Terrorismo e Garantias Constitucionais: a questão do "analfabetismo jurídico funcional" e a caneta que pode(ria) pesar.
Alexandre Morais da Rosa
"Na luta do Bem contra o Mal, sempre é o povo que contribui com os mortos."
Eduardo Galeano
1 – Perguntaram a um louco que havia perdido a sua chave na floresta, por que estava a procurando sob a luz do poste da rua, no que ele respondeu: aqui tem mais luz. Procurar flexibilizar as garantias constitucionais na perspectiva de resolver os problemas de Segurança Pública é procurar, como o louco, a chave no mesmo lugar. Lugar caolho, a saber, dos neoliberais.
2 – Jacinto Nelson de Miranda Coutinho há muito denuncia a maneira pela qual o discurso da eficiência, inclusive Princípio Constitucional (CR, art. 37), para os incautos de plantão, embrenhou-se pelo processo penal em busca da sumarização dos procedimentos, da redução do direito de defesa, dos recursos, enfim, ao preço da democracia (Júlio Marcellino). A razão eficiente que busca a condenação "fast-food" implicou nos últimos anos na "McDonaldização" do Direito Processual Penal: Sentenças que são proladas no estilo "peça pelo número". A "standartização" da acusação, da instrução e da decisão. Tudo em nome de uma "McPena-Feliz". Nada mais cínico e fácil de ser acolhido pelos atores jurídico, de regra, "analfabetos funcionais."
3 – A primeira questão, com efeito, a ser enfrentada é a do "ator jurídico analfabeto funcional", ou seja, ele sabe ler, escrever e fazer conta; vai até na feira sozinho, mas é incapaz de realizar uma leitura compreensiva. Defasado filosófica e hermeneuticamente, consegue ler os códigos, mas precisa que alguém – do lugar do Mestre – lhe indique o que é o certo. Sua biblioteca é composta, de regra, pela "Coleção de Resumos", um livro ultrapassado de Introdução ao Estudo de Direito – destes usados na maioria das graduações deste imenso país –, acompanhado de uma lamúria eterna de que o Direito é complexo, por isso lê Paulo Coelho. Quem sabe, com alguns comprimidos de "prozac" ou algo do gênero, para, imaginariamente, dar conta. Complementa o "kit nefelibata" – dos juristas que andam nas nuvens – com um CD de Jurisprudência ou acesso aos "sites" de pesquisa jurisprudencial, negando-se compulsivamente a pensar. O resultado disto, por básico, é o que se vê: um deserto teórico no campo jurídico, em que cerca de 60% – sendo otimista – dos atores jurídicos são incapazes de compreender o que fazem. Para além da "opacidade do direito" (Carcova) e sua atmosférica mito-lógica (Warat), existe uma geléia de "atores jurídicos analfabetos funcionais". Estes, por certo, não sabem compreender hermeneuticamente, porque para isso precisariam saber pelo menos do giro lingüístico (Rorty), isto é, deveriam superar a Filosofia da Consciência em favor da Filosofia da Linguagem. Seria pedir muito? Talvez. Mas é preciso entender que o sentido de uma norma jurídica (norma: regra + princípio) demanda um círculo hermenêutico (Heidegger e Gadamer), incompatível com os essensialismos ainda ensinados na graduação: vontade da norma e vontade do legislador, tão bem criticados por Lenio Streck.
4 – No campo Direito e Processo Penal, a situação é patológica. É que as gerações antecedentes, a saber, os atuais atores jurídicos (professor, juiz, promotor, procurador, advogado, delegado, etc), em grande parte, não sabem também compreender. São, na maioria, "juristas analfabetos funcionais" que pensam que pensam juridicamente e, não raro, ocupam as cátedras de ensino, incapazes, porque não dominam, de repassar uma cultura democrática. Estes, portanto, muitos de boa-fé – reconheço –, acreditam que ensinam Direito, quando na verdade ensinam o estudante de Direito a fazer a "feira da jurisprudência". Este processo de fazer a "feira da jurisprudência" significa encontrar uma decisão consolidada, remansosa – como gosta de dizer o "senso comum teórico dos juristas" (Warat). É facilitada atualmente pela adoção de posturas totalitárias, como a do Supremo Tribunal Federal ao editar no seu "site" a Constituição da República interpretada pelos Ministros! Aplaudida pelos incautos de sempre, este documento é fascista, porque sob a fachada de informação, esconde interesses inconfessáveis de "normatização", de uma "Constituição do Conforto Hermenêutico". Não foi à toa que a Emenda Constitucional n. 45 consagrou a Súmula Vinculante, no que tem o meu total desdém e resistência constitucional, como quer Lenio Streck, redundando no que aponta como a "baixa constitucionalização do Direito".
5 – Cabe destacar, também, no campo penal, que com a queda do Muro de Berlim e o fim da guerra fria, para justificação da opressão, precisou-se de um novo inimigo, não mais externo, mas interno. Neste contexto, o discurso de almanaque tornou, por razoável tempo, a droga o grande bode expiatório dos males mundiais, justificando, assim, a intervenção dos "Guardiães Mundiais", os Estados Unidos da América – EUA – na preservação do "bem mundial" (Rosa del Omo). Entretanto, com os ataques de 11 de setembro, o foco modificou-se para os "terroristas" (Walter Russel Mead). Esta figura oculta, de difícil compreensão, desde uma intolerância ocidental, num mundo globalizado (Beck), autoriza, pela "necessidade" a suspensão do Estado Democrático de Direito. O desconhecido, o estrangeiro (Julia Kristeva, com base na psicanálise, sabe que ele atua justamente em nós), o mito, o demônio com nova roupagem, materializado pelo "terrorista" que funciona como um estereótipo de tudo o que atrapalha a "paz" da nova "ordem mercadológica neoliberal mundial".
6 – Agamben aponta que o poder encontra-se na "exceção", a saber, na possibilidade de que se exclua a regra de aplicação geral e se promova, para o caso, uma outra decisão, apartada dos Princípios da Legalidade e da Igualdade. Este poder encontra-se indicado pela estrutura, segundo a qual existe um lugar autorizado a escolher, que se encontra, ao mesmo tempo, dentro e fora de uma estrutura jurídica, conforme o pensamento de Carl Schmitt, na interseção entre o jurídico e político. Esta distinção, todavia, entre jurídico e político precisa ser problematizada, não se podendo colocar, em absoluto, incomunicáveis, apesar de ocuparem lugares diversos (Zizek e Werneck Vianna). Neste pensar, segundo Agamben, "o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal." Desta maneira, rompendo com uma concepção platônica de Verdade e Justiça, bem assim de que a linguagem não é o meio de adequação da realidade (Heidegger e Streck), o processo ganha um lugar de limite (Fazzalari e Catoni). Um limite que cerca, mas não consegue segurar o "poder de exceção", até porque se mantido o discurso da salvação, em nome da "bondade dos bons" (Agostinho Ramalho Marques Neto), vale tudo.
7 –. Evidentemente que esta afirmação precisa ser adubada com muita empulhação ideológica – Direito Penal do Inimigo de Günter Jakobs, ou Teoria das Janelas Quebradas – importada do aplaudido primeiro mundo. Esta postura Pangloss (Voltaire) serve, muito bem, aos interesses ideológicos que manipulam os atores jurídicos. Com estes ingredientes, facilmente instaura-se o processo penal de exceção, cujo fundamento de conter as mazelas sociais e brindar os privilegiados consumidores com segurança, encontra antecedente histórico no nazismo. Plenos poderes, apreensões de averiguação, prisão provisória de regra, tortura (psicológica, física e química), tudo passa a ser justificado em nome de um argumento cínico maior: o "bem comum", consistente na segurança de todos, inclusive de quem está sendo apreendido e, eventualmente, excluído. O Direito de Exceção, em nome do bem dos acusados, e antes da Sociedade, suspende as garantias processuais, previstas na Constituição da República e nos Tratados de Direitos Humanos, por entender que elas são um entrave à redenção moral do infrator e à Segurança Coletiva. Assim é que, seguindo Agamben, é necessário se buscar parar esta máquina, para que os acusados não se transformem – mais ainda – na figura do "musulmán" de Auschwitz retratada por Agamben. Embalados pela necessidade de conter a (criada) escalada de atos criminal, ou seja, a estrutura cria a exclusão e depois sorri propondo a exclusão novamente, via sistema penal, e os excelentes funcionários públicos nefelibatas – tal qual Eichmann –, na melhor expressão Kantiana, cumprem suas funções, sem limites. Existe uma co-responsabilidade social (Zafaroni-Pierangeli), da qual somente se pode tangenciar – como de costume – cinicamente. Para estes, no interesse do acusado, a necessidade derruba qualquer barreira processual, pois, sabe-se com Agamben, que a necessidade não tem lei, isto é, não reconhece qualquer lei limitadora, criando sua própria lei. A construção fomentada e artificial de um estado de risco, adubada pelo terrorismo, faz com o que o discurso se autorize, em face das ditas necessidades, a suspender o Estado Democrático de Direito, promovendo uma incisão de emergência e total.
8 – Em nome da "claridade" surge a explosão do controle total, lembrando George Orwell, em seu "1984". Entretanto, a obscena pretensão de transparência total, em nome do (dito) interesse público, bem demonstrada na tese de doutorado de Túlio Lima Vianna, esconde interesses ideológicos obliterados da discussão manifesta. É no latente, no que marca o "sublime objeto da ideologia", para usar uma expressão de Zizek, que desponta o que tocaia. Por isto que estas considerações procuram estabelecer um diálogo a partir da Economia. A eficiência do controle é compartilhada pela questão dos custos. A Análise Econômica do Direito Penal – "AEDP" – defendida por muitos, dentre eles Posner, inclusive uns que se alastram no Brasil, defende que o "crime" precisa, ainda e necessariamente, atender o critério de custos. O cárcere é caro, custa muito. O RDD – Regime Disciplinar Diferenciado – é simbolicamente importante para o discurso totalitário (e inconstitucional), mas não justifica sua universalização por aumentar despesa. Logo, a pretensão de muitos é o estabelecimento de controles em liberdade, de toda a sociedade, tornando-se esta num "panóptico digital". Perceba-se que com isto se controla, via um simples GPS ou um fone NEXTEL, a localização, por rua, do assujeitado, ou mesmo via cartão de crédito e telefone celular, por suas antenas. Além disso, se controla onde se esteve e se impede, pensam, as re-uniões criminosas. Daí é que em nome da eficiência do controle, invoca-se "Tim Maia" e "vale tudo". O Direito que procura fazer obstáculo é tornado, em nome da segurança de todos, reflexivo. Puro embuste.
9 – De qualquer forma, isto é evidente, existe um inescondível condicionante econômico para que a realidade, entendida como os limites simbólicos, seja manipulada na ambivalência "medo-segurança", que toca no mais íntimo e estranho do sujeito (Freud). Monitorar, registrar e reconhecer, diz Túlio Vianna, para o seu próprio bem, implica, necessariamente numa versão de Estado Totalitário. A banalização ideológica, em nome do discurso único do capital, apresenta sob a flâmula sedutora da Liberdade toda sorte de justificativas para o fenecimento da solidariedade. Com o egoísmo, os meios, tudo passa a se justificar. As pretensões éticas (bem) e morais (bom) devem se adaptar às necessidades de um Mercado sem lei, sem limite, cujo muro se avizinha. Sem limite, por básico, não há desejo. A questão parece ser que a destruição da ficção Estado abre espaço para a Liberdade representada pelo Mercado. Nesta ironia de defender a Liberdade de todos mediante o agigantamento do controle, parece-me, num giro de linguagem, aplicável plenamente ao discurso neoliberal e suas teorias (Justiça, Direito Penal do Inimigo, etc..). O Direito Penal, no projeto Neoliberal, possui um papel fundamental na manutenção do sistema, eis que mediante a (dita) legitimação do uso da coerção, impõe a exclusão do mundo da vida com sujeitos engajados no projeto social-jurídico naturalizado, sem que se dêem conta de seus verdadeiros papéis sociais. Acredita-se que se é um excepcional funcionário público, tal qual Eichmann (em Jerusalém), ou seja, um sujeito cuja normalidade indicava a "Normalpatia" apontada por L.F. Barros, isto é, no seu excesso patológico. Esta a submissão alienada é vivenciada dramaticamente pelos metidos no processo penal.
10 – O discurso do ‘determinismo positivista’ é realimentado em face das condicionantes sociais, reeditando a necessidade de ‘tutelar’ os desviantes – consumidores falhos, "lixo humano", como se refere Bauman – mediante prevenção, repressão e terapia. O Estado Intervencionista da ‘Nova Escola Penal’ está de volta na sua missão de defender os cidadãos ‘bons e sadios’ dos ‘maus e doentes’, desenterrando o discurso etiológico, perfeitamente conveniente para mídia e para classe dominante. Sob o mote de curar ao mal, tendo a sociedade como um organismo vivo, na perspectiva de uma vida social sadia, a violência oficial se mostra mais do que justificada: é necessária à sobrevivência social, ainda mais contra o "terrorista social".
11 – Agamben deixa evidenciado que o poder soberano se apropria do poder de dizer o direito, podendo o Princípio da Legalidade cercar, sem nunca segurar, por básico, o sentido que advém de um processo constante de compreensão. Entre texto (fato gráfico) e norma (produto da interpretação), diz Cordero, existem opções múltiplas que somente os iludidos de sempre conseguem acreditar, em sua fé inabalável, em sentidos unívocos, ou seja, em segurança jurídica. O Princípio da Legalidade e a Segurança Jurídica, assim, são dois presentes trazidos por "Papai Noel" aos felizes "atores jurídicos analfabetos funcionais" em Direito e que se esgueiram, todos os dias, nos foros deste imenso país. A sensação que tenho, cada vez que adentro na teia do processo penal, é a de que se vive numa fantasia paranóica, a saber, imaginária: uma farsa. Algo que escrevi em minha tese de doutorado (Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006) como sendo Complexo de Truman. Muitos acreditam que o processo é a realidade, perfeitamente construída para apaziguar a falta nossa de cada dia, graças a Deus. Uma fraude para manter os atores jurídicos artificialmente felizes. Não há mundo além do processo, do semblante construído por significantes. É a posição calhorda. No filme foi preciso arrombar a porta para se dar conta de que existe mais. Enfim, que existe um mundo para além do construído artificialmente. Este é o desafio. Zizek e Mellman falam do homem sem gravidade, de baixa calorias, que vive por viver, vai – talvez embalado por uma destas teorias orientais da moda – sem eira nem beira. Mas existem vítimas! Que se danem – dizem –, não sou eu. Esta lógica "do meu umbigo" move, de regra, os enleados no processo penal. Uma fraude encenada em que se mantém a pose de democrata, com muita maquilagem cínica e a vítima, o Homo-Sacer de Agamben, não tem pena, se aplica pena.
12 – As vidas que se escondem nos processos penais, na sua grande maioria, são irreais para os promotores, advogados e juízes que assistem como se fosse mais um filme de mau-gosto, protagonizado por artistas que não merecem o papel. Deveriam ser retirados de cena. E são. É preciso retornar ao que Zizek aponta como o "Deserto do Real", saindo do semblante do universo processual artificial construído para que nos esqueçamos que existem pessoas morrendo. Gente. Como eu e você. Mas como não conseguimos ter a dimensão do que acontece, substituímos pelo semblante da ficção e suas verdades, para alguns Real. Este discernimento entre o real e o ficcional é o desafio num mundo sem perspectivas que não o "Shopping Center".
13 – Acrescente-se a isto tudo um vagaroso e eficaz processo de cooptação ideológica, na linha de Gramsci, dos atores jurídicos, pretensamente participantes da classe média e do consumo. Sedentos por segurança querem excluir, prender, matar simbolicamente, os de sempre: o diferente. A perspectiva de que querem acabar com a nossa paz social – nunca obtidade ou mesmo existente – que transforma um "furtador" – de xampu a carteiras – no "terrorista" responsável por nossa toda a nossa infelicidade. Então, cadeia neles. Penas mais altas. Exclusão. Mas como não funciona, porque não dá conta, mesmo, surge a compulsão por mais condenações, prisões, execuções, ideías loucas de castração, coleiras, Sex offender, apitos....
14 – Esses dias, um amigo – o Zé –, pessoa do povo, perguntou-me porque quem é preso em flagrante não vai direto cumprir pena? Por que o processo? Respondi que estamos, ainda, numa democracia em que o processo como procedimento em contraditório (Fazzalari) é o mecanismo democrático para se apurar a responsabilidade de alguém. Ele me respondeu que não precisa. Entendi a posição dele, até porque um homem pragmático. No Brasil, esta posição de execução antecipada, embora vedada pela Constituição, continua sendo a prática. Basta perceber que se homologa flagrante formalmente em diversas comarcas, nega-se a soltura de meros acusados com as justificativas mais loucas, tudo em nome da paz da sociedade, como Bush faz para atacar o mundo, bem sabem os Iraquianos. Isto bem demonstra a estrutura Inquisitória do Sistema Processual Penal brasileiro que mantém a pose democrática, mas exerce a mais violenta forma de seqüestro preliminar da liberdade. Todavia, quem respira um pouco de oxigênio democrático, sabe que somente o processo pode fazer ceder, via decisão transitada em julgado, a presunção constitucional da inocência, justamente porque é a Jurisdição a única que pode assim proceder. Ferrajoli bem sabe da impossibilidade de se extinguir as prisões cautelares (Leandro Goernick). Entretanto, mostra-se intolerável que as pessoas fiquem presas sem culpa, sem processo, presas pelo que são e não pelo que fizeram, em processos decorrentes de "furtos de moinhos de ventos". O processo precisa de tempo, e tempo é dinheiro. No mundo da eficiência, todavia, quer-se condenações no melhor estilo dos Tribunais Nazistas. Imediatamente. Sem direito de defesa e transmitidas ao vivo, com patrocidores a peso de ouro e muita audiência: plim-plim. A fórmula é a de sempre: Juvenal dizia: Pão e Circo. E quando acontecem prisões como a de Paulo Maluf a coisa fica pior, porque a Esquerda Punitiva é caolha, bem sabe Maria Lúcia Karam, não se dá conta de que relegitima o sistema penal, indica Juarez Cirino dos Santos. "Agora até o Maluf vai preso". E se Ele vai preso, com mais razão o "ladrãozinho" de frango de Televisão de Cachorro também. Então, quando se fala, na EC/45 de prazo razoável para os processos, muitos aplaudem a novidade, não fosse ela já uma velha disposição Constitucional, aderida ao corpo dos direitos fundamentais por força do art. 5, § 2o, da CR/88. Para saber disso, contudo, seria preciso conhecer os Direitos Humanos, coisa que poucos conhecem. Daí que a barbárie se instaura e dá no que dá. Mediante um giro de sentido, os nazistas de plantão passaram a dizer que o a Sociedade (e não o acusado) precisa de uma decisão num prazo razoável e por isso a sumarização do processo, com a restrição da defesa. As alquimias, como fala Aury Lopes Jr, começaram. Inverte-se a lógica em nome do Bem, do Justo, lugar sempre empulhador.
15 – Demora-se muito para julgar porque fora a esculhambação que são os Juizados Especiais Criminais, onde vale tudo e se dá um tratamento rápido e inconstitucional a questões sociais, a saber, dificilmente um Termo Circunstanciado é crime: pode ser briga entre parentes, vizinhos, xingamentos, latido de cachorro, direito de vizinhança. Mas como não se têm acesso ao Judiciário no Cível, resta a "queixa" na Delegacia. Um programa de auditório de mau-gosto, onde os pobres entram com sua ficha de antecedentes e, até, com o corpo. No juízo comum, denuncia-se falta de pagamento de imposto, furto de sabonete, calcinha e coisas do gênero. Não sobra tempo, de fato, para o que importa numa sociedade em que o Direito Penal deveria ser mínimo (Ferrajoli e Salo de Carvalho). Se for mínimo, contudo, não faz o que é sua função oculta (Baratta): criminalizar a pobreza, os consumidores falhos, mantendo a "hi-Society" nas suas coberturas sociais.
16 – Alguma coisa anda fora da ordem, dizia Caetano há um tempo. Hoje as coisas já estão dentro da nova ordem neoliberal mundial, inclusive o processo penal: Sumário, eficiente. De outro lado, o Conselho Nacional da Justiça, órgão criado para ser o Grande Irmão de Orwell. Diretamente de 1984 para 2004, começa a fazer seus estragos, apesar de seu possível papel democrático. Um "denuncismo" sem precedentes, onde não raro surgem as vaidades afloradas, os narcisismos das pequenas diferenças, diria Freud. Números, eficiência, empulhação. Para que direito de defesa se tenho que baixar o meu mapa? Para que ouvida de testemunhas se o processo vai ficar no mapa? O Juiz Astrólogo: só quer saber de mapa. Ainda mais quando depende da produtividade para conseguir uma promoção! A pretensão de transparência e eficiência do Judiciário tornou a situação extemamente ambígua. Por outro lado, defende-se a formação permanente dos magistrados via Escolas da Magistratura que escondem o efeito de normatização dos juristas analfabetos funcionais. Eficiência, facilidade, cursos "rápidos de como fazer uma decisão" para aprender a posição dominante, controlar as idéias e do acesso à carreira, bem sabia Lyra Filho. Enfim, a docilização, normatização indicada por Foucault.
17 – O Processo Penal Democrático, assim, parafraseando Dworkin, precisa ser levado a sério. O problema fundamental reside no fato de que a justificativa para a exceção encontra-se encoberta ideologicamente. Acredita-se, muito de boa-fé, a maioria, de que se está realizando um bem. Salvando a Sociedade de um "Terrorista Social". Esqueceu-se de que para o uso do poder existem pelo menos dois limites: o processo e o ético (Dussel). Exercer uma parcela do poder em face dos acusados é muito mais tranqüilo para os kantianos de sempre, fiéis cumpridores das normas jurídicas, sejam elas quais forem. Os "acusados-terroristas-sociais" passam a ser uma das faces da vida nua, isto é, "homo sacer", a que é matável, mas não sacrificável. Assim, os rostos do poder encontram-se maleáveis, mutantes, em torno de um lugar pensado para não pensar, mas para cumprir acriticamente. Os soldados juízes estão aí para aplicar a regra, numa Filosofia de "Cruz Vermelha" (Cyro Marcos da Silva), rumo a salvação eficiente das almas destes pobres de espírito. Até quando viverão felizes para sempre? Rever e compreender a mirada é o desafio, sempre. A tarefa, percebe-se, não é singela, mormente porque é necessário abjurar o que se acreditou com tanta fé, além de se expor à crítica virulenta dos iludidos de sempre, cujo véu moral cega qualquer pretensão democrática, já que acreditam – o Imaginário deslizando – estar comprando um lugar no céu, na Ilha dos Abençoados. Não podemos ter medo de resistir. É preciso resgatar a Constituição Originária, na linha de Paulo Bonavides, exercitar o controle de constitucionalidade difuso e deixar de fazer como todo mundo faz. Porque assistir de camarote o que se passa com as vítimas do sistema penal não exclui nossa responsabilidade ética com as mortes: somos co-autores, do nosso lugar, por omissão.
18 – Quando Georg Lukács foi preso, o policial perguntou se estava armado, tendo este lhe entregue calmamente a caneta. É preciso que as canetas pesem democraticamente, mediante um processo penal garantista (Ferrajoli), para que se possa dar um basta. Temos que correr riscos sempre, porque prefiro perecer pelas extremos do que pelas extremidades, como aponta Baudrillard. Que me entendam fugazmente se forem capazes, disse, sabiamente, Lacan. Muito Obrigado.
Na veia.
ResponderExcluirDe uma lucidez incrível, nesse universo repleto de automatismos e pragmatismos...
ResponderExcluirLeonardo Biagioni de Lima
Meus mais sinceros parabéns. Sua análise é de tamanha profundidade e simplicidade que consegue fazer com que tanto o dito erudito respeite-o como o sábio popular o entenda.
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