2º PROMOTOR DE JUSTIÇA DO JUÍZO SINGULAR
Pedido de Revogação de prisão preventiva
Requerente: VÂNIA DO SOCORRO MIRANDA QUEIROZ (advogado: Paulo Roberto Vale dos Reis)
Referência: processo nº 001.2009.2.037130-5
3ª VARA PENAL DE BELÉM
Referência: processo nº 001.2009.2.037130-5
3ª VARA PENAL DE BELÉM
Meritíssimo Juiz,
VÂNIA DO SOCORRO MIRANDA QUEIROZ, através de advogado legalmente habilitado, pretende a revogação da prisão preventiva contra si decretada em 25 de junho de 2009.
A ora requerente e MÁRCIA ALVES DA SILVA encontravam-se presas em razão de flagrante delito desde o dia 05 de junho de 2009, por conta de uma TENTATIVA DE ESTELIONATO.
A denúncia foi ofertada, nos termos do art. 171, caput, c/c 14, II.
Ambas as denunciadas peticionaram à fl. 84, requerendo a concessão de liberdade provisória.
Às fls. 101/103, a Magistrada titular dessa Vara indeferiu a liberdade provisória para VÂNIA DO SOCORRO e, na mesma decisão, DECRETOU A CUSTÓDIA PREVENTIVA.
Pelo que se depreende da decisão acostada aos autos, o fundamento da cautela teria sido a garantia da ordem pública, como se vê do trecho abaixo transcrito:
“A acusada representa perigo para a sociedade devendo a mesma ser resguardada de novas infrações que podem vir a ser cometidas pela agente, uma vez que solta encontrará os mesmos estímulos que a levaram a delinqüir, sendo presente a possibilidade de reiteração de novas práticas criminosas, fato esse que se retira do histórico criminal da mesma, a qual já responde por outros crimes nesta comarca, tendo o juiz a obrigação de promover a paz e a tranqüilidade social (...)” (sic.) (destaques nossos).
Às fls. 107/108, Vossa Excelência concedeu LIBERDADE PROVISÓRIA à acusada MÁRCIA ALVES DA SILVA, nos termos do art. 310, parágrafo único, do CPP.
Às fls. 111/112, a defesa da postulante ingressou com o pleito de REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA e vieram os autos ao Ministério Público, para manifestação.
Assiste total razão à defesa de VÂNIA DO SOCORRO.
O Ministério Público entende que não há como prosperar a decisão de fls. 101/103, vez que em desacordo com os princípios constitucionais que regem a matéria (nomeadamente, a presunção do estado de inocência), e com a doutrina processual contemporânea, de viés democrático, senão vejamos.
Como sabido, a prisão preventiva insere-se no contexto das medidas cautelares pessoais e, por sua incontestável natureza aflitiva, é revestida de extrema excepcionalidade. É dizer, num Estado Democrático de Direito, forjado constitucionalmente através da valorização dos direitos fundamentais, a liberdade é a regra, somente admitindo ser tangenciada quando respeitadas as normas constitucionais que lhe são pertinentes.
Nesse sentido, é de vital importância relembrar a dimensão do princípio constitucional da presunção do estado de inocência (CF, art. 5º, LVII).
É, no mínimo, difícil, compatibilizar as prisões cautelares com o princípio em questão, pois a prisão cautelar pressupõe privação da liberdade que – em tese – deveria ser a conseqüência de uma condenação. Isto porque, na prisão provisória, ao menos nos moldes como é delineada e executada no Brasil, existe verdadeira antecipação de pena (não é por acaso, a propósito, que a lei prevê o instituto da detração – CP, art. 42).
Na verdade, autores há que chegam até mesmo a questionar – com fortes argumentos - a legitimidade das prisões cautelares, por acharem que são incompatíveis com a presunção de inocência, na medida em que somente uma condenação poderia impor a privação da liberdade1.
Aqui, não se vai pugnar pela inconstitucionalidade, em tese, da prisão preventiva como um todo, mas demonstrar a necessidade de uma (re)leitura apropriada e garantista do instituto, avaliando as normas do Código de Processo Penal à luz da Constituição, e não o inverso. Afinal, não é novidade que o CPP de 1941 é fruto do autoritarismo varguista (Estado Novo) e, por isso, muitas de suas normas (pra não dizer a totalidade de sua concepção e idealização) estão em franco desacordo com os valores constitucionais e democráticos, calcados na garantias individuais e nos direitos fundamentais.
Assim, vejamos porque o argumento da decisão atacada não pode prevalecer:
Como fundamento da decisão, o Juízo invocou a necessidade de garantir a ordem pública.
Em primeiro lugar, e principalmente por essa razão, convém lembrar que a requerente está respondendo, aqui, por um suposto crime de TENTATIVA DE ESTELIONATO (CP, art. 171, caput, c/c 14, II).
Na visão da doutrina contemporânea, nacional e estrangeira (Luiz Flávio Gomes, Paulo Queiroz, Alexandre Rosa, Roxin, Zaffaroni, Ferrajoli, Bustos Ramírez, dentre outros), a tentativa de crimes patrimoniais sem violência já seria, em si, uma hipótese de ATPICIDADE MATERIAL ante a ausência de lesão a bem jurídico, sequer configurando ilícito penal, portanto.
A propósito, o próprio Supremo Tribunal Federal vem acatando, com maestria e tranquilidade, o princípio da insignificância como excludente de tipicidade, ante a ausência de lesão ou ofensa ínfima ao bem jurídico, demonstrando a Suprema Corte que está aliada aos ensinamentos doutrinários atuais do Direito Penal democrático. São vários os acórdãos que reconhecem a atipicidade pela insignificância da lesão. Apenas para exemplificar: HC 92.988/ HC 96.688 / HC 92.946.
Assim, o próprio mérito da acusação – sob o prisma da dogmática contemporânea, que trabalha com o Direito Penal constitucionalmente orientado, e em obediência à orientação da Suprema Corte – já poderia ser contestado.
Porém, por mais que se admita a ocorrência formal e em tese de crime de estelionato tentado, ainda assim, a prisão cautelar apresenta-se como absurda e descabida.
Tal infração é de médio potencial ofensivo, admitindo a SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO e SUBSTITUIÇÃO DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR PENA RESTRITIVA DE DIREITOS.
Portanto, ainda que condenada, dificilmente a postulante será encarcerada, pois sua pena deverá ser substituída por outra restritiva de direitos.
Assim, não se pode admitir – em nome do princípio da proporcionalidade – que fique a denunciada presa acautelarmente se, caso condenada em definitivo, não receberá como sanção a privação da liberdade!
Trata-se de raciocínio lógico e comezinho! Não é preciso nenhuma formulação teórica sofisticada para concluir a procedência do que ora se afirma.
E não se diga que a presença de antecedentes obstaria a aplicação dos institutos despenalizadores! Prejudicar alguém por possuir antecedentes criminais é violação clara ao princípio constitucional da presunção de inocência e aplicação direta de Direito penal de autor.
Embora o fato do crime de TENTATIVA DE ESTELIONATO não admitir, sequer em tese, prisão provisória, cumpre demonstrar que a prisão preventiva não se sustenta, também, pela total imprestabilidade constitucional do “fundamento” relativo à garantia da ordem pública, tão utilizada e decantada pelos foros do país. Vejamos.
Com efeito, a prisão preventiva é medida cautelar e, como tal, é absolutamente instrumental; ou seja, presta-se, tão somente, para servir de meio a garantir a efetividade do processo de conhecimento. Não se pode perseguir, através da prisão preventiva, qualquer finalidade repressiva, ou retributiva, que são inerentes (se é que o são...) à prisão definitiva, fruto de uma sentença condenatória.
Portanto, quando o juiz determina a prisão preventiva de um acusado, deve fazê-lo, exclusivamente, tendo em vista qualquer necessidade de assegurar o processo (e aqui bem se aplicam os fundamentos da garantia da aplicação da lei penal e da conveniência da instrução criminal – quando justificados, por evidente), como, por exemplo, porque o réu está, claramente, demonstrando intenção de fugir, ou porque está ameaçando alguma testemunha, ou impossibilitando a colheita de provas, ou embaraçando a instrução criminal, enfim, praticando alguma conduta prejudicial ao regular desenvolvimento do processo.
Entretanto, quando sustenta a “garantia da ordem pública (ou econômica)”, o Magistrado raramente invoca, em seu decisum, fundamento de natureza cautelar.
Ao contrário, são comuns as referências à “gravidade do crime”, ao “clamor público”, ao grau de “periculosidade” do acusado, aos “antecedentes criminais” registrados pelo réu, a uma suposta “reiteração da conduta” (quase que num exercício de vidência), a um certo “sentimento de impunidade por parte da sociedade”, a um “descrédito na Justiça”, etc.
Nada disso, porém, justifica a prisão preventiva, pois, em nenhum desses “fundamentos” se vê demonstrada a necessidade cautelar inerente à medida.
No caso vertente, fica absolutamente claro que o mote da decisão foi a suspeita de reiteração de crimes pelo fato de a requerente registrar antecedentes criminais.
Evitar novos crimes é ilusão. A prisão nunca foi, não é e jamais será garantia de que alguém sinta-se dissuadido a delinqüir. Pelo contrário, a violência no cárcere, inclusive, estimula as práticas criminosas. Não há prisão perpétua. O sujeito que reitera será um dia libertado e, seguramente, reiniciará o ciclo.
Por outro lado, não se pode negar a liberdade de alguém por conta de antecedentes criminais. Isso não tem natureza cautelar. E, ainda, viola a presunção de inocência. A requerente está denunciada em outro processo, mas não é condenada. Assim, negar a liberdade com base em processos existentes é presumir que ela é culpada, o que é afastado constitucionalmente, já que a única presunção admitida no Direito brasileiro é a de inocência.
A custódia provisória, igualmente, não é instrumento de retribuição ou repreensão (essa é a finalidade da prisão definitiva, da prisão-pena). Assim, não se pode tentar legitimar a prisão preventiva a partir de nenhuma necessidade retributiva. Se a sociedade está refém da criminalidade, não é a prisão cautelar que deve aplacar esse legítimo sentimento. A resposta à sociedade não pode ser dada pela prisão cautelar, mas pela adoção de um processo justo, constitucional e de garantias.
Infelizmente, a avidez pela prisão preventiva é patente e acaba comprometendo as garantias constitucionais. Cada vez prende-se mais e mais. Aliás, prende-se primeiro, julga-se depois. A realidade dessa constatação está nos demonstrativos, Brasil afora, da quantidade de presos provisórios (superior ao de definitivos). Em Belém não é diferente. A superlotação nas casas penais está a demonstrar a veracidade desse fato.
O clamor público por “justiça” (entenda-se, vingança, em muitos casos) acaba por exigir do Poder Judiciário uma manifestação de pronto. E a prisão preventiva bem se presta para, de certa forma, calar a pressão popular, simbolizando um pseudo sentimento de punição (ainda que antecipada).
O princípio da presunção do estado de inocência não é nenhuma criação fantasiosa da doutrina, mas norma constitucional expressa. Com isso, há que se remodelar a compreensão da prisão preventiva. A garantia da ordem pública, por certo, afronta a Constituição, pois – além de utilizar-se de uma fórmula indeterminada e genérica, que apenas serve ao autoritarismo e arbítrio (o que é garantia da ordem pública, afinal?)- confunde prisão cautelar com definitiva, já que possibilita a decretação da medida extrema com base em argumentos que fogem à teoria da cautelaridade.
A Constituição Brasileira, apesar de seus vinte anos de vigência, continua sendo – como diz, com propriedade, AURY LOPES JÚNIOR (Doutor em Processo Penal pela Universidad Complutense de Madrid) - “uma ilustre desconhecida em muitas delegacias, foros e tribunais brasileiros” (In Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. Pág. 44).
Aliás, é LOPES JÚNIOR quem afirma, convictamente, a inconstitucionalidade da garantia da ordem pública e econômica. É ler-se:
“Grave problema encerra ainda a prisão para garantia da ordem pública, pois trata-se de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazi-fascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes (...).
É inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar o alarma social, e por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo” (In op. cit. Pág. 205/206) (grifos nossos).
Ainda sobre a constitucionalidade duvidosa do “fundamento” ora analisado, é oportuna a reflexão de ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES, renomado processualista da Escola de São Paulo, que reconhece:
“A necessidade da prisão por garantia da ordem pública revela-se nos casos em que o acusado vem reiterando a ofensa à ordem constituída. Não é fácil justificar doutrinariamente esta prisão ante a teoria da cautelaridade. Daí a resistência a ela por parte da doutrina, entendendo que a prisão cautelar para a garantia da ordem pública configuraria uma verdadeira medida de segurança, com antecipação da pena” (In Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 1999. P. 284) (grifos nossos).
Portanto, Meritíssimo Magistrado, a garantia da ordem pública – pelo fato de confundir prisão cautelar com definitiva – viola flagrantemente o princípio da presunção do estado de inocência e, por isso, não pode servir – desde uma perspectiva garantista e democrática – como fundamento da prisão preventiva.
É necessário compreender, em definitivo, que muitas das regras do (mofado) CPP há mais de 20 anos não possuem mais validade, por contrastarem com valores da Constituição Federal. O autoritarismo varguista, ao menos historicamente, já ficou para trás. As inspirações do CPP/41 não são as mesmas da CF/88. A ditadura cedeu lugar à democracia e o arbítrio, ao racionalismo.
Assim, cabe ao Poder Judiciário, em sua tarefa (re)definida pelo constituinte originário, preservar o núcleo fundante da Carta Política de 1988, baseado na dignidade humana (CF. art. 1º, III) e na defesa intransigente dos direitos fundamentais e, com isso, redesenhar o Processo Penal, fazendo-o compatível com os valores constitucionais e com o ideal democrático ali presente.
ANTE O EXPOSTO, e considerando, primeiramente, que o crime de estelionato tentado não admite, sequer em tese, encarceramento (definitivo e, muito menos, provisório) e que os argumentos invocados pela Magistrada que confeccionou a decisão violam o princípio constitucional da presunção do estado de inocência, já que a garantia da ordem pública, como analisado, não foi recepcionada pela Constituição Federal, o Ministério Público manifesta-se pela revogação da prisão preventiva de VÂNIA DO SOCORRO MIRANDA QUEIROZ, expedindo-se, em seu favor, o competente alvará de soltura.
É a manifestação.
Belém, PA, 20 de julho de 2009.
A ora requerente e MÁRCIA ALVES DA SILVA encontravam-se presas em razão de flagrante delito desde o dia 05 de junho de 2009, por conta de uma TENTATIVA DE ESTELIONATO.
A denúncia foi ofertada, nos termos do art. 171, caput, c/c 14, II.
Ambas as denunciadas peticionaram à fl. 84, requerendo a concessão de liberdade provisória.
Às fls. 101/103, a Magistrada titular dessa Vara indeferiu a liberdade provisória para VÂNIA DO SOCORRO e, na mesma decisão, DECRETOU A CUSTÓDIA PREVENTIVA.
Pelo que se depreende da decisão acostada aos autos, o fundamento da cautela teria sido a garantia da ordem pública, como se vê do trecho abaixo transcrito:
“A acusada representa perigo para a sociedade devendo a mesma ser resguardada de novas infrações que podem vir a ser cometidas pela agente, uma vez que solta encontrará os mesmos estímulos que a levaram a delinqüir, sendo presente a possibilidade de reiteração de novas práticas criminosas, fato esse que se retira do histórico criminal da mesma, a qual já responde por outros crimes nesta comarca, tendo o juiz a obrigação de promover a paz e a tranqüilidade social (...)” (sic.) (destaques nossos).
Às fls. 107/108, Vossa Excelência concedeu LIBERDADE PROVISÓRIA à acusada MÁRCIA ALVES DA SILVA, nos termos do art. 310, parágrafo único, do CPP.
Às fls. 111/112, a defesa da postulante ingressou com o pleito de REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA e vieram os autos ao Ministério Público, para manifestação.
Assiste total razão à defesa de VÂNIA DO SOCORRO.
O Ministério Público entende que não há como prosperar a decisão de fls. 101/103, vez que em desacordo com os princípios constitucionais que regem a matéria (nomeadamente, a presunção do estado de inocência), e com a doutrina processual contemporânea, de viés democrático, senão vejamos.
Como sabido, a prisão preventiva insere-se no contexto das medidas cautelares pessoais e, por sua incontestável natureza aflitiva, é revestida de extrema excepcionalidade. É dizer, num Estado Democrático de Direito, forjado constitucionalmente através da valorização dos direitos fundamentais, a liberdade é a regra, somente admitindo ser tangenciada quando respeitadas as normas constitucionais que lhe são pertinentes.
Nesse sentido, é de vital importância relembrar a dimensão do princípio constitucional da presunção do estado de inocência (CF, art. 5º, LVII).
É, no mínimo, difícil, compatibilizar as prisões cautelares com o princípio em questão, pois a prisão cautelar pressupõe privação da liberdade que – em tese – deveria ser a conseqüência de uma condenação. Isto porque, na prisão provisória, ao menos nos moldes como é delineada e executada no Brasil, existe verdadeira antecipação de pena (não é por acaso, a propósito, que a lei prevê o instituto da detração – CP, art. 42).
Na verdade, autores há que chegam até mesmo a questionar – com fortes argumentos - a legitimidade das prisões cautelares, por acharem que são incompatíveis com a presunção de inocência, na medida em que somente uma condenação poderia impor a privação da liberdade1.
Aqui, não se vai pugnar pela inconstitucionalidade, em tese, da prisão preventiva como um todo, mas demonstrar a necessidade de uma (re)leitura apropriada e garantista do instituto, avaliando as normas do Código de Processo Penal à luz da Constituição, e não o inverso. Afinal, não é novidade que o CPP de 1941 é fruto do autoritarismo varguista (Estado Novo) e, por isso, muitas de suas normas (pra não dizer a totalidade de sua concepção e idealização) estão em franco desacordo com os valores constitucionais e democráticos, calcados na garantias individuais e nos direitos fundamentais.
Assim, vejamos porque o argumento da decisão atacada não pode prevalecer:
Como fundamento da decisão, o Juízo invocou a necessidade de garantir a ordem pública.
Em primeiro lugar, e principalmente por essa razão, convém lembrar que a requerente está respondendo, aqui, por um suposto crime de TENTATIVA DE ESTELIONATO (CP, art. 171, caput, c/c 14, II).
Na visão da doutrina contemporânea, nacional e estrangeira (Luiz Flávio Gomes, Paulo Queiroz, Alexandre Rosa, Roxin, Zaffaroni, Ferrajoli, Bustos Ramírez, dentre outros), a tentativa de crimes patrimoniais sem violência já seria, em si, uma hipótese de ATPICIDADE MATERIAL ante a ausência de lesão a bem jurídico, sequer configurando ilícito penal, portanto.
A propósito, o próprio Supremo Tribunal Federal vem acatando, com maestria e tranquilidade, o princípio da insignificância como excludente de tipicidade, ante a ausência de lesão ou ofensa ínfima ao bem jurídico, demonstrando a Suprema Corte que está aliada aos ensinamentos doutrinários atuais do Direito Penal democrático. São vários os acórdãos que reconhecem a atipicidade pela insignificância da lesão. Apenas para exemplificar: HC 92.988/ HC 96.688 / HC 92.946.
Assim, o próprio mérito da acusação – sob o prisma da dogmática contemporânea, que trabalha com o Direito Penal constitucionalmente orientado, e em obediência à orientação da Suprema Corte – já poderia ser contestado.
Porém, por mais que se admita a ocorrência formal e em tese de crime de estelionato tentado, ainda assim, a prisão cautelar apresenta-se como absurda e descabida.
Tal infração é de médio potencial ofensivo, admitindo a SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO e SUBSTITUIÇÃO DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR PENA RESTRITIVA DE DIREITOS.
Portanto, ainda que condenada, dificilmente a postulante será encarcerada, pois sua pena deverá ser substituída por outra restritiva de direitos.
Assim, não se pode admitir – em nome do princípio da proporcionalidade – que fique a denunciada presa acautelarmente se, caso condenada em definitivo, não receberá como sanção a privação da liberdade!
Trata-se de raciocínio lógico e comezinho! Não é preciso nenhuma formulação teórica sofisticada para concluir a procedência do que ora se afirma.
E não se diga que a presença de antecedentes obstaria a aplicação dos institutos despenalizadores! Prejudicar alguém por possuir antecedentes criminais é violação clara ao princípio constitucional da presunção de inocência e aplicação direta de Direito penal de autor.
Embora o fato do crime de TENTATIVA DE ESTELIONATO não admitir, sequer em tese, prisão provisória, cumpre demonstrar que a prisão preventiva não se sustenta, também, pela total imprestabilidade constitucional do “fundamento” relativo à garantia da ordem pública, tão utilizada e decantada pelos foros do país. Vejamos.
Com efeito, a prisão preventiva é medida cautelar e, como tal, é absolutamente instrumental; ou seja, presta-se, tão somente, para servir de meio a garantir a efetividade do processo de conhecimento. Não se pode perseguir, através da prisão preventiva, qualquer finalidade repressiva, ou retributiva, que são inerentes (se é que o são...) à prisão definitiva, fruto de uma sentença condenatória.
Portanto, quando o juiz determina a prisão preventiva de um acusado, deve fazê-lo, exclusivamente, tendo em vista qualquer necessidade de assegurar o processo (e aqui bem se aplicam os fundamentos da garantia da aplicação da lei penal e da conveniência da instrução criminal – quando justificados, por evidente), como, por exemplo, porque o réu está, claramente, demonstrando intenção de fugir, ou porque está ameaçando alguma testemunha, ou impossibilitando a colheita de provas, ou embaraçando a instrução criminal, enfim, praticando alguma conduta prejudicial ao regular desenvolvimento do processo.
Entretanto, quando sustenta a “garantia da ordem pública (ou econômica)”, o Magistrado raramente invoca, em seu decisum, fundamento de natureza cautelar.
Ao contrário, são comuns as referências à “gravidade do crime”, ao “clamor público”, ao grau de “periculosidade” do acusado, aos “antecedentes criminais” registrados pelo réu, a uma suposta “reiteração da conduta” (quase que num exercício de vidência), a um certo “sentimento de impunidade por parte da sociedade”, a um “descrédito na Justiça”, etc.
Nada disso, porém, justifica a prisão preventiva, pois, em nenhum desses “fundamentos” se vê demonstrada a necessidade cautelar inerente à medida.
No caso vertente, fica absolutamente claro que o mote da decisão foi a suspeita de reiteração de crimes pelo fato de a requerente registrar antecedentes criminais.
Evitar novos crimes é ilusão. A prisão nunca foi, não é e jamais será garantia de que alguém sinta-se dissuadido a delinqüir. Pelo contrário, a violência no cárcere, inclusive, estimula as práticas criminosas. Não há prisão perpétua. O sujeito que reitera será um dia libertado e, seguramente, reiniciará o ciclo.
Por outro lado, não se pode negar a liberdade de alguém por conta de antecedentes criminais. Isso não tem natureza cautelar. E, ainda, viola a presunção de inocência. A requerente está denunciada em outro processo, mas não é condenada. Assim, negar a liberdade com base em processos existentes é presumir que ela é culpada, o que é afastado constitucionalmente, já que a única presunção admitida no Direito brasileiro é a de inocência.
A custódia provisória, igualmente, não é instrumento de retribuição ou repreensão (essa é a finalidade da prisão definitiva, da prisão-pena). Assim, não se pode tentar legitimar a prisão preventiva a partir de nenhuma necessidade retributiva. Se a sociedade está refém da criminalidade, não é a prisão cautelar que deve aplacar esse legítimo sentimento. A resposta à sociedade não pode ser dada pela prisão cautelar, mas pela adoção de um processo justo, constitucional e de garantias.
Infelizmente, a avidez pela prisão preventiva é patente e acaba comprometendo as garantias constitucionais. Cada vez prende-se mais e mais. Aliás, prende-se primeiro, julga-se depois. A realidade dessa constatação está nos demonstrativos, Brasil afora, da quantidade de presos provisórios (superior ao de definitivos). Em Belém não é diferente. A superlotação nas casas penais está a demonstrar a veracidade desse fato.
O clamor público por “justiça” (entenda-se, vingança, em muitos casos) acaba por exigir do Poder Judiciário uma manifestação de pronto. E a prisão preventiva bem se presta para, de certa forma, calar a pressão popular, simbolizando um pseudo sentimento de punição (ainda que antecipada).
O princípio da presunção do estado de inocência não é nenhuma criação fantasiosa da doutrina, mas norma constitucional expressa. Com isso, há que se remodelar a compreensão da prisão preventiva. A garantia da ordem pública, por certo, afronta a Constituição, pois – além de utilizar-se de uma fórmula indeterminada e genérica, que apenas serve ao autoritarismo e arbítrio (o que é garantia da ordem pública, afinal?)- confunde prisão cautelar com definitiva, já que possibilita a decretação da medida extrema com base em argumentos que fogem à teoria da cautelaridade.
A Constituição Brasileira, apesar de seus vinte anos de vigência, continua sendo – como diz, com propriedade, AURY LOPES JÚNIOR (Doutor em Processo Penal pela Universidad Complutense de Madrid) - “uma ilustre desconhecida em muitas delegacias, foros e tribunais brasileiros” (In Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. Pág. 44).
Aliás, é LOPES JÚNIOR quem afirma, convictamente, a inconstitucionalidade da garantia da ordem pública e econômica. É ler-se:
“Grave problema encerra ainda a prisão para garantia da ordem pública, pois trata-se de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazi-fascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes (...).
É inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar o alarma social, e por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo” (In op. cit. Pág. 205/206) (grifos nossos).
Ainda sobre a constitucionalidade duvidosa do “fundamento” ora analisado, é oportuna a reflexão de ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES, renomado processualista da Escola de São Paulo, que reconhece:
“A necessidade da prisão por garantia da ordem pública revela-se nos casos em que o acusado vem reiterando a ofensa à ordem constituída. Não é fácil justificar doutrinariamente esta prisão ante a teoria da cautelaridade. Daí a resistência a ela por parte da doutrina, entendendo que a prisão cautelar para a garantia da ordem pública configuraria uma verdadeira medida de segurança, com antecipação da pena” (In Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 1999. P. 284) (grifos nossos).
Portanto, Meritíssimo Magistrado, a garantia da ordem pública – pelo fato de confundir prisão cautelar com definitiva – viola flagrantemente o princípio da presunção do estado de inocência e, por isso, não pode servir – desde uma perspectiva garantista e democrática – como fundamento da prisão preventiva.
É necessário compreender, em definitivo, que muitas das regras do (mofado) CPP há mais de 20 anos não possuem mais validade, por contrastarem com valores da Constituição Federal. O autoritarismo varguista, ao menos historicamente, já ficou para trás. As inspirações do CPP/41 não são as mesmas da CF/88. A ditadura cedeu lugar à democracia e o arbítrio, ao racionalismo.
Assim, cabe ao Poder Judiciário, em sua tarefa (re)definida pelo constituinte originário, preservar o núcleo fundante da Carta Política de 1988, baseado na dignidade humana (CF. art. 1º, III) e na defesa intransigente dos direitos fundamentais e, com isso, redesenhar o Processo Penal, fazendo-o compatível com os valores constitucionais e com o ideal democrático ali presente.
ANTE O EXPOSTO, e considerando, primeiramente, que o crime de estelionato tentado não admite, sequer em tese, encarceramento (definitivo e, muito menos, provisório) e que os argumentos invocados pela Magistrada que confeccionou a decisão violam o princípio constitucional da presunção do estado de inocência, já que a garantia da ordem pública, como analisado, não foi recepcionada pela Constituição Federal, o Ministério Público manifesta-se pela revogação da prisão preventiva de VÂNIA DO SOCORRO MIRANDA QUEIROZ, expedindo-se, em seu favor, o competente alvará de soltura.
É a manifestação.
Belém, PA, 20 de julho de 2009.
ANA CLÁUDIA BASTOS DE PINHO
6º PJ Criminal de Ananindeua, respondendo pelo
expediente do 2º PJ do Juízo Singular da capital
Muito bom!
ResponderExcluirVou encaminhar para "meu" promotor de justiça!
Puxa, que alegria constatar que existem promotores DE VERDADE em nosso país!
ResponderExcluirO que me deixa triste é verificar que estão tão longe... aqui no Paraná, quando você acha um, ganha uma bicicleta!
EXCELENTE! AGRADEÇO A OPORTUNIDADE DE PODER DESFRUTAR DE UM MATERIAL, TÃO RICO.
ResponderExcluirLUCIANA CYRINO 28/06/2010