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04/03/2012

A gravidade da mera opinião de um promotor - Ilana Casoy


A gravidade da mera opinião de um promotor


Assisti ao júri de Josef K., personagem de Franz Kafka. Sentada, ali no plenário, o desenrolar e desfecho desse processo do Senhor J. não poderia ser mais igual. Um senhor, 53 ou 56 anos, não se sabe se o registro de nascimento foi feito exatamente na data certa ou tempos depois, como é comum nos confins do norte/nordeste do país, com a aparência de alguém de 70 anos. Surdo, esticava algumas vezes a orelha direita, “seu melhor ouvido”, para tentar encontrar uma pista do que se passava.  Homem mais do que simples, brasileiro que mal fala português, e quando escuta finalmente o que lhe está sendo dito, não compreende nem ao menos a metade. Logo desistiu de alcançar o teor das cenas e diálogos que se desenrolavam frente à sua vista.
O Senhor J. se desentendeu com uma vizinha, que arrancou sua plantação mínima de milho cultivada entre - limites dos dois terrenos, e arrancou da terra sua colheita próxima. Tratou-se de uma discussão sobre 30 centímetros de terra. Fútil? Era a qualificadora que a ele foi imposta. Um homem para quem a terra plantada tudo significa. A vizinha, diabolicamente articulada, pediu ajuda ao marido da amiga, pessoa culta de bairro próximo, para resolver a situação com o “velho safado”. Assim inicia-se uma tragédia. O homem chamado pede o auxílio do bicheiro e traficante seu amigo, aquele com uma ficha criminal extensa e “respeitável”, e dirigem-se à casa do senhor J. , cheios de “justiça” nas mãos.
Armados de pedaços de pau levam o “usurpador” para os fundos e aplicam-lhe uma lição. Assim que escapa, sangrando, o Senhor J., que lembrem-se, não deve ter escutado ou entendido sobre o que se tratava a surra que levava, entrou em seu pequeno cômodo. Quando viu seu portãozinho ser derrubado, e de tão pequeno que era o cômodo o portão lhe bateu no peito, alcançou uma faca, e cego pelo sangue que lhe escorria pelas faces, alvejou o primeiro que pode e saiu correndo pela porta. Acertou a jugular do indivíduo, sem ao menos saber o que é uma veia jugular ou onde fica, matando-o. Assustado, correu quanto pode, arrumou dinheiro e fugiu para o Piauí, com medo da revanche e da polícia. Fugiu para a roça, de onde nunca deveria ter saído. Aí está nosso “criminoso” do dia.
Anos depois, capturado em sua rotina pacata, algemado, voltou à grande cidade, dessa vez para morar nos porões das penitenciárias paulistanas. Até, ao menos, seu julgamento. Quase dois anos se passaram, até que fosse marcado finalmente o dia de seu juízo final, assistido por jovem advogado pro Bono, há menos de um mês no caso. E as cortinas se abrem para que a “justiça” seja feita.
Assisti um conhecido promotor, com carreira inigualável em número de inocentes condenados, espremer sua próxima vítima. O método utilizado por esse profissional é execrável, pois se utiliza o que seriam “dados periciais” para rechear uma história que compromete o réu. Funciona de maneira simples: se está escrito no laudo necroscópico que uma facada veio de cima para baixo, da direita para a esquerda, na região clavicular, ele bradará que a vítima foi atingida pelas costas “indubitavelmente”, de forma indefensável. Ampara-se em livros de anatomia bem desenhados, e reconstrói o crime utilizando pseudociência há muito banida das cortes americanas pelo Teste de Frye.
Esse teste refere-se a um padrão para admitir a evidência científica no julgamento, aceita ou rejeitada pelo juiz, pois um jurado pode, pela incompreensão do processo científico em que se baseia o pressuposto utilizado, condenar injustamente um réu. E assim foi feito contra o Senhor J., mais um na lista daqueles josés em que o processo não tem fotografias, laudo de local, reconstrução de crime feita por profissionais cientistas, nada. Não um Caso Nardoni ou Lindemberg, amparado por centenas de milhares de fotografias, exames, análises, pareceres. Dessa vez, nada.
O promotor completa a perversidade utilizando-se do velho e gasto, mas ainda competente discurso do medo. Aponta para o surdo ali sentado, como se fora a ameaça do aumento da impunidade e criminalidade, e brada teatralmente que, ao condenar, o jurado pode dormir tranquilo. Sem nenhuma vergonha de prometer o que sabe jamais ter possibilidade de ser cumprido, completa dizendo que o Senhor J. terá sua progressão de pena em dois meses apenas, caso seja condenado a doze anos de prisão. Sim, já cumpriu mesmo quase dois anos, 700 longos dias até aqui, o que seria 1/6 de sua sentença, e então é só ir ali, na Vara de Execuções Penais, pedir a liberdade e sair da prisão. Então, senhores jurados, pelo sim pelo não, vamos condenar o Senhor J., dormir tranquilos, porque, mesmo se não estiver exatamente correto, não faremos mal nenhum a ele.
Vi um jovem advogado de defesa tentar, em vão, explicar aos jurados, a legítima defesa e o homicídio privilegiado por violenta emoção após injusta provocação. Vi um jovem advogado tentar convencer os jurados, a maioria em seu primeiro júri, que se fizessem isso poderiam acompanhar o caso e ter a prova de que, em menos de um ano, culpa de nosso sistema abarrotado, o Senhor J. jamais veria a luz do sol novamente. Vi um jovem advogado, ainda acreditando no ser humano, explicar a situação kafkaniana do Senhor J., para quem talvez nem saiba que uma vez existiu um escritor chamado Kafka...Vi um jovem advogado explicar insistentemente que aquela conclusão baseada em uma frase do laudo necroscópico não era científica, e sim a mera opinião de um promotor apenas preocupado em condenar, não em fazer Justiça. Sim, um promotor chamado para condenar quando outro promotor vai pedir absolvição de réus obviamente inocentes, como em caso acontecido recentemente em Tribunal de São Paulo. Troca-se o promotor, troca-se o veredicto.
Vi um jovem advogado tentar, bravamente, trazer um pouco de humanidade em almas juradas sem esperança, talhadas por promotores com quem se relacionam cotidianamente, até com alguma intimidade, e em quem acreditam facilmente. Vi um jovem advogado se emocionar ao olhar seu próprio réu, ali sentado, alheio, sem escutar nenhuma testemunha. Garantido que ele escutou a pronúncia, como manda a lei. Mas compreendeu as palavras que lhe foram lidas? Nem em sonho!
E assim acaba o julgamento do pobre Senhor J., condenado por homicídio duplamente qualificado, a doze anos de prisão. Pobre em todos os sentidos que o dicionário pode trazer. Mas não se preocupem, em dois meses estarei no Tribunal, verificando se seu pedido de progressão de pena foi atendido. E enviarei correspondência pessoal a cada jurado, para que acompanhem o engodo no qual caíram. E publicarei a data em que o Senhor J. finalmente estará livre, para voltar às roças do Piauí.
Ilana Casoy é criminóloga, escritora e intergante do Núcleo de Antropologia do Direito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP).
Revista Consultor Jurídico, 1º de março de 2012

Um comentário:

  1. José E. da C. Fontenelle Neto4 de março de 2012 às 13:55

    Isto é fruto da falta de humanidade junto ao egoísmo de certos promotores, que se preocupam mais em "ganhar a causa" do que em cumprir sua prerrogativa, a qual na minha opinião é uma das mais importantes do direito, a de buscar a verdade, de ir atrás dos fatos e de realmente buscar a todo custo mostrar em juizo essa verdade fática, mostrar o que de fato ocorreu, e não de buscar uma condenação a todo custo.
    Eu não diria que isso é tão estranho ao nosso sistema (desigual e de medo), afinal basta se ver a proporção que tomou o Ministerio Público frete a Defensoria Pública. Creio que neste caso fica a crítica de que está mais do que na hora de ter uma defensoria pública eficaz, o que nada mais é do que um direito constitucional pertencente aos que dela necessitam, e em muitas cidades, como Joinville, a qual resido,por exemplo, não há este órgão, ficando esses Senhores J. à mercê de quem aceitar defendê-los dativamente.

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