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20/12/2010

O Estado se colocou à margem da lei - João Batista Damasceno


16/12/2010

Entrevista: João Batista Damasceno


Por Tatiana Merlino

Para João Batista Damasceno, cientista político e juiz de direito da Associação Juízes para a Democracia (AJD), a reação do Estado brasileiro aos ataques de violência no Rio de Janeiro foi feita toda “à margem da legalidade”. “O Estado perdeu a superioridade ética ao tomar como referência a atuação daqueles que estão fora da lei”.

Caros Amigos - Qual sua opinião em relação à resposta do Estado às ações criminosas no Rio de Janeiro?

Ao invés de tomar como paradigma para sua ação a Constituição e a ordem jurídica, ele tomou como paradigma a atuação daqueles que vivem à margem da lei. O que o Estado acabou fazendo no Complexo do Alemão, foi colocar-se à margem da Constituição, à margem da lei, numa operação que se destina a combater a ação de outras pessoas que estão, estariam, igualmente à margem da lei.

Caros Amigos - Quais foram as medidas tomadas que estão à margem da lei?

As duas primeiras questões estão na violação dos domicílios. A Constituição prevê que a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém podendo nela penetrar sem o consentimento do morador, salvo em flagrante de delito, ou desastre, para prestar socorro, ou determinação judicial. A segunda violação é a prisão para averiguação.
Segundo a Constituição, um dos direitos fundamentais é que ninguém será preso se não em flagrante de delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária. De antemão, temos duas flagrantes violações à Constituição. As invasões aos domicílios sem nenhum mandado estão sendo feitas sem controle judicial. E o Judiciário também está se omitindo em realizar um controle que lhe compete. Tudo que está sendo feito lá está sendo feito à margem das instituições, da legalidade.

A Constituição diz que o preso será imediatamente apresentado à autoridade judiciária que relaxará a prisão em caso de ilegalidade, e isto não está acontecendo também. Estamos tendo um conjunto de ilegalidades no próprio procedimento, além das outras. É o roubo ao patrimônio dos moradores, os saques, agressões físicas, que são desdobramentos das primeiras violações à ordem constitucional.

Caros Amigos - Aquela cena transmitida pela televisão, os suspeitos correndo e a polícia atrás atirando, isso também é inconstitucional?

Ninguém está obrigado a eximir-se da auto-defesa, e portanto, particulares e agentes públicos podem atuar em legítima defesa para repelir uma agressão. Então, a atuação da legítima defesa, ela não precisa sequer estar explicitada na ordem jurídica. Ela decorre da auto preservação, e ainda que o banho de sangue não tenha sido tão acentuado como alguns setores demandavam, não sabemos quantos foram naquela operação. Fala-se entre 40 e 60, mas especula-se que há mais de cem e que o IML estaria abarrotado de mortos. Sequer esse controle nós temos. E a própria atuação da defensoria pública que colocou um ônibus na localidade, está funcionando com o aval da polícia e no centro de operações da polícia. Não é uma medida de controle porque não se controla com a autorização do controlado.

Caros Amigos - E a permanência da polícia no local por tempo indeterminado, quais podem ser as consequências disso?

Essas tropas militares que estão atuando lá são egressas do Haiti, onde o Brasil foi fazer um ensaio para depois exercitar o mesmo tipo de atividade nas favelas brasileiras. E o histórico que temos da atuação das tropas brasileiras no Haiti não é um histórico bom, temos acusações de violações de direitos humanos.  Lá, essas tropas atuaram à margem da legalidade, desrespeitando a dignidade humana. E são as mesmas pessoas, as mesmas tropas que atuarão contra os pobres nas favelas brasileiras. Então é complicado, e a própria forma da criminalização e do paradigma bélico para tratar uma questão que permeia as relações sociais, que é o crime, é muito complicado.

A própria concepção de política criminal de combate à criminalidade por meio de aparato bélico, que não é próprio, e os termos são impróprios. Fala-se em terrorismo, quando terrorismo é a atuação de um grupo político ideológico, visando a tomada de poder. Fala-se em guerra, mas toda a guerra tem um motivo e um momento para começar e terminar, o que é diferente do crime. O crime permeia as relações sociais. Falar em guerra ao crime é impróprio porque onde tiver sociedade vai ter crime e o aparato bélico. A guerra não é própria para lidar com essas ocorrências, que é própria das relações humanas.

Caros Amigos - O senhor acha que esse tipo de tratamento, da luta do bem contra o mal, pode legitimar extermínio e violações por parte do aparato estatal?

Toda vez que temos essa concepção de bem contra o mal, se busca a eliminação do mal, e foi isso que tivemos com o George Bush tratando alguns países como eixo do mal e encarnando o papel de bem. Nessa luta, não se passa por bem contra o mal.

A ideia que está se vendendo é essa, mas se fossemos adotar essa concepção dualista da relação o que teríamos é um mal contra outro mal. Porque as armas e drogas que estão lá não chegaram sem o apoio e sem serem levadas, muitas das vezes, pela própria polícia que agora combate. Temos outra questão muito complicada que são as milícias.
Muitas áreas onde o tráfico foi expulso foram tomadas pelas milícias, e muitas delas voltaram a ter o tráfico, mas dessa vez com a territorialidade arrendada pelos milicianos donos da área, controladores da área.

Reserva-se o papel dos atacadistas e fornecedores, deixando tão somente o varejo para o traficante. Essa concepção é muito complicada.
Há uma demanda pelas drogas e a cidade é muito grande, o entorno da cidade, a baixada Fluminense, a região de todo entorno da Baía Guanabara é uma área muito grande, com características socioeconômicas muito parecidas. Então vai ocupar o Cruzeiro, o Complexo do Alemão e todo entorno, a zona oeste do Rio de Janeiro, a Baixada Fluminense, Nova Duque de Caxias, Majé, São Gonçalo, Iguaçu, Nilópolis, Itaboraí... São vários municípios que tem as mesmas características socioeconômicas da favela e que o Estado não teria condição de fazer uma ocupação completa. Então isso não parece uma política adequada, ainda que fosse no combate ao tráfico, que é uma economia.

Caros Amigos - Mas que não está localizado só ali..

Não só e nem vai deixar de existir com a ocupação daquele espaço, e não haveria recursos suficientes para fazer uma ocupação integral. E se houvesse, passaríamos a viver numa cidade ocupada, num estado policial. As respostas que estão se dando ao problema são completamente inadequadas.

Caros Amigos - Como o senhor vê a participação das forças federais nessa ação?

Completamente inadequado. Elas não tem preparo para esse tipo de atuação, embora tenham ensaiado esse tipo de ação no Haiti. Elas poderiam desempenhar outro papel, na entrada dessas drogas no país, ou das armas. Poderiam exercitar outro papel nas fronteiras e na própria questão da costa brasileira, mas essa interface diretamente com a população pobre se revela inadequada, porque o papel do militar nas forças armadas é de destruir o inimigo, e não podemos tratar essas áreas como ocupadas pelos inimigos. Mesmo os criminosos que devem ser presos julgados e se culpados condenados, não podem ser tratados como inimigos a ponto de serem exterminados. A concepção que vige nas Forças Armadas é que são preparadas para destruir o inimigo, e Estado não pode assumir papel de inimigo do seu povo. Então isso é muito complicado, colocar as Forças Armadas contra a sociedade. A história nos dá maus exemplos disso. Quando o terrorismo de Estado foi instituído no Cone Sul foi o momento que o Estado se voltou contra a sua população, a ponto de praticar atos aí sim terroristas contra o seu povo.

Caros Amigos - O senhor acha que estamos vivendo isso, ou corremos o risco de viver uma situação semelhante?

O paradigma da atuação das forças policiais, civis e militares no Brasil são um paradigma da ditadura militar. A própria execução do criminoso decorre de um tipo de política que se solidificou naquele período. A partir de 1958, o departamento federal de polícia do então Distrito Federal começou a matar sob a gestão do secretário que era o general Amaury Kruel. E a partir disso agentes do Estado passaram a matar. Isso se intensificou durante a ditadura militar, e aí que se formaram os grupos paramilitares, os esquadrões da morte, grupos de extermínio, e que dá a atual milícia. O paradigma de atuação das polícias ainda é o paradigma da atuação da ditadura militar. A atuação das polícias não foi modificada com a redemocratização do país e com a nova ordem, da Constituição de 1988 para cá.

Caros Amigos - O fato do alvo das casas serem invadidas sem mandado isso pode ser considerado criminalização da pobreza, já que não se entra nas casas de classe media sem mandado judicial?

Não se entra da casa da classe média, nem nas empresas de pessoas da classe dominante. Na casa nem pensar. É paradigmático que quando o MST promove uma ocupação visando a reforma agrária os arautos da luta contra essa criminalidade falam que não se pode fazer nenhuma reivindicação fora dos parâmetros legais e criminalizam os movimentos sociais dizendo que eles tem uma postura meramente reivindicatória.
Então, a ordem jurídica é chamada à baila quando se trata de uma postura reivindicatória dos setores populares. Mas, ao Estado e às classes dominantes se dá o direito de mandar o Estado de Direito e a Constituição às favas quando seus interesses assim recomendam. E veja que não é falta de instrumento. A Constituição permite a decretação de Estado de Defesa e até de Estado de Sítio.

Então, quando o presidente da República manda forças armadas para um tipo de atuação dessa, ele está compactuando com este crime contra a sociedade e contra os pobres. Se a situação fosse grave a ponto de demandar algum ou alguns dos direitos constitucionalmente estabelecidos, a Constituição dispõe de mecanismos para Estado de exceção, e o meio de exercitar isso, que seria o Estado de Defesa ou Estado de Sítio. Mas não se apelou para o instrumento que a própria ordem jurídica colocou a disposição do Estado para que ele possa suspender algumas das prerrogativas da ordem constitucional. Fez-se tudo à margem da legalidade, o Estado perdeu a superioridade ética ao tomar como referência a atuação daqueles que estão fora da lei. Para combater uma prática que se diz fora da lei, o Estado também se colocou à margem da lei. Estão todos na situação de marginais.

Caros Amigos - Qual sua opinião sobre a instalação das UPPS no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro?

Elas vem neste contexto da ocupação militar. O Estado pode ocupar essas áreas de outra forma. E aqui no Rio de Janeiro já há uma demanda de setores imobiliários para redistribuir os títulos de propriedade nessas áreas ocupadas pelas UPPs. Eu sou juiz de um município de Nova Iguaçu, localizado a 35 quilômetros do centro do Rio de Janeiro e a maioria dos imóveis são de loteamento sem ter os serviços básicos e sem regularização fundiária. A Baixada Fluminense toda vive essa situação da irregularidade fundiária, da falta de registro dos títulos pelos ocupantes. E não há uma demanda para regularização fundiária nessas áreas de pequeno valor econômico, e áreas não cobiçadas pela classe dominante. Mas já se ensaiam reivindicações da própria indústria imobiliária para que se regularize fundiariamente as áreas ocupadas pela UPP. Isso me parece um convite à especulação imobiliária.

Caros Amigos - Para as Olimpíadas?

Não só para a as Olimpíadas, mas como a própria ocupação da cidade que já é densamente ocupada nas áreas nobres. O avanço sobre as áreas ocupadas pelas população pobre poderia se dar após a regularização fundiária porque as classes dominantes poderiam vir a adquirir imóveis nessas áreas, expulsando os atuais moradores, mediante remuneração, para as periferias.

Caros Amigos - Na implantação há denuncias de truculência policial, violência, abuso...

Não só no momento das ocupações, mas nos momentos posteriores da convivência dos moradores com policiais. Moro próximo a uma dessas áreas ocupadas e recebi o relato de um morador que chegou a ser preso chegando em casa e sendo abordado por um dos policiais ocupantes da comunidade onde ele nasceu. Então temos esse entrechoque das forças de ocupação com o morador. Não podemos dizer que essa seja uma área entre aspas, livre. É uma área ocupada pela perversidade e violência do traficante e que é substituído depois pela truculência, e arrogância do aparato do Estado.

Caros Amigos - Haverá um acréscimo de 4 milhões de reais nos gastos com a polícia militar e esses gastos serão financiados pela iniciativa privada. O que acha disso?

Todas as vezes que iniciativa privada participou dessas atuações do Estado ela não fez por doação e sim por investimento. Em vários momentos isso aconteceu. O próprio golpe de 64 se deu com investimento de órgãos privados que depois lucraram com o regime e levaram à falência seus concorrentes. Temos de empresa de comunicação, a empresa aérea, a empresas do sistema do setor financeiro, que financiam um tipo de política para obter ganhos. Essas práticas são sobretudo suspeitas porque o objetivo da iniciativa privada é lucro, não é filantropia. É apenas investimento com objetivo de retorno num outro momento.


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