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12/06/2009
Puxada de Orelha Merecida
Ana Claudia Pinho me deu uma puxada de orelhas. Claro, foi merecido. Ela escreveu, corretamente, sobre isto: O artigo dela!
IN DUBIO PRO SOCIETATE x PROCESSO PENAL GARANTISTA
(Ana Cláudia Bastos de Pinho)1
“Na dúvida, arquiva-se, tranca-se a Ação Penal ou absolve-se (in dubio pro reo), e nunca se processa, pronuncia-se ou condena-se (in dubio pro societate).
As garantias individuais são direitos concretos que prevalecem ante as abstrações (in dubio pro societate), estas servem ao direito autoritário, aos regimes antidemocráticos ou aos governos ditatoriais.
Não se pode permitir que nos regimes democráticos as abstrações “em nome da sociedade” venham destruir o sistema jurídico humanitário positivo, para dar lugar a um odioso direito repressivo, onde o Estado condena e acusa sem provas concretas”2
(Cândido Furtado Maia Neto – Promotor de Justiça do Estado do Paraná)
O objetivo primordial do presente texto não é outro, senão fomentar o debate, no sentido de identificar até que ponto o modelo de processo penal garantista, implantado pela nova ordem constitucional, vem sendo (des)respeitado ante a proliferação de ações penais infundadas, nascidas sob o escudo do vetusto in dubio pro societate.
Não é de hoje que a comunidade jurídica nacional, notadamente os processualistas de escol, clama por uma alteração em nosso Código de Processo Penal, a fim de compatibilizá-lo com os princípios e institutos consagrados na Carta Política de 19883.
Erigido sob as aspirações autoritárias do Estado Novo e descompromissado com as garantias individuais, o Código de Processo Penal está anacrônico e repleto de dispositivos que não foram recepcionados pelo ordenamento maior.
As alterações pontuais são imprescindíveis e urgentes, é bom que se repita. Porém, além disso, necessária se faz uma verdadeira mudança de mentalidade por parte dos operadores jurídicos, no sentido de pensar o processo penal, não mais como uma obrigatória necessidade de implementar a “luta contra o crime” para assegurar a “ordem social”, mas como um legítimo instrumento a serviço de um Direito Penal democrático e, acima de tudo, a serviço dos direitos fundamentais do cidadão.
A relação entre processo e Estado é inconteste, já que o processo é uma manifestação do Direito positivo e este, por óbvio, influenciado por razões de ordem política, sociológica, cultural que inspiram o exercício do poder estatal.
O Direito Processual Penal, em particular, reflete de forma bastante clara essa interdependência, pois é no âmbito de sua aplicação que se tornará mais evidente a equação ius puniendi x ius libertatis.
A tendência ideológica do Estado irá determinar o modelo de processo penal aplicado. Como bem observa JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, citado por Antônio Scarance Fernandes, “tem o direito processual penal na sua base o problema fulcral das relações entre o Estado e a pessoa individual e da posição desta na comunidade”4.
Desta forma, quanto mais autoritário o Estado, menos o sujeito passivo da relação processual será visto como cidadão, mas como mero “objeto de inquisição”, para usar a expressão do autor português. Os Estados de inspiração democrática, por seu turno, exigem, para a sua própria sobrevivência, respeito às garantias individuais, aos direitos naturais que, a este passo, já foram todos constitucionalizados pelas Cartas modernas.
Pois bem, o que temos, hoje, no Brasil? Um sistema processual penal codificado às luzes fascistas da Era Vargas em confronto com uma Constituição Federal garantista, que consagrou, como fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana e elevou a dogma de princípio maior, dentre outros, a presunção do estado de inocência.
Segundo os fundamentos da teoria do garantismo, magnificamente tratados na obra Derecho y Razón – teoria del garantismo penal, de LUIGI FERRAJOLI, somente se pode conceber o exercício do ius puniendi estatal se assegurada a tutela dos direitos fundamentais. É imprescindível, portanto, buscar um ponto de equilíbrio entre o dever do Estado de punir e o dever desse mesmo Estado de respeitar as garantias individuais constitucionalizadas5.
É exatamente nesse dilema que surge o conflito efetividade x normatividade, ressaltado por Ferrajoli. De nada adianta, em síntese, existir uma Constituição Federal garantidora de direitos fundamentais se, na prática, essas garantias são atropeladas pela aplicação de normas e conceitos oriundos de um sistema falido e de conotação antidemocrática.
Nesse sentido, salta aos olhos a aplicação, infelizmente ainda comum nos meios forenses, do in dubio pro societate para dar início a ações penais (públicas e privadas) sem razoável conjunto probatório, na esperança de que possam ganhar robustez na instrução processual. A regra, portanto, seria: na dúvida, processa-se. Se, até o final da instrução, permanecer a dúvida, absolve-se.
Será que tal orientação está de acordo com o processo penal garantista? Como compatibilizá-la com o princípio da presunção do estado de inocência? Por que o in dubio pro reo só pode ser aplicado no final do processo, quando se sabe que o processo, em si, já é uma pena? A princípio, a resposta a tais questionamentos somente pode ser encontrada caso se admita que a interpretação pelo in dubio pro societate, definitivamente, não está conforme o texto constitucional.
Nesse sentido, primorosa é a lição de AURY LOPES JR., ao afirmar que “também é importante desmascarar o frágil argumento de que no momento de admissão da denúncia exista uma presunção de in dubio pro societate. Não só não existe no plano normativo tal previsão, como, se existisse, seria inconstitucional, pois, ao afirmar que na dúvida deve-se proceder contra uma pessoa, estaríamos retirando o manto de proteção constitucional da presunção de inocência”6. (destaques apostos).
Como bem identificou o autor acima, é oportuno que se diga, inicialmente, que – apesar do in dubio pro societate se identificar perfeitamente com o modelo autoritário do Código de 1941 – em nenhum momento foi ele previsto de forma expressa na lei.
Com efeito, o art. 41, do C.P.P., que trata dos requisitos da denúncia e da queixa, dispõe que a exordial da ação penal “conterá a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias”. Ora, se o autor da ação precisa narrar o fato criminoso de forma circunstanciada deve ter, naturalmente, provas suficientes para tanto.
É o que AFRÂNIO JARDIM chama de “suporte probatório mínimo”, salientando: “torna-se necessária, ao regular exercício da ação penal, a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária”7.
Infelizmente, muitas acusações temerárias e vazias são levadas a cabo, na falsa premissa de que a dúvida deve prevalecer em favor da sociedade, ainda que para isso, exponha-se o réu ao constrangimento indevido de um processo penal, com toda a carga estigmatizante que o acompanha.
É imperioso salientar que não se está aqui a pregar a necessidade da certeza para ajuizar a ação penal, até porque esta sempre será relativa. O que se pretende é minimizar os males que a dúvida traz ao sujeito passivo da relação processual. E qual o limite da dúvida?
Com maestria, AURY LOPES JR.- ao tratar dos sistemas de investigação preliminar no processo penal - destaca que referida fase pré-processual (no Brasil, representada pelo Inquérito Policial) deve funcionar como um “filtro” para evitar acusações infundadas. Afirma o autor que o filtro processual é necessário em razão de três fatores: o custo do processo (incluindo-se, aqui, as penas processuais), o sofrimento que causa para o sujeito passivo e a estigmatização social e jurídica que gera8.
CARNELUTTI, citado por Lopes Jr., ensina que, enquanto a investigação deve se prender somente ao juízo de mera possibilidade, a ação penal, para ter início, exige mais do que isso, exige efetiva probabilidade. Possibilidade significa que as razões favoráveis e desfavoráveis à hipótese (imputação) são equivalentes; enquanto a probabilidade indica uma predominância das razões positivas (em favor da acusação) sobre as negativas9.
Total razão assiste ao insígne processualista. Acusações injustificadas, com base no in dubio pro societate, possuem um efeito criminógeno espetacular. Além de submeter o imputado ao constrangimento natural do processo penal, ainda o expõe a outras conseqüências mais drásticas, verdadeiras penas processuais, como v.g., as prisões cautelares e os assédios da mídia sensacionalista que se alimenta de escândalos e muitas vezes sequer espera a formalização da acusação, promovendo uma execração pública do investigado antes mesmo de existir processo.
É interessante notar que qualquer pessoa pode ter contra si ajuizada uma ação de natureza civil, tributária, trabalhista, sem que isso lhe cause algum mal ou a exponha a qualquer situação vexatória. Tal não ocorre com o processo penal, que rotula e estigmatiza. É o que a Criminologia moderna chama de labeling approach (teoria do etiquetamento).
Em razão de acusações sem justa causa, o indivíduo sofre todas as agruras do processo penal, todas as humilhações e, não raro, corre o risco de ser segregado provisoriamente para, após encerrada a instrução, vir a ser absolvido por falta de provas. Essa é a conseqüência perniciosa da aplicação do in dubio pro societate.
Como bem observa LOPES JR., “muitos processos infundados acabam em uma absolvição, esquecendo-se que, no caminho, fica uma vida destruída, estigmatizada”10.
Importante destacar, nesse contexto, a preocupação dos processualistas que coordenam o projeto de reforma do Código de Processo Penal em implantar uma fase intermediária contraditória, após a investigação policial e antes da formação da lide, a fim de que o Juiz, obedecido o contraditório, possa exercer um controle de pré-admissibilidade da acusação, exatamente para evitar as acusações graciosas. Sem dúvida, trata-se de uma providência inarredável e comprometida com o garantismo e que vem ao encontro do que ora se sustenta.
Esse parece ser o caminho certo. Enterrar para sempre todos os conceitos e valores nascidos com o antigo regime, entendendo que eles não mais fazem parte deste mundo.
As ciências criminais, hoje, não são mais expressões do autoritarismo, mas ferramentas colocadas à disposição dos operadores jurídicos para sedimentar o Estado Democrático de Direito. Para isso, cumpre repensar os institutos, sem preconceitos e formalismos; sem preocupações de desagradar aos dogmas arcaicos, repassados por teorias que serviram a outros interesses. É tempo do funcionalismo roxiniano, para um casamento definitivo da dogmática com a política criminal.
Enfim, recorrendo, novamente, a Ferrajoli, é preciso dar concreta efetividade ao comando normativo que já integra o corpo constitucional, sob pena de existir um abismo, cada vez maior, entre o Direito e a democracia.
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O artigo cumpre seu papel de incentivar a discussão acerca do nefasto brocardo 'in dubio pro societate', tão negligenciado pela academia quanto aplicado pelos juízes em suas decisões de pronúncia. Com maestria, Sergio Pitombo escreveu, já em 2001, o melhor texto sobre o tema: http://www.sergio.pitombo.nom.br/files/word/in_dubio.doc
ResponderExcluirQue sirva de lição e alerta para os atores jurídicos!
O que parece ser mais revoltante, ainda, não é o fato de os operadores do direito, principalmente os juízes, estarem priorisando um estado de culpa em detrimento da presunção constitucional de inocência, mas, sim, de aplicarem isso de forma deliberadamente matemática. Ainda existem juízes que incistem em entender que, em um procedimento de júri, por exemplo, quando estivermos diante de uma decisão que pode absolver sumariamente ou pronunciar,"pois como pronunciado o tenho". Essa prática me parece que qualquer coisa, menos o respeito a análise do caso concreto. Triste é quando temos decisões de pronúncia onde o magistrado claramente se exime da responsabilidade de absolver um réu de passado não tão ilibado e se utiliza do "in dubio pro societate" para deixar nas mãos do juri o dever de se explicar a população e principalmente a mídia por estar cumprindo seu papel. Precisamos, cada vez mais, de profissionais com coragem o suficiente para apliar corretamente o direito. É forçoso reconhecer que isto já vem mudando e as decisões proferidas já são um avanço publicizado, neste sentido. Mas será o suficiente? Nesta discussão, prefiro as consequências do erro do que incorrer no crime dos covardes: a omição.
ResponderExcluirA.G.N. Belém/Pará