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08/12/2010

Piratas vingadores e espiões em diligência, por Umberto Eco

O caso WikiLeaks


Piratas vingadores e espiões em diligência

2/12/2010, Umberto Eco, Libération, Paris (traduzido em PresseEurop, Portugal)


O caso WikiLeaks tem uma dupla leitura. Por um lado, revela-se um escândalo aparente, um escândalo que só escandaliza por causa da hipocrisia que rege as relações entre os Estados, os cidadãos e a Comunicação Social. Por outro, anuncia profundas alterações a nível internacional e prefigura um futuro dominado pela recessão.



Mas vamos por partes. O primeiro aspeto revelado pelo WikiLeaks é a confirmação do facto de cada processo constituído por um serviço secreto (de qualquer nação) ser composto exclusivamente por recortes de imprensa.



As “extraordinárias” revelações norte-americanas sobre os hábitos sexuais de Berlusconi apenas relatam o que há meses se anda a ler em qualquer jornal (exceto naqueles de que Berlusconi é proprietário), e o perfil sinistramente caricatural de Kadhafi era já há muito tempo matéria para piadas dos artistas de cabaré.



A regra segundo a qual os processos secretos não devem ser compostos senão por notícias já conhecidas é essencial à dinâmica dos serviços secretos, e não apenas neste século. Se for a uma livraria consagrada a publicações esotéricas, verá que cada obra (sobre o Graal, o mistério de Rennes-le-Château, os Templários ou os Rosa-Cruz) repete exatamente o que já tinha sido escrito nas obras precedentes. E isso não apenas porque o autor de textos ocultos não gosta de fazer investigações inéditas (nem sabe onde procurar notícias sobre o inexistente), mas porque os que se dedicam ao ocultismo só acreditam naquilo que já sabem e que confirma o que já tinham aprendido.



É o mecanismo do sucesso de Dan Brown. E vale para os arquivos secretos. O informador é preguiçoso, e preguiçoso (ou de espírito limitado) é o chefe dos serviços secretos (caso contrário, podia ser, quem sabe, editor do Libération), que não reconhece como verdade a não ser aquilo que reconhece. As informações ultrassecretas sobre Berlusconi, que a embaixada norte-americana em Roma enviava ao Departamento de Estado, eram as mesmas que a Newsweek publicava na semana anterior.



Então por que tanto barulho em torno das revelações destes processos? Por um lado, dizem o que qualquer pessoa informada já sabe, nomeadamente que as embaixadas, pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial e desde que os chefes de Estado podem telefonar uns aos outros ou tomar um avião para se encontrarem para jantar, perderam a sua função diplomática e, à exceção de alguns pequenos exercícios de representação, transformaram-se em centros de espionagem. Qualquer espetador de filmes de investigação sabe isso perfeitamente e só por hipocrisia finge ignorar.



No entanto, o facto de ser exposto publicamente viola o dever de hipocrisia e serve para estragar a imagem da diplomacia norte-americana. Em segundo lugar, a ideia de que qualquer pirata informático possa captar os segredos mais secretos do país mais poderoso do mundo desfere um golpe não negligenciável no prestígio do Departamento de Estado. Assim, o escândalo põe tanto em cheque as vítimas como os “algozes”.



Mas vejamos a natureza profunda do que aconteceu. Outrora, no tempo de Orwell, podia-se conceber todo o poder como um Big Brother, que controlava cada gesto dos seus súbditos. A profecia orwelliana confirmou-se plenamente desde que, controlado cada movimento por telefone, cada transação efetuada, hotéis utilizados, autoestradas percorridas e assim por diante, o cidadão se foi tornando na vítima integral do olho do poder. Mas quando se demonstra, como acontece agora, que mesmo as criptas dos segredos do poder não escapam ao controlo de um pirata informático, a relação de controlo deixa de ser unidirecional e torna-se circular. O poder controla cada cidadão, mas cada cidadão, ou pelo menos um pirata informático – qual vingador do cidadão –, pode aceder a todos os segredos do poder.



Como se aguenta um poder que deixou de ter a possibilidade de conservar os seus próprios segredos? É verdade, já o dizia Georg Simmel, que um verdadeiro segredo é um segredo vazio (e um segredo vazio nunca poderá ser revelado); é igualmente verdade que saber tudo sobre o caráter de Berlusconi ou de Merkel é realmente um segredo vazio de segredo, porque releva do domínio público; mas revelar, como fez o WikiLeaks, que os segredos de Hillary Clinton são segredos vazios significa retirar-lhe qualquer poder. O WikiLeaks não fez mossa nenhuma a Sarkozy ou a Merkel, mas fez uma enorme a Clinton e Obama.



Quais serão as consequências desta ferida infligida num poder muito poderoso? É evidente que, no futuro, os Estados não poderão ligar à Internet nenhuma informação confidencial – é o mesmo que publicá-la num cartaz colado na esquina da rua. Mas é também evidente que, com as tecnologias atuais, é vão esperar poder manter conversas confidenciais por telefone. Nada mais fácil do que descobrir se e quando um Chefe de Estado se desloca de avião ou contactou um dos seus colegas. Como poderão ser mantidas, no futuro, relações privadas e reservadas?



Sei perfeitamente que, para já, a minha visão é um pouco de ficção científica e, por conseguinte, romanesca, mas vejo-me obrigado a imaginar agentes do governo a deslocar-se discretamente em diligências de itinerários incontroláveis, portadores de mensagens que têm de ser decoradas ou, no máximo, escondendo as raras informações escritas no tacão de um sapato. As informações serão conservadas em cópia única, em gavetas fechadas à chave: afinal, a tentativa de espionagem do Watergate teve menos êxito do que o WikiLeaks.



Já tive ocasião de escrever que a tecnologia avança agora a passo de caranguejo, ou seja às arrecuas. Um século depois de o telégrafo sem fios ter revolucionado as comunicações, a Internet restabeleceu um telégrafo com fios (telefónicos). As cassetes de vídeo (analógicas) permitiram aos investigadores de cinema explorar um filme passo-a-passo, andando para trás e para diante, a descobrir todos os segredos da montagem; agora, os CD (digitais) permitem apenas saltar de capítulo em capítulo, ou seja por macro porções. Com os comboios de alta velocidade, vai-se de Roma a Milão em três horas, enquanto, de avião, com as deslocações que implica, é necessário três horas e meia. Não é, pois, descabido que a política e as técnicas de comunicação voltem aos carros puxados a cavalo.



Uma última observação. Dantes, a imprensa tentava compreender o que se tramava no segredo das embaixadas. Atualmente, são as embaixadas que pedem informações confidenciais à imprensa.

Um comentário:

  1. Muito boa, faço um link com uma entrevista do sociólogo Stephen Duncombe da NYU, sobre a mudança da noção de liberdade de imprensa. Neste relato, ele trabalha a idéia da necessidade que os grandes jornais tem de novas fontes como o WikiLeaks.
    Forma um círculo vicioso: A mídia precisa do WikiLeaks, o WikiLeaks necessita dos embaixadores, e os embaixadores só enchergam o que a mídia padronizada expõe.

    De qualquer forma, temos uma fofoca para ver toda manhã!!! É como se fosse uma revista capricho ou tititi, só que para amantes das relações internacionais!!!

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