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2008. Pág. 108) a prova da alegação dos fatos incumbe a quem acusa, e o sujeito passivo não pode ser obrigado a ajudar na acusação. Ainda, a hipótese de se submeter o sujeito passivo a eventual medida de intervenção corporal sem seu consentimento é equivalente à autorização da tortura para obter a confissão, o que se reputa um retrocesso.

3.2 Verifico que, não obstante o direito ao silêncio, o acusado Volmir Mees submeteu-se ao teste do bafômetro, conforme prova de fls. 11. A questão dos presentes autos, portanto, reside na análise do meio hábil a fazer prova da presença de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue.

O parágrafo único do artigo 306 dispõe que:

"Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo."

Assim estipulou o Poder Executivo, através do Decreto n.º 6.488, de 19 de junho de 2008:

"Art. 2.º Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei n.º 9.503, de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte:

I – exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou

II – teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões."

Conforme aponta a doutrina (Cássio Benvenutti de Castro. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, ano 8, n. 16, p. 97-114, 2008. A retroatividade secundum eventum probationis do novo art. 306, do CTB) se nem mesmo por Medida Provisória (artigo 62, § 1º, I, b, da CRFB), que tem força de lei se pode regular o Direito Penal, que se dirá da possibilidade de um Decreto, ato do Executivo, completar o tipo penal exatamente naquilo que lhe preenche o núcleo condizente à materialidade do delito. Como poderia o poder Executivo outorgar "equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado"?

Figura insustentável que mero ato do executivo, não sujeito à aprovação pelos representantes do legislativo disponha sobre o meio para se configurar a materialidade de um crime. É princípio constitucional, cláusula pétrea do Estado Democrático de Direito, o disposto no artigo 5.º, inciso XXXIX, pelo qual "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

Aliás, o magistrado paulista Marcos Zilli, da 15ª Vara Criminal da Capital – SP, deixou assentado, nos autos n. 050.09.020604-5

A tese acusatória, com fulcro na norma de extensão prevista pelo parágrafo único do artigo 306 da Lei 9.503/97, imputa à acusada a prática do delito de embriaguez ao volante. Para tanto, toma por base o resultado obtido no teste do etilômetro, vulgarmente conhecido por bafômetro, o qual detectou uma concentração de 0,77mg/l nos pulmões daquela. Não há, portanto, o exame de sangue cuja alusão, note-se, foi expressamente referida pelo tipo penal.

Pela legislação anterior, a condição de alcoolizado poderia ser demonstrada por todos os meios de prova admitidos em direito, dentre os quais o exame clínico ou mesmo a prova testemunhal. Ocorre que a alteração legislativa ao incorporar, no próprio tipo penal, oquantum de álcool presente no sangue, tornou inviável a equivalência por ato emanado do Poder Executivo.

De um lado, porque o próprio tipo penal circunscreve os limites de sua incidência ao incorporar, como elementar, um parâmetro de concentração por litro de sangue. Por uma decorrência lógica do princípio da reserva legal e de sua taxatividade, tal especificidade não poderia ser ampliada por atos provenientes de outras esferas de Poder. E, nesse aspecto, a ideia de norma penal em branco não auxilia no deslinde da questão, até mesmo porque o tipo penal em apreço é, nesse específico ponto, fechado.

Não se nega tenha o legislador estabelecido a possibilidade de equivalência entre os distintos testes de alcoolemia — parágrafo único do art. 306. No entanto, ao assim proceder, delegou competência legislativa penal e processual penal ao Poder Executivo, o que é vedado pela sistemática constitucional brasileira.

Com efeito, ao enrijecer o próprio tipo penal inserindo na norma penal incriminadora o grau de concentração de álcool por litro de sangue, o legislador limitou qualquer procedimento de ampliação típica. Mas, ainda que se admitisse uma extensão, tal somente poderia ser realizada por quem detém legitimidade constitucional para tanto, em decorrência natural do princípio da reserva legal. Dito de outra forma, o legislador não poderia conceder à Administração a absoluta liberdade para estabelecer quais as hipóteses e circunstâncias em que o tipo penal fechado poderia ser ampliado.

E é justamente nesse ponto que a hipótese tratada nos autos não se equipara totalmente à da norma penal em branco. Nesta, o legislador faz uso de expressões que exigem uma complementação, tarefa que pode ser empreendida pela mesma fonte normativa ou não, desde que respeitada a estrutura constitucional imposta pela divisão de Poderes. É a lição de Zaffaroni e Pierangeli(1):

"O Congresso Nacional não pode legislar em matérias próprias do Executivo ou das legislaturas estaduais e municipais. Em tais hipóteses o Congresso Nacional não rompe a divisão dos poderes que a Constituição estabelece, mas, ao contrário, deixa em branco a lei penal para respeitar a divisão dos poderes.

(...)

O Poder que completa a lei em branco deve ter o cuidado de respeitar a natureza das coisas porque, do contrário, através de tal recurso pode ser mascarada uma delegação de competências legislativas penais."

Ocorre que o tipo penal em questão, na delimitação da concentração caracterizadora do estado de embriaguez é fechado. E eventual ampliação que por si só seria discutível — somente poderia ser feita pelo próprio legislador não sendo admissível a delegação de competência para outras esferas de Poder tal como a verificada. Mas não é só.

Com efeito, ao delimitar a grandeza da concentração o legislador também circunscreveu o meio de prova admissível. Ou seja, é o exame de sangue o meio eleito para a comprovação da figura penal típica. A adoção de outros meios de prova para fins penais, o que constitui matéria eminentemente processual, não poderia ser delegada à Administração, sob pena de violação da regra prevista pelo artigo 22, inciso I da CR. Afinal, cabe privativamente ao Poder Legislativo Federal legislar sobre direito processual. Obviamente, não estaria o Poder Executivo impedido de estabelecer os meios probatórios destinados à comprovação das infrações administrativas. No entanto, quando estes mesmos meios de prova foram rigidamente fixados pelo legislador para fins penais, não cabe ao Executivo ampliá-los sob pena de invasão da esfera de outro Poder.

Além do vício formal acima referido, o disposto no Decreto em comento, ao estipular "equivalência" do bafômetro entra em contradição evidente com o disposto no tipo penal do artigo 306, que diz ser crime a direção alcoolizada "estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas ".

É evidente que o bafômetro não é meio de prova hábil a detectar a presença de 6 (seis) decigramas de álcool no sangue.

Conforme Cássio Benvenutti de Castro acima citado leciona, "O etilômetro (bafômetro) utiliza matéria-prime gasosa e não comprovação alteração no e do sangue. Apenas examina caractere armazenado no tecido alveolar pela via oral. Os resquícios de ar expirados, o bafo, o exame de mucosa, a análise de fios de cabelo, etc., contrariam a exigência típica imediata delineadora do objeto sensível a ser analisado – o sangue. São meros vestígios periféricos, mas não elementos de prova inspirada no tipo."

Portanto, como pode o bafômetro ser prova que se preste a medir concentração de álcool no tecido sanguíneo, já que seu alcance é tão somente a presença de álcool no tecido alveolar – pela via oral? Não se pode aceitar a contradição evidente ao disposto no artigo 306 – que fala da concentração de álcool por litro de sangue.

A questão é que a equivalência estipulada no decreto remete, sobretudo, à fundada dúvida quanto ao alcance, por meio do bafômetro, de prova da materialidade. Como o artigo 306 do CTB fala da concentração de álcool por litro de sangue, e, não sendo a prova realizada no meio "tecido sanguíneo", vislumbro fundada dúvida sobre a existência do crime. Isso porque é sabido que o bafômetro não é fidedigno em cem por cento dos casos. E, concretamente, o que se tem nos autos é prova da quantidade de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões. O que se impõe à acusação, nos termos do caput do artigo 306 é prova acerca da "concentração de álcool por litro de sangue".

De qualquer forma, somente lei pode fixar equivalência, razão pela qual, até a alteração legislativa, os acusados devem ser absolvidos, a menos que voluntariamente submetam-se ao exame de sangue, o que não é o caso destes autos.

III – Dispositivo.

Por tais razões, JULGO IMPROCEDENTE a denúncia de fls. II/III e ABSOLVO V M, já qualificado, das sanções do artigo 306 do CTB, com fulcro no artigo 386, inciso II, do Código de Processo Penal.

Sem custas.

Restitua-se a V. M. o valor depositado em conta única (fl. 43) a título de fiança, cientificando-lhe da necessidade de apresentar em juízo número de conta bancária e CPF, após o trânsito em julgado.

Ao defensor nomeado à fl. 68, arbitro 05 (cinco) URH's. Expeça-se a certidão.

P.R.I.

 

Florianópolis (SC), 04 de agosto de 2009.

 

 

Alexandre Morais da Rosa

Juiz de Direito

3 comentários:

  1. Muito interessante, nunca havia feito essa reflexão com relação a incapacidade de um bafômetro auferir a concentração de alcool no sangue.

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  2. Uma pequena observação: o § 2º do art. 277 do CTB continua vigente, mas com aplicabilidade restrita ao âmbito administrativo, uma vez que se refere expressamente ao art. 165 da Lei n. 9.503/97.

    Penso que a taxatividade do art. 306 foi bem destacada. A prescindibilidade dos exames periciais não mais poderá ser aplicada. É só exame de sangue. O legislador impediu a aferição da embriaguez por qualquer outra prova em direito admitida. No entanto, seu colega da comarca de Blumenau ventilou a possibilidade de ser usado o bafômetro. Veja:

    “É que, em virtude da modificação do art. 306 da Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito brasileiro) pela Lei n. 11.705/08 (Lei Seca), estou convencido que, ao se exigir concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas para a configuração do ilícito penal, a prova técnica, mais especificamente o exame de sangue ou o bafômetro, passou a ser o único meio hábil a comprovar o nível de embriaguez do condutor do veículo automotor” (Autos de ação penal n. 008.06.18560-8, Juiz Leandro Aguiar, j. 04/09/2008).

    Não obstante a referência na decisão da possibilidade de utilização do bafômetro para aferição da embriaguez, qualquer prisão fundamentada na concentração de álcool por litro de ar expelido dos pulmões será ilegal, porque existem ofensas gritantes a princípios constitucionais, conforme destacado.

    Há ainda precedentes dos Tribunais Estaduais que respaldam seu entendimento:

    “Crime de trânsito. Dirigir embriagado (art. 306 do CTB). Delito cometido antes da Lei n. 11.705/08, que exige a comprovação de que o agente conduzia veículo com seis ou mais decigramas de álcool por litro de sangue em seu organismo. Insuficiência de provas no que tange a materialidade delitiva. Teor alcoólico que não pode ser provado por exame clínico. Absolvição imposta. Recurso defensivo provido” (Apelação criminal n. 2008.049494-0, de Itajaí, rel. Des. D’Ivanenko, j. 08/10/2008).

    “Ausente prova técnica atestando o número de decigramas de álcool por litro de sangue, é de se absolver o réu do delito tipificado no art. 306 da Lei 9.503/97, com fundamento no art. 386, II, do Código de Processo Penal” (Apelação criminal n. 70013521158, rel. Des. Genacéia da Silva Alberton, j. 13/09/2006).

    Vamos aguardar o recurso

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  3. Leonardo Vicente

    Boa noite, estou escrevendo minha monografia exatamente sobre o tema abordado e gostaria de saber se o senhor possui outros materiais acerca do tema, principalmente no que tange a sua inconstitucionalidade, violação do princípio da legalidade (entre outros), e imprestabilidade do bafômetro como meio de prova.
    GRato

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