Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos
Alexandre Morais da Rosa

Kindle - Meu livro novo

O meu livro Jurisdição do Real x Controle Penal: Direito & Psicanálise, via Literatura foi publicado pela http://www.kindlebook.com.br/ na Amazon.
Não precisa ter o Kindle. Pode-se baixar o programa e ler o livro. CLIQUE AQUI

AGORA O LIVRO PODE SER COMPRADO NA LIVRARIA CULTURA - CLIQUE AQUI

Também pode ser comprado na LIVRARIA SARAIVA - CLIQUE AQUI

LIVROS LUMEN JURIS - CLIQUE AQUI

22/11/2011

“Lei Seca”, “Tolerância Zero” e o “Direito Penal Simbólico” Roberto Corcioli.

“Lei Seca”, “Tolerância Zero” e o “Direito Penal Simbólico” Roberto Corcioli.

“Parece estar na hora de se focar a discussão muito mais na condução irresponsável – que muitas vezes é praticada por sujeitos sóbrios – do que no mero consumo de álcool”.


Dentro do contexto do chamado “Direito Penal Simbólico”, foi aprovada e sancionada em 2008 a alteração (dentre outros) do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, recrudescendo a reprovabilidade da condução de veículo automotor sob o efeito de álcool ou outra substância análoga.
Mas como também é comum desta onda legislativa que vê no Direito Penal a via de solução de todas as mazelas da sociedade, acabou-se “dando um tiro no pé”.
Retirou-se a exigência, na condução do veículo em estado de embriaguez, de se expor “a dano potencial a incolumidade de outrem”, porém passou-se a exigir a “concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas” (“ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”).
Dois grandes erros.
Tratemos, inicialmente, do segundo, muito bem apontado por Renato Marcão em seu artigo publicado nestas MIGALHAS de ontem (“O artigo 306 do CTB no PLS 48/11: da ‘Lei Não Tão Seca’ à ‘Tolerância Zero’ com ‘Culpa Alcoólica’).
De fato, não é preciso muito esforço interpretativo para se chegar à conclusão de que um erro não corrige outro[1]. Assim, se errou o legislador ao fixar um parâmetro somente aferível por meio de exame de sangue ou pela sujeição ao teste do bafômetro, não se pode prescindir de um ou de outro para a caracterização da infração. E, após alguma discussão, vem caminhando a jurisprudência para a consagração da garantia de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (art. 8º, II, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos e art. 5º, LXIII, da Constituição Federal). Assim, atualmente, mesmo visível e completamente embriagado, o causador de um acidente de trânsito não poderá ser punido caso não se submeta a um dos testes capazes de indicar a exata concentração de álcool em sua corrente sanguínea[2].
Para a “correção deste erro”, tramita o PLS 48/11, que visa, dentre outras alterações na temática da condução de veículo automotor sob a influência do álcool ou de outra substância de efeito análogo, permitir a aferição do estado de embriaguez (em resumo) por todos os meios de provas em Direito admitidas.
Ou seja, volta-se, neste ponto, à redação original do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
E a alteração é positiva não apenas porque permite a punição mesmo daqueles que se recusem a se submeter ao teste do bafômetro ou ao exame de sangue, mas também por deixar de lado um limite absoluto que muitas vezes não reflete, de fato, o grau de prejuízo ao reflexo ou ao senso de responsabilidade do motorista causado pelo consumo de pequenas doses de álcool[3].
Quanto ao segundo “equívoco” da chamada “Lei Seca”, tem-se a pretensão de se transformar a infração em questão de crime de perigo concreto em abstrato.
Diz-se “pretensão” porque uma coisa é a vontade do legislador em alterar tal ou qual regime jurídico, outra é a validade, sob o ponto de vista constitucional, da alteração perpetrada.
Conforme bem analisado por Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto[4], “a criminalização da direção embriagada é uma medida de política criminal muito acertada, porque visa a proteger bens jurídicos importantes (vida, integridade física, etc.). Mas é preciso saber com quais possibilidades conta o legislador para fazer isso de forma constitucional (e legítima). O legislador ordinário tem limites. Nem tudo que ele põe em vigência vale”.
Segundo os autores, “o art. 306 não é um delito de perigo abstrato. Exige, além da condição do motorista (estar bêbado ou sob efeito de substância psicoativa), também a comprovação de uma direção anormal (ziguezague, v.g.), que espelha o chamado perigo concreto indeterminado (rebaixamento da segurança viária, dispensando vítima concreta)”,
De fato, admitir a vigência de dispositivos penais que se valem do chamado perigo abstrato é consagrar uma “posição absolutista, autoritária, que fere o princípio da ofensividade”.
Assim, não se pode concordar com o entendimento recentemente adotado pela 2ª Turma do Suprimo Tribunal Federal (HC 109.269/MG, rel. Min. Ricardo Lewandowsky, j. 27/9/2011).
No mesmo Tendências e Debates da Folha de S. Paulo da data citada em nota supra, o senador Ricardo Ferraço sustenta, por sua vez, que “vale lembrar que o porte ilegal de armas também é crime, independentemente de assassinato”.
Mas a comparação não procede.
Em primeiro lugar, não representando a arma, no caso concreto, qualquer perigo potencial a outrem, por estar, por exemplo, desmontada e devidamente acondicionada sem possibilidade de pronto uso, não se configura o delito[5].
E em segundo lugar, não se está defendendo que somente haja a punição da embriaguez ao volante no caso de ser produzido um dano físico a outrem em um eventual acidente.
O que se está a defender são as noções democráticas de um Direito Penal que se preocupa, de fato, com condutas lesivas ou potencialmente lesivas a bens jurídicos relevantes.
Dirigir após o consumo de pequena dose de álcool – não suficiente para deprimir significativamente, no caso concreto, os reflexos do indivíduo –, mas com senso de responsabilidade e com cautela, não se mostra potencialmente lesivo ao bem comum a ponto de justificar a intervenção de todo um aparato punitivo com a carga repressiva inerente ao sistema penal, se tal condução não implicar, de fato, em qualquer risco ao bem jurídico tutelado. Mas fazê-lo de modo irresponsável, conduzindo-se o veículo de maneira anormal, certamente representa um risco potencial a terceiros. E, neste ponto, parece estar na hora de se focar a discussão muito mais na condução irresponsável – que muitas vezes é praticada por sujeitos sóbrios – do que no mero consumo de álcool[6].
A prosperar o PLS 48/11, que mantém a proposta de se ter como de perigo abstrato o tipo em questão, ter-se-á perdido uma excelente oportunidade para, também neste ponto, voltar a viger a redação da norma original do Código de Trânsito, evitando-se que apenas alguns juristas “mais ousados” tenham por inconstitucional qualquer interpretação que visa afastar a necessidade de um perigo concreto (condução anormal, causando risco de acidente) para o delito em tela.
Não fosse o “Direito Penal do Espetáculo”, poderíamos ter despendido as energias gastas com a alteração da (adequada) redação original do art. 306 do Código de Trânsito em verdadeiras e eficazes políticas públicas de educação, prevenção e fiscalização no trânsito[7].
Para concluir, e tendo em vista que estas breves linhas não têm qualquer pretensão científica, tomo a liberdade de observar que por inúmeras vezes, no meu anterior exercício da defensoria pública, via por trás do rosto da mãe, que se indignava pelo fato de seu filho ter sido preso, a mesma face da telespectadora que concordava (e provavelmente continuará a concordar após a eventual soltura do “filho injustiçado”) com o bordão repetido à exaustão nos programas policiais da TV: “bandido bom é bandido morto”. Ou seja, para qualquer lugar que se olhe, nota-se a falta de algo essencial para o bom convívio democrático, a alteridade. Bem que os operadores do direito, pela sua qualificação, poderiam dar o exemplo, defendendo um Direito Penal e também Processual Penal que, ao contrário do que propagam seus críticos, não vêm a serviço dos “delinqüentes”, mas que consagram o respeito ao ser humano – antevendo que nem sempre o réu é culpado, bem como prescrevendo tratamento justo também para os que os sejam – e se focam nos limites de sua atuação legítima, deixando para outras áreas as tarefas que fogem ao seu propósito no contexto de um Estado Democrático de Direito – o qual se legitima pelos benefícios (inclusive sociais) oferecidos a todos aqueles que abrem mão apenas da parcela minimamente necessária de sua liberdade para receberem em troca a segurança prometida pela vida em sociedade, mas que, certamente, não é alcançada por meio de normas repressivas a condutas que não trazem qualquer mal (ainda que potencial) a terceiros.


Roberto Luiz Corcioli Filho, juiz de direito no estado de São Paulo e membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD.



[1] Como também o fato de serem altas as estatísticas de mortes no trânsito não pode justificar que todo e qualquer acidente que envolva o consumo de álcool ou a direção em velocidade acima do permitido implique no reconhecimento do dolo eventual.

[2] Neste ponto, interessante citar Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, 10ª Ed, Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2008, pp. 336/342, que menciona que “as legislações européias, de modo geral, bem como a anglo-americana e algumas de países da América do Sul, como ocorre coma a Argentina”, por exemplo, possuem a “previsão e aplicação do princípio da não auto-incriminação, mas nos limites de suas concretas finalidades, que é a proteção da dignidade humana da pessoa, da sua integridade física e mental, de sua capacidade de autodeterminação e do exercício efetivo do direito de não ser obrigado a depor contra si”. Assim, por esta linha, o teste do bafômetro não contrariaria o direito constitucional da não auto-incriminação ou do direito ao silêncio, uma vez que a mera submissão ao referido teste encontra previsão legal e não feriria a integridade, física e mental, do acusado, a sua capacidade de autodeterminação, bem como a dignidade da pessoa humana, justamente por ser um procedimento não invasivo. Ainda que muito interessante a análise feita pelo autor, esta deixará de ser abordada, no entanto, nesta oportunidade por fugir dos propósitos deste escrito.

[3] Neste ponto, interessante a leitura do artigo publicado por Fernando Costa Mattos no Tendências e Debates da Folha de S. Paulo de 21 de novembro de 2011 que, dentre diversos questionamentos bastante pertinentes, sustenta que, “aparentemente, dirigir a 250 km/h é menos grave, aos olhos do legislador pátrio, do que dirigir cautelosamente, para percorrer um trajeto curto, tendo tomado um ou dois chopes”.

[4] Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, pp. 377/378.

[5] Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 2ª ed, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 82.

[6] Conforme Fernando Costa Mattos, em texto citado supra, “basta uma coisa problemática estar relacionada a tabaco, a álcool ou a outras drogas para que esses sejam logo considerados os grandes vilões da história, sem levar em conta outros fatores e nuanças do problema (vide a recente demonização dos ‘maconheiros da USP’). Fulano usou droga? Que vá para a cadeia! Sicrano fumou em local fechado? Que vá para a cadeia! (Sim, isso logo será crime!). Beltrano bebeu e dirigiu (não importando se para percorrer uma curta distância entre o bar e sua casa ou se para pegar uma estrada e andar a 250 km/h)? Que vá para a cadeia!... Ora! Que se construam logo novas cadeias! E não porque as atuais estejam abarrotadas (como estamos fartos de saber), mas porque logo a sociedade inteira estará nelas (tal como foi para o hospício em ‘O Alienista’, de Machado de Assis)”.

[7] Conforme bem concluído por Renato Marcão, “o exagero punitivo que vai distante de critérios criminológicos e fere o sistema não merece aplauso, até porque certamente irá encontrar resistência técnica na sua materialização, tumultuando a prática judiciária e causando insegurança jurídica na sociedade. Para não errar mais uma vez, exatamente no manuseio de tema tão preocupante, o legislador não pode, e não deve, desconsiderar critérios científicos e pautar suas proposições exclusivamente por influxos outros, apenas para agradar o eleitorado”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Mega Big Brother

Contador de visitas