Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

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10/01/2013

Lógica pura: Só é permanente se o antecedente é lícito


Crime permanente só autoriza invasão de domicílio em caso de urgência


Vistos.

O(a/s) réu(s) AAA encontra(m)-se denunciado(s) pela suposta prática do(s) delito(s) descrito(s) pelo(s) art(s). 33, caput, e 34, ambos da Lei nº 11.343/2006, bem como pelo delito descrito pelo art. 12 da Lei nº 10.826/2003, conforme os fatos narrados na denúncia à qual me reporto.

Instrução às fls. 101/108. Em alegações finais, o Ministério Público pugnou pela condenação do(s) acusado(s) nos termos da denúncia (fls. 139/160), ao passo que a(s) defesa(s) sustentou(aram) a absolvição (fls. 165/191).

É o breve relatório.

FUNDAMENTO.

Em primeiro lugar, a conduta de possuir uma balança (e embalagens) – ainda que para a alegada comercialização de entorpecentes – é um fato atípico, conforme vem decidindo o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“(...) o delito previsto no art. 34 da Lei 11.343/06 não se caracteriza com a simples apreensão de uma balança, que indica a mera utilização de objeto destinado à comercialização de droga, não de instrumento destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de substância entorpecente, conforme decidiu recentemente a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no HC 153322-BA, em 03/02/2011, rel. convocado Min. Celso Limongi.”
(TJSP, Apelação nº 0003135 - 91.2009.8.26.0038, Rel. Des. Renê Ricupero, 13ª Câmara Criminal, j. 28.07.11, v.u.)

Também quanto à acusação de tráfico e àquela relativa à posse de arma, improcede a acusação, conforme se vê a seguir.

Conforme constou da decisão de fls. 107/108, “os próprios policiais apresentaram alguns dados que não conferem com o contido no inquérito ou na denúncia. (...). Um dos policiais descreveu que a denunciante seria uma senhora, indicando suas vestes e cor da pele. Já o outro não soube dizer absolutamente nada sobre como seria a tal senhora. Ao lado disso, tem-se que na fase policial (e na denúncia) constou apenas ‘um popular’. Um dos policiais afirmou que havia mais ou menos 2 quilos de maconha – algo significativamente diverso da quantidade descrita na denúncia. Foi dito hoje que havia duas balanças. Na fase policial há a descrição de apenas uma. E o ponto mais importante. Na fase policial e na denúncia foi descrita uma mochila como o local onde estariam as drogas (e demais objetos). Na data de hoje nada se falou sobre a mochila. Disseram os policiais que os entorpecentes foram encontrados em uma caixa de sapatos”.

Como se sabe, o relato de agentes estatais, naturalmente interessados diretamente na avaliação positiva de suas condutas, deva ser considerado com cautela pelo julgador. A bem da verdade, todo e qualquer testemunho ou relato deve sempre ser analisado com cuidado pelo juiz, uma vez que é bastante provável que, por exemplo, a vítima tenha a tendência de “enxergar” os fatos de modo mais favorável a si, ou que as testemunhas procurem tornar suas declarações o mais convincentes possível.

Dessa forma, deve sempre o magistrado proferir sua decisão de acordo com o chamado livre convencimento motivado, fundamentando-a nos diversos elementos dos autos, admitindo-se a condenação quando estes se mostrem harmônicos, não se prescindindo da existência de prova colhida em contraditório judicial.

Seja como for, o caso concreto resolve-se sob um outro prisma – sendo dispensável adentrar-se na discussão acerca das apontadas inconsistências[1].

Após bastante refletir sobre o assunto, este magistrado passa a adotar, a partir do presente julgamento, o entendimento de que, nada obstante tratar-se de um crime permanente a posse de entorpecente ou mesmo de arma, não se mostra legítima a invasão do domicílio em casos como tais porque a interpretação que mais parece se adequar ao espírito da norma do art. 5º, XI, da Constituição Federal, é aquela que indica apenas ser lícito adentrar-se à casa alheia quando esteja ocorrendo um flagrante de tal natureza que haja a mesma urgência em conter a conduta criminosa como nos casos das também excepcionais previsões de desastre ou prestação de socorro. Ou seja, em caso de estar ocorrendo agressões no interior do imóvel, ou mesmo no caso de estar sendo mantida uma vítima de sequestro em suas dependências. Não, de outro lado, no caso de haver suspeitas (ainda que fundadas) de que haja entorpecentes e arma no local.

Ora, em tal situação, em nada restaria prejudicada a segurança pública se fosse resguardado o local pela polícia, se o caso, enquanto se pleiteasse a obtenção de um mandado judicial[2]. Sim, poder-se-ia argumentar que “de dentro de um gabinete refrigerado de um fórum criminal é fácil exigir tais ‘cautelas’ pela polícia, mas que a realidade do ‘combate ao crime’ é bem outras”, etc. Porém, se vivemos realmente sob a égide de um Estado Democrático de Direito (e não apenas somos hipócritas a propagar tal ideia, não efetivada na prática de nossas atuações cotidianas), a atuação policial – ou mais genericamente estatal ou mesmo de todos os indivíduos – é que deve se condicionar às garantias constitucionais, e não estas àquela, pois, do contrário, haveria a negação não “apenas” da Constituição, mas da própria forma de organização política e social calcada no governo das leis – e não nos desmandos dos homens.

Este julgador está cada vez mais convencido de que é preciso serverdadeiramente intransigente na defesa das garantias constitucionais.

Uma sociedade livre, justa e solidária não se faz com truculência, com flexibilização de direitos, com a eleição de inimigos da sociedade ou do Estado, mas sim com a observância de seus preceitos fundantes, com o respeito absoluto às garantias constitucionais, com a consagração diária dos direitos humanos, com um Poder Judiciário que esteja atento a isto e se constitua como verdadeiro guardião das liberdades públicas – e não como mais um “parceiro” no “combate ao crime”.

Na mesma linha que aqui passamos a defender, já decidiu o E. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que “não há dúvida no sentido de que o tráfico de entorpecentes se trata de crime permanente. No entanto, a colheita da prova acerca da sua ocorrência fica subordinada aos preceitos constitucionais que asseguram, como regra, a inviolabilidade do domicílio”. De fato, conforme decidido, “não podem os agentes policiais realizar busca e apreensão sem ordem judicial (...)”, de modo que “o que se apurar, a partir de então, fica contaminado pela ilicitude, ex radice, da violação de domicílio”[3].

Assim, a improcedência completa da denúncia – inclusive em relação à posse de arma confessada pelo acusado[4] (fls. 106) – se impõe, uma vez que a prova obtida ilicitamente “deve ser banida do processo, por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade, por vulnerar normas ou princípios constitucionais”, conforme lição de Ada Pellegrini Grinover – Antonio Scarance Fernandes – Antonio Magalhães Gomes Filho[5].

DECIDO.

Ante o acima exposto, com fundamento no art. 386, III (em relação ao delito do art. 34 da Lei de Drogas) e VII (em relação às demais imputações – já que a prova existente (decorrente do flagrante) mostrou-se ilícita), JULGO IMPROCEDENTE o pedido do Ministério Público, de modo a ABSOLVER o(a/s) réu(s) AAA.

Revogo a medida cautelar aplicada às fls. 108.

P.R.I.C.

São Paulo, 19 de novembro de 2012.



[1] Sem discutir, também nessa linha, a alegação do réu de que parcela da droga, de fato, lhe pertenceria, mas não seria destinada ao tráfico. E, ao se seguir nesta direção, caberia discutir a própria viabilidade de uma eventual condenação pelo delito de porte para uso próprio – tido, na verdade, por este magistrado como inconstitucional, por ofender, essencialmente, a esfera de liberdade do cidadão.
[2] Aliás, mandado este que sequer poderia ser concedido no caso concreto, caso calcado apenas na denúncia anônima de uma “popular”.
[3] Acórdão n. 201756, 20010110776087APR, Relator EDSON ALFREDO SMANIOTTO, 1ª Turma Criminal, julgado em 23/09/2004, DJ 10/11/2004 p. 55.
[4] Nesse sentido, tendo sido tida por nula a prova decorrente da apreensão da arma na residência do réu, não se poderia amparar um decreto condenatório com sua confissão judicial (ou mesmo na imputação de sua esposa às fls. 105) que, certamente, apenas derivou do fato daquela apreensão. O mesmo se diga acerca dos entorpecentes, ainda que fosse para se cogitar dos delitos dos arts. 28 e 33, § 3º, da Lei de Drogas.
[5] As Nulidades no Processo Penal, 9ª ed, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p. 152.

(processo da 22ª Vara Criminal Central de São Paulo)

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