O título epresenta, metaforicamente, aqueles que acham que podem, do seu lugar, dizer o que é melhor para os outros, ou seja, não se colocam limites democráticos. A luta pela mentalidade democrática continua, embora a opinião pública adore Portarias.... e o Fantástico também. A baixa constitucionalidade de que fala Lenio Streck, nesta quadra, ganha contornos patológicos. As Porcarias Ilegais, em nome do Bem, lembram, claro, todos os que queriam salvar alguém.... Hitler, por todos.... Não é o caso de Daniel, o magistrado desta decisão, mas não se pode generalizar...AbraçosProcesso nº: 5722/039
Espécie: Pedido de elaboração de Portaria
Autor: Ministério Público
Juiz prolator: Daniel Englert Barbosa
Comarca: Cachoeirinha
Vara: 4ª Cível
Data: 11/03/09
Vistos.
O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou pedido de elaboração de portaria para fixação de idade e horário para freqüência em estabelecimentos de diversão ou espetáculo na cidade de Cachoeirinha/RS. Afirmou que vem recebendo notícias de irregularidades na Danceteria Kiôra, no sentido de permissão de ingresso de menores de 18 anos de idade, venda de bebidas alcoólicas e relatos de uso de drogas e prostituição infantil. Aduziu que articulou, junto com a BM e o Conselho Tutelar, ida conjunta ao local, por volta da 1h30min do dia 14/01/09, tendo sido encontrados quatro adolescentes desacompanhados dos pais e/ou responsáveis. O Conselho Tutelar também verificou que inexistia qualquer informação sobre a natureza da diversão. Ainda referiu que outro empresário solicitou providências por estar cumprindo a vedação de venda de substância que cause dependência física ou psíquica a menor. Sugeriu a elaboração de portaria com a natureza da diversão (boates, danceterias, motéis, sociedades, clubes sociais, lan houses ou quaisquer outras espécies de cadas de diversão notura), estabelecendo-se o horário livre para maiores de 18 anos e adolescentes entre 16 e 18 acompanhados dos pais e/ou responsáveis, enquanto que haveria um horário restrito, até às 20hs, para adolescentes entre 12 e 16 anos. Postulou a elaboração da referida Portaria, notificação da Prefeitura Municipal, cientificação da Brigada Militar, Polícia Civil e Conselho Tutelar para que tomem as providências de fiscalização e auxílio.
Ao exame.
Tenho que, a partir de uma leitura constitucional, a competência para regulamentação da idade e horários de ingressos em locais de diversão não é do Judiciário.
É que, a este último, é atribuído o dever de julgar os casos concretos, e não de realizar regulamentação e genérica, na qual estaria substituindo a função legislativa, em afronta ao Estado Democrático de Direito.
Ao Judiciário até é dado afastar a aplicação da lei, sempre que verificada inconstitucionalidade (dever decorrente do controle da constitucionalidade das leis), mas não pode ele elaborar o texto genérico e depois ser chamado a julgar o que elaborou, como seria o caso, por exemplo, em havendo posterior provocação de demanda judicial pelo dono no estabelecimento ou através de menores envolvidos pelo regramento.
Afora os conhecidos artigos constitucionais que regulamentam a separação de poderes (art. 2º, CF), e aqueles referindo a atribuição de cada um, pode-se citar, embora se refira à comunicação social, a expressa exigência de lei no art. 220, 3º, CF, para a regulamentação de diversões e espetáculos públicos, o que remete, por simetria constitucional e identidade de motivos, a que, no âmbito local, também se exija a regulamentação legal ou, no mínimo, que seja realizada através de Decreto Municipal (jurisprudência citada na inicial, a qual confere validade a Decreto em situação idêntica a do presente feito – HC 70013893623, TJRS).
Transcrevo a norma referida:
Art. 220. (...)
§3º. Compete à lei federal:
I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada”.
Aliás, esta é a previsão do art. 74 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Da informação, Cultura, Lazer, Esportes, Diversões e Espetáculos
Art. 74. O poder público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.
Parágrafo único. Os responsáveis pelas diversões e espetáculos públicos deverão afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição, informação destacada sobre a natureza do espetáculo e a faixa etária especificada no certificado de classificação.
É bem verdade que o art. 149 do ECA refere a possibilidade judicial de portarias em determinadas hipóteses, como disciplina de participação de criança e adolescentes em locais de diversão.
Entretanto, primeiro, mesmo ciente da existência de posicionamentos divergentes, assinalo que há inconstitucionalidade decorrente da previsão de atuação legislativa pelo juiz, sendo que os fundamentos constitucionais já foram acima referidos.
Note-se, aliás, que este artigo ainda parece ser um resquício do antigo Código de Menores.
Wilson Donizetti Liberatti lembra o art. 51 daquele texto legal, pelo qual “o jovem de 17 anos não podia ir ao cinema, no período noturno, sem a prévia autorização do juiz de menores!” (Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, Malheiros, 2004, fl. 62). Agora, ao contrário, há o direito à diversão, mas dentro dos limites que o Poder Público estabelecer, não se vislumbrando, porém, que continue havendo espaço constitucional para que o Judiciário possa editar regras gerais. E, se a decisão for limitada ao caso concreto, não há necessidade de portaria.
Esta atribuição legal é que acabou gerando situações inusitadas, as quais refiro como forma de motivação, respeitando os entendimentos divergentes.
Na doutrina, Valter Kenji Ishida cita caso de portaria onde o juiz autoriza a polícia militar a advertir menores que estejam andando de bicicletas na contra-mão ou em outro local proibido e, em caso de continuada desobediência, o encaminhamento ao Juizada da Infância e Juventude. Houve, porém, mandado de segurança, o qual foi provido (Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência, 2001, Atlas, p. 242).
Já Alexandre Morais da Rosa, m comentário sobre portarias, cita exemplo de proibição judicial de a circulação com patins e skates:
Portaria de Juízes? Os limites democráticos
O Jornal O Globo, edição de 25.01.09, na página 04, noticia a expedição de Portarias por juízes da Infância e Juventude transbordando os limites democráticos. Em uma delas, foi proibida a circulação de crianças e adolescentes com skates e patins. A proibição é por demais ilegal, inconstitucional. Isto porque a Constituição da República em nenhum momento autoriza ao Poder Judiciário "legislar" e a autorização do art. 149 do ECA precisa ser lida em conformidade com a Constituição. Estas portarias que proíbem condutas lícitas, embora formalmente baseadas no ECA, violam a Constituição. São atos administrativos ilegais. Ninguém é obrigado a cumprir. São, na verdade, juízes que pensam com o resto ativo da concepção tutelar. É preciso dar um basta! (
http://webmail.tjrs.gov.br/exchweb/bin/redir.asp?URL=http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/.
Por outro lado, se eventualmente fosse feita a leitura no sentido de se tentar preservar a constitucionalidade do texto do ECA, não há como escapar da restrição expressa à elaboração de qualquer portaria genérica.
Em outros termos, a leitura conforme a constituição exigiria a atuação judicial, mediante portaria, como forma meramente subsidiária, além de outros pressupostos, como a efetiva restrição da possibilidade de edição genérica, obrigatória fundamentação e a existência de destinatários nominados, bem como que estes tivessem a oportunidade de prévia defesa.
Em pequena parte, esta conclusão decorre do próprio regramento do ECA (o restante advém da própria CF):
Art. 149. (...)
§2º As medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral.
É também possível referir a regulamentação da Consolidação Normativa Judicial/RS, onde consta vedação à elaboração de portarias genéricas, garantia de que a parte interessada tenha acesso ao devido processo legal, possibilidade de portaria apenas para estabelecimento específico, entre outros, tal qual se pode verificar abaixo:
Seção IVDas Portarias Judiciais
• Ofícios-Circulares nºs 113/96-CGJ e 21/99-CGJ.
Art. 957 – Considerando o art. 149 da Lei nº 8.069/90, ao ser expedida portaria judicial dever ser observado que, por expressa vedação legal, descabe a regulamentação genérica vedando ou restringindo, de modo indiscriminado, a entrada ou permanência de crianças e adolescentes, desacompanhados dos pais, nos estabelecimentos e atividades a que se refere o referido artigo.
Art. 958 – Em atenção ao disposto no § 2º do art. 149, antes citado, recomendável a apuração, caso a caso, do implemento das condições estabelecidas no § 1º, assegurando-se à parte interessada o direito ao devido processo legal nos termos do art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal.
Art. 959 – Concluindo o magistrado pela nocividade efetiva ou potencial do ambiente à freqüência de crianças e adolescentes de 18 anos, recomenda-se a expedição de portaria específica para o estabelecimento ou atividade em questão, sem prejuízo de providências acautelatórias em sede liminar, quando assim recomendadas pelas circunstâncias.
Art. 960 – Descabe exigir dos Conselhos Tutelares (ECA, art. 136) a fiscalização do cumprimento das portarias expedidas com fundamento no art. 149 do ECA, por não haver expressa atribuição de tais competências, nem tampouco tratarem-se de Órgãos administrativamente subordinados à Autoridade Judiciária (ECA, art. 131), sem prejuízo, porém, da colaboração espontânea que, nos termos do art. 136, inc. IV, c/c o art. 194 do mesmo Estatuto, possam vir a prestar.
E o Tribunal Justiça assim já decidiu:
APELAÇÃO CÍVEL. ECA. ELABORAÇÃO DE PORTARIA PARA REGULAMENTAÇÃO DA FREQÜÊNCIA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM ESTABELECIMENTOS NOTURNOS A QUE SE REFERE O ARTIGO 149 DO ECA. Considerando o art. 149 da lei n.º 8.069/90, ao ser expedida portaria judicial deve ser observado que, por expressa vedação legal, descabe a regulamentação genérica vedando ou restringindo, de modo indiscriminado, a entrada ou permanência de crianças e estabelecimentos e atividades a que se refere o referido artigo. Aplicação do artigo 957 da Consolidação Normativa Judicial. RECURSO IMPROVIDO. -SEGREDO DE JUSTIÇA- (Apelação Cível Nº 70017597386, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 23/08/2007)
A partir de tais premissas, trazendo a lição para o caso concreto, tem-se que respeitável postulação do Ministério Público é importante dentro da idéia da proteção integral, mas envolve portaria de caráter geral, pois abrangeria quaisquer espécies de casas de diversão noturna, não nominadas, e todos os menores incluídos nas faixas etárias (fl. 04)., devendo-se alertar para o risco da generalização.
É que, da forma que ficou redigida a proposta inicial (fl. 04), poder-se-ia cogitar de que os menores entre 16 e 18 anos não estariam autorizados, por exemplo, a freqüentar festas de debutantes, em clubes sociais, sem a presença de seus pais, o que é bastante discutível. Da mesma forma, os de 15 só poderiam ficar até as 20hs, provavelmente antes do próprio início do baile.
Trata-se, como se vê, de típico juízo de conveniência e oportunidade, muito mais afeito, quando se trata de norma de caráter geral, aos demais poderes, cumprindo ao Judiciário, em um segundo momento, analisar, aí sim, se foram observados os limites constitucionais, inclusive de razoabilidade.
Da mesma forma, no outro extremo, a redação sugerida na inicial dá a entender que até às 20hs, para adolescentes entre 12 e 16 anos, não haveria limitação específica, ou seja, uma menor, com 12 anos de idade, poderia freqüentar motel.
Por fim, sobre eventual portaria limitada à danceteria citada na inicial, além de não ter vindo pedido específico, deve-se referir que a operação conjunta, realizada pela Brigada Militar e Conselho Tutelar, não trouxe maiores elementos de prova, pois apenas foram encontrados quatro adolescentes, todos ao redor dos 17 anos de idade (fls. 19/20), o que não impede o prosseguimento da regulamentação na esfera do poder público municipal e a exigência do cumprimento de todas as determinações do ECA, para as quais é desnecessário existir portaria.
Em suma, o contexto dos exemplos, da base constitucional e dos próprios textos infraconstitucionais inviabiliza a edição de portaria genérica por sua inconstitucionalidade ou, mesmo na hipótese de adoção da tese de haver respaldo constitucional, pelas previsões normativas limitadoras de edição genérica e ausência dos demais requisitos legais.
Isto não impede, porém, que o Poder Publico Municipal venha a editar texto normatizando as situações que entender necessárias, na forma do art. 74 do ECA.
Ante o exposto, indefiro o pedido de elaboração de portaria.Intime-se.
Cachoeirinha, 11 de março de 2009.
Daniel Englert Barbosa
Juiz de Direito