Jacinto Nelson de Miranda Coutinho disse no prefácio:
P R E F Á C I O
(SYLVIO LOURENÇO DA SILVEIRA FILHO –
Introdução ao Direito Processual Penal)
“Para compreender a força das instituições espalhadas por sobre a superfície do Ocidente cristão, e consequentemente, para não se equivocar sobre o lado natural das reações ultranegativas contra a
psicanálise em seus primeiros passos, é preciso aprender a discernir o acompanhamento teocrático desse conjunto imponente, cuja função foi definida até nós pelo Direito Romano (lembremo-nos de que
os Direitos nacionais europeus são constituídos de materiais fartamente tomados do Direito Romano), a partir das profecias do Imperador Justiniano no tratado da Soberana Trindade (De summa Trinitate), que abre o mais célebre código de todos os tempos: manter sob crença os sujeitos.” (LEGENDRE, Pierre. O Amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Trad. de Aluísio Pereira de Menezes et al. Rio de
Janeiro: Forense Universitária: Colégio Freudiano, 1983, p. 19) 2
O livro que ora se apresenta à comunidade, Introdução ao Direito Processual Penal, de Sylvio Lourenço da Silveira Filho, é fruto de apurada revisão da sua dissertação de mestrado, a qual tive a honra de orientar, então intitulada O processo como procedimento em contraditório: (re)discussão do locus dos sujeitos processuais penais, e que na banca, realizada em 29.04.2011, contou, também, com a presença ilustre de dois dos mais festejados professores doutores da disciplina nos dias atuais: Aury Lopes Júnior (PUCRS) e
Alexandre Morais da Rosa (UNIVALI/UFSC). O trabalho obteve nota máxima.
Sylvio, com isso, como que obteve o aval dos mais experientes para entrar – como de fato entrou – para o rol dos credenciados a serem ouvidos. Sim. Títulos são quase nada se aquele que os obtêm não alcança um “lugar” específico, ou seja, aquele pelo qual seu discurso fala por si e, portanto, é ouvido, o que se mede pelos efeitos que a audição produz, por óbvio. É como – se me fosse permitido dizer – o Outro falasse
para o Outro do outro. Um discurso que faz “questão”, diriam os psicanalistas.
Algo do gênero precisa ser ensinado – e aprendido – muito cedo nos Programas de Pós-graduação em Direito no Brasil (talvez alguém tenha que dizer aos que ingressam; se é que se sabe para tanto, o que já é outro problema, talvez mais sério) porque, como se tem percebido facilmente, a deficiência cada vez maior das monografias (dissertações e teses) muito tem a ver com o desconhecimento desse “lugar”. Ora, tem-se a impressão de que se trata de gente que não sabe nada a respeito desse “lugar de registro simbólico” que envolve o trabalho e, assim, sem embargo do grande esforço que fazem alguns (mas não todos), acabam por amontoar palavras, às vezes até de forma ordenadamente satisfatória de modo a possibilitar a obtenção do título. Ele, porém, não coloca o mestre ou o doutor no “lugar” devido. 3
Assim, não é de estranhar que se esteja escrevendo sobre quinquilharias jurídicas, do que se tem podido aproveitar pouco, muito pouco. E reclamar muito – com razão – da deficiência da dogmática jurídica, mormente dos manuais que sem a devida atenção para os fundamentos – e os fundamentos dos fundamentos – desvirtuam a realidade das coisas.
Por uma infinidade de razões, porém, das quais a indevida tentativa de simplificação das estruturas é a mais visível, acabam por ser justamente eles (os tais manuais) os livros mais vendidos e mais consultados para, em alguns casos, transformar nanicos intelectuais em gigantes-de-mentirinha, daqueles só feitos de casca. Gente assim condena a nação ao atraso. Justo isso. Não significa que se não avance; significa que se avança com extrema dificuldade – e devagar – porque aqueles que deveriam ajudar são, em definitivo, os que mais atrapalham. Para isso perceber basta percorrer um pouco dos arestos dos tribunais do país: as citações são, na extragrande maioria das vezes, dos referidos manuais, com frequência por ocuparem um espaço pretensamente desideologisado quando, em verdade, são marcados por aquilo que há de pior na ideologia em matéria penal, ou seja, a repressão despudorada, reacionária, inconsequente e, pior, em geral inconstitucional.
Enfim, os manuais que deveriam estar lá – inclusive para se dar o exemplo – não estão. Eles, afinal, fiéis à Constituição da República e em geral com os fundamentos dos fundamentos, não têm as receitas fáceis para a repressão pela repressão, para se punir pelo prazer da punição, pelo simples gozo. Ao contrário, eles pedem o que é devido; e isso, ao que parece, tem sido considerado muito complexo, muito difícil de ser
alcançado, muito trabalhoso em um tempo no qual o volume de trabalho reclama tão só um verniz retórico para se poder obter o grau suficiente de fundamentação das decisões. Retiradas as exceções – que sempre estão lá, para sorte de todos –, o lugarcomum tem sido esse: o da banalização do mal. Ao mal do crime (qualquer que seja), responde-se com o mal da pena; mecanicamente. Eis, singelamente, o paraíso dos justiceiros. É evidente que quem agoniza, de verdade, é um processo penal constitucionalizado e pretensamente democrático. As monografias (sobretudo decorrentes de teses e dissertações), desde este ponto de vista, já deveriam refletir a contraposição a essa onda perversa de ignorância que – pior –
vai criando uma cultura fundada no trivial, um tanto quanto burlesca, para não dizer trágica. E assim deveriam ser os trabalhos de pós-graduação em face do espaço privilegiado que ocupam, ou seja, a maior possibilidade de alargar tanto quanto possível a análise e discussão de hipóteses restritas, embora não
menos importantes.
Disso também há de se desconfiar hoje em dia, infelizmente. Ora, o nível tem baixado de tal forma que se pode ter presente não se saber bem, pelo menos em boa parte da produção dos programas de pós-graduação, que as monografias devem apontar, no mais das vezes, em tal direção. E é ai que se
observa que o problema não está tão só na qualidade dos alunos e eventual desconhecimento que podem ter sobre o assunto; e sim naquilo que, de fato, são as orientações. Ao aluno cabe propor o que lhe parece melhor; e algo assim (muito largo e que escapa do seu domínio) pode vir à tona, quiçá por desconhecer
o tema, embora sendo egresso da graduação e já tendo feito uma pequena monografia nela fosse certo que deveria saber sobre a questão. Aos orientadores, contudo, é imperdoável que permitam desvios de tal monta, mormente porque são sabedores (ou deveriam ser) da situação e das deficiências.
A devida atenção aos trabalhos monográficos da pósgraduação não é a única solução para a crise da deficiência do jurídico, mormente da dogmática jurídica, mas certamente está entre as medidas que, sem atraso, deve-se tomar para salvar o que for possível.
A dissertação do Sylvio – e hoje seu livro – vai nacontramão dessa deficiência. Preocupado em fincar as bases naquilo que foi uma conquista muito cara à Constituição da República de 88 – o processo como procedimento em contraditório –, o escopo era (re)discutir o locus dos sujeitos processuais penais. A hipótese estava, assim, perfeita; e ele, já professor da matéria e com certa experiência, habilitado para
desenvolver a pesquisa satisfatoriamente.
O desenvolvimento dela (a pesquisa), porém, como era de se esperar – e constava em larga medida no projeto cuidadosamente pensado –, trouxe a necessidade de percorrer, ainda que sinteticamente, um percurso que garantisse a devida discussão da hipótese principal.
Foi assim que veio à luz um capítulo I para destrinchar os sistemas processuais penais a partir do conceito de sistema, até o Modelo Napoleônico que, a toda evidência, não é propriamente um sistema.
No capítulo II vem à tona um estudo acurado da trilogia estrutural do direito processual penal (jurisdição, ação e processo), com um maior desenvolvimento das teorias do processo, tudo de modo a se preparar a análise e discussão da hipótese principal da monografia. Tal capítulo é de tal maneira rico didaticamente que, por certo, propiciou, ao depois, a conclusão de se poder editar um livro de Introdução do Direito Processual Penal.
Por fim, no capítulo III, Sylvio revisita pontos cruciais da teoria processual penal para fazer crítica certeira à chamada Teoria Geral do Processo, tudo a fim de demonstrar sua impropriedade, assim como à chamada Escola Instrumentalista do Processo, mormente pela sua legitimação ao sistema processual penal inquisitório. Como proposta de resistência, articula a Teoria do Garantismo (Ferrajoli) e o critério ético material de Enrique Dussel. Por fim, agarra-se à CR e ao processo como procedimento em contraditório pois, como diz ele: “mesmo reconhecendo os méritos da teoria da situação jurídica, apontar-se-á na direção da teoria do processo como procedimento em contraditório como um fundamento factível na imperiosa revalorização do locus dos sujeitos processuais (cada um no seu devido lugar!), com especial ênfase à importância do papel das partes e da noção de contraditório no processo penal, ou seja, aponta-se na direção da efetiva
participação daqueles que sofrerão os efeitos do provimento final, o que possibilitará ao julgador, na via intersubjetiva, apurar o melhor argumento, promovendo a abertura para que as partes abalem suas crenças (conscientes ou inconscientes) antes da decisão final – compreendida desde a noção de bricolage de
significantes.”
Sylvio, enfim, conseguiu reunir aquilo que a dogmática processual penal crítica, aparentemente, havia produzido de melhor e, com isso, articulou os fundamentos do direito processual penal de forma didática e de qualidade. As bases, portanto, para uma Introdução, só merecem elogios, justo por não ser tarefa fácil saber reunir o vital de uma disciplina. Leituras assim, como sabem todos, tornam a dogmática jurídica (pelo menos aquela feita com esta qualidade crítica) imprescindível e esteio da razão de ser do próprio Direito. Sem ela (sem seu domínio, ou melhor, o domínio que ela oferece) um teórico pode falar muito e de muitas coisas mas, vivendo do Direito, tende a ser sempre um palpiteiro, quando não um verdadeiro gigolô. Isso não a isenta da crítica que, como visto, de tão relevante deve ser seu substantivo pois, trata-se – isso
sim – de construir uma dogmática jurídica crítica, dentre outras coisas para diferenciá-la de uma dogmática meramente descritiva, pretensamente sem ideologia e enganosamente neutra. A crítica sadia, portanto, é sempre bem-vinda. A crítica que destrói, porém, é sempre perniciosa, porque quem a lança – há que perceber – não deixa nada no lugar; e no mais das vezes é porque em não sabendo de Direito, não tem para oferecer. É a destruição pela destruição. Sobra algo, sem embargo: o gozo de quem a fez. Um destruidor, antes de tudo (de todas as consequências) goza o seu gozo; que, em geral, aproveita pouco. Da terra arrasada, contudo, não se aproveita muita coisa. Esse sim, em sendo no e sobre o Direito, é quase um estado de natureza jurídico.
Depois da crítica (dessa que se mostra inconsequente), porém, tem amanhã. Tem-se que acusar; tem-se que defender; tem-se que decidir. O mundo e a vida seguem. Quais são as bases para tanto? Quais são os fundamentos se a crítica pela crítica os destruiu? 7
Ora, diante de tal quadro, é preciso cautela, equilíbrio, equidistância. A quem critica por criticar é preciso indagar sempre e sempre o que se vai deixar no lugar, de modo a se poder criticar o que vier – e se vier –, mesmo porque nada deve escapar à análise, discussão e, se for o caso, ao rechaço. Sim. Vive-se neste período de baixa qualidade jurídica uma performance interessante desses críticos pela crítica, seja porque não deixam nada no lugar daquilo que destroem (dado que em geral se sentem donos da verdade ou, como querem alguns deles, da Verdade), talvez porque pensam não precisar faze-lo, seja porque, quando deixam algo, mostrando o que sabem, deixam mesmo quase sempre a desejar. Desde este ponto de vista são eles tão nefastos, por seus discursos, quanto aqueles que por eles são criticados. O amanhã não perdoa gente
assim (todos eles), embora quem sofra seja sempre o cidadão menos favorecido, vítima costumeira do solipsismo.
Sem fundamentos minimamente sólidos, isto é, aqueles que se reconhecem e respeitam, o Direito, na sua aplicação, vaise tornando uma balbúrdia. Cada um diz o que quer sobre ele e, pior, cada um faz o que quer em face dele. Não são poucos – é preciso reconhecer – que hoje já estão largamente desanimados.
É como se a nau fizesse água por todos os lados. O fim da linha para situações assim sempre foi a guerra. Antes, porém, é preciso fazer um esforço invulgar para se tentar todas as saídas democráticas, para o que a Constituição da República segue sendo a melhor bússola. Logo, é necessário insistir na esperança. Acreditar que somos capazes de construir algo melhor para nós, apesar de tudo.
Sylvio, por certo, está dentre aqueles que acredita nisso. E assim deve ser. Ele, por ocupar tal lugar, é um exemplo. Melhor que ninguém Aury Lopes Jr., no prefácio que fez ao “Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social” (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008), de Sylvio e Alexandre Morais da Rosa, chamou a ambos de “arrivistas” (a partir de Bauman), acertando no alvo. Afinal, pode-se estar em movimento e ele não significar um não-estar. Afinal, “anda-se” confortavelmente sentado nos automóveis. Aury, quiçá por isso, mostrou logo que “Sylvio e Alexandre conseguem superar o mal-estar inerente ao arrivista, fazendo-se queridos por onde passam”. Mais uma vez estava certo.
Sylvio, mineiro de nascimento e radicado no Rio de Janeiro desde neonato, formou-se em Rio Grande, no Rio Grande do Sul (conferir as belas palavras de Aury no prefácio precitado), mas hoje é curitibano de carteirinha. Encontramonos pela primeira vez no Congresso Brasileiro de Direito Processual e Penal em homenagem ao Prof. Paulo Cláudio Tovo (querido amigo e de saudosa memória), em Gramado (2001), quando ainda era aluno do Aury em Rio Grande, de quem se tornou, quem sabe, um dos primeiros discípulos, para orgulho daquele. Ser discípulo, porém, não é ser escravo intelectual (como exigem alguns, que se pretendem donos de todas as verdades), e sim ser alguém que, com independência, assume de seu professor, quiçá introjetando, princípios dos quais não abre mão e passam a fazer parte do seu arsenal. Por
sinal, é só desse lugar que se pode, depois, ser alguém também a ser seguido e, assim, ocupar o lugar de professor. Os grandes mestres (dos quais o Aury é um deles) sabem disso e, no fundo, torcem como ninguém para que seus alunos, por esse caminho, cheguem à vitória.
Sylvio, hoje, é um vitorioso porque conseguiu o aval para ser – ele também – um professor a ser seguido, dado que é respeitado e benquisto pelos seus alunos, mormente pelo profissionalismo e seriedade com que leva a matéria. Nas suas matrizes (isso se pode ver bem no livro) falam alto as vozes da democracia ou, mais propriamente, da gente que clama por ela. É como que se a saudosa e insuperável Helena Kolody soubesse disso e para ele tivesse escrito uma poesia:
“Junto a teus muros, cresce a multidão.
A maré de infelizes se avoluma.
Vem deles o clamor que te atormenta.
A impressão de que alguém está chamando
E urge chegar a tempo a alguma parte.”
(KOLODY, Helena. Chamado. In Viagem no espelho. 5ª
ed. Curitiba: Ed. UFPR, 1999, p. 148)
Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
Professor Titular de Direito Processual Penal da UFPR
excelente ...ótimo profissional, adorei! Alice
ResponderExcluir