Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

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02/04/2014

Diante do Livro, por Cyro Marcos da Silva

DIANTE DO LIVRO 
Escrever . Eis aí o livro. Escrevi um livro? Não é bem assim. Fui escrevendo, escrevendo e...então, veio a ideia. Eu já tinha o corpo da escrita, da escritura, da escritur’ação do escrever, do rascunhar, do rabiscar letras e deixa-las vir. Por que então, não construir um outro corpo que fizesse o apanhado de tudo isto, um livro?
Se escrevo quando estou inspirado? Não sei o que é isto. Tenho uma leve idéia de que escrevo sim, é quando estou expirado, mortificado, acurralado por essa enxurrada de letras pululando que me pedem passagem e querem se derramar ou em tela ou em papel. Escrevo quando não acho outra saída civilizada. Escrevo para abrir alas às revoluções que embrulham num mesmo pacote, entrelaçam numa mesma trança,  o corpo e o pensamento, digamos o corpo e a alma ou seja lá que nome se dê a isso. Ou melhor ainda, escrevo para dar nomes ao Isso que me acoça, que me pede passagem. Minha escrita, para mim, abre estrada, abre vereda para tecer amarrações ao que me pulsa, impulsa e repulsa. Minha relação com a minha escrita não é nada amistosa: eu não a domino, não marco lugar nem horário para a chegada dela. Ela chega, às vezes avisa, às vezes não, chega e se abanca, como se eu ficasse entregue a essa poderosa chefona, impostura e atrevida.
Agora mesmo, no momento em que estou escrevendo esse texto, algo disso está acontecendo. Quando isso for lido para chegar até vocês que irão me escutar, já será outro momento, em que  isso estará posto para o Outro, para a linguagem, para os laços que faço. Ah...minha escrita hoje é tão distante daquela exigida pelo Grupo Escolar, quando me encomendavam uma redação, ou como se dizia  naquele tempo – composição . Naquele tempo eu tinha que organizar as letras para o desempenho escolar. Foi bom. Foi ali que conheci as letrinhas e as amostras ainda bem acanhadas do poder que elas têm de fazer ponte entre  uma coisa e outra. Mas, a partir daí, na medida em que fui me havendo com outras composições, foram as letras que passaram a estar no comando. Eu me submeto ao que as letras passam então a me exigir. E confesso: com um certo alívio.
 Quando escrevo? Quando o pacote baixa. Vem que nem chuva, mas com uma única diferença: quando arma, cai mesmo a chuvarada! Mas as nuvens vão se formando lá longe, em evaporações que nem percebo e em condensações que vão me surpreender. Às vezes, como a gente vê na televisão, a escadinha é colocada ali na zona de convergência e aí chove até mesmo em dias seguidos. Mas o que provoca tanta chuva? Ah, a resposta é variada. Alegria faz isso também, mas a evaporação é brava quando algo em torno de perdas começa a se fazer presente, quando estes verbos da perda se fazem carne e começam a habitar entre nós. O que mais me provoca  escrita é quando me atinge com força medonha, os extremos. Os extremos  da beleza ou do horror,  da guerra ou da deserção, do carnaval ou da paixão, do nascer ou do morrer, da exultação ou  da melancolia, do remediável ou do incurável. Na maioria das vezes, com a escrita eu encontrei os rumos para fazer valer posições na vida, até mesmo porque todas as posições importantes que temos que tomar na vida, nos cobram preço muito alto. Quando escrevo e,  ao escrever, vou descobrindo os preços ali inscritos e que nem sempre, até então, eram  muito visíveis. 
Há safras e entre safras. Há períodos preocupantes de seca, mas é na seca que eu tenho um pouco de sossego. Quando há derrame de letras, é porque elas já entraram na  minha casa pela porta da frente e desabaram no telhado e ali estão,  feito goteira em cima de mim, pingando insistente na minha cabeça ou no meu corpo inteiro.  É a estação do desassossego.
Parece coisa de encarnação de espírito? Às vezes rio. Verbo rir? Ou rio em que chuvarada dá enchente? Fico a rir e a pensar que isso deve ser coisa de  “caboco brabo”, destes que não se contentam em aparecer em tudo quanto é terreiro e ainda assim, forçam o portão de entrada,  tentando aliviar minhas dores, meus desassossegos, ou mesmo trazer um pouco de compostura pra minhas alegrias. Pode até parecer cena e fenômeno  místico religioso, carismático, católico, batista, protestante, espírita, espiritualista, encarnacionista,  revelacionista, budista, bramanista, seja lá o que for. Mas inventei um jeito para contar para mim o que é isso. Inventei algo para isso. Vou dizer: desde jovem, muito jovem, comecei a encostar minha vida, meus sonhos, meus desejos, em barrancos de letras.
Quando a coisa apertava, eu ia correndo lá me isolar perto deste barranco imaginário com contornos bem reais, como os barrancos que havia aqui em Guarani, na Travessa João Elias,  que a gente chamava de Beco dos Aflitos. Diga-se de passagem que, com este nome, - Beco dos Aflitos - eu já estava de antemão recrutado. Pois é... ali,  quando chovia, tinha barrancos argilosos, firmes e macios,  úmidos, viscosos, limosos e quentes que ali me abrigavam, tal como os homens se abrigam nos eróticos trancos e barrancos e às vezes até barracos, que as mulheres nos oferecem.
Assim, encostada minha angústia nesses barrancos da vida, nesses barracos frágeis que dão moradia à poesia, ali eu fazia sangrias. Espetava-me uma seringa cheia de letras e aí a maldade do corpo saía, escorria como as putrefações infectas, assim como as benzedeiras faziam com brasas, afogando-as, fazendo pequenas tempestades em copo d’água, para aliviar quebrantos.  E pela vida afora isso foi se configurando  em outras modulações, mas com uma constância fiel, em todo esse percurso de vida que fiz até agora.
Para estes escritos, que tanto foram e vão me transformando, reformatando e reconfigurando minhas posições subjetivas, chega um momento em que precisam se transformar, pedem para virar páginas, até mesmo para que agora, como páginas em que estão se tornando e entornando, sejam viradas. Viradas as páginas, a gente vai dando passagem para páginas  novas, em branco, que possam ir se abrindo para matricular novos escritos. Talvez tenha sido assim que decidi lançar o livro.
Lançar o livro em Guarany. Guarany, assim como o Cyro, com y. Guarani vai na minha frente: faz 100 anos. Foi aqui sob o céu de Guarani que fiquei à mercê, completamente desamparado e submetido ao amparo , logo ao chegar a este mundo, entregue a  duas pessoas que me aguardavam. Esperaram-me com seus desejos, eles que já tinham passado por tantas agruras. Refiro-me a um homem e uma mulher: Nero José da Silva e Maria da Glória Lantelme Silva. Um homem e uma mulher que se amaram muito. Literalmente, com todas as letras, ainda que as letras lhes tenham dado sossego, esperando seus filhos nascerem para berrarem neles, elas, as letras de seus amores e de suas dores. Nos ouvidos da minha irmã, berraram cifras musicais. Nos meus, berraram abcd,  pedindo repouso no papel ou, hoje em dia, na tela. Meus pais estiveram muito tempo comigo, provando que o amor é possível para além das performances dos corpos, e juntos ficaram até o apagar das  exultações. Juntos ficaram, privilégio de poucos – até que numa idade já bem avançada, a morte, incidindo sua navalha, os separasse, como ocorreu. Uma boa porção do que me tornei, devo a eles, mas minha dívida se estende ainda ao cenário guaraniense, às escolas de Guarani, ao chão de Guarani, ao que Guarani tem de interessante e também de maçante. Devo aos calores, às chuvas, aos tórridos sóis, à lua cheia que fica mais cheia ainda espremida entre as montanhas, às frias noites e às enchentes do Rio Pomba, que sempre me mostraram como águas tranquilas podem, em pouco tempo, se tornarem caudalosos arrojos e arroubos. Foi sob este céu contornado de montanhas, que desejo, amor e gozo, em carne e palavras, me visitaram pela primeira vez. E se foi daqui que lancei meus primeiros mísseis amorosos, nada mais adequado que seja também daqui que eu lance este livro que fala principalmente  de Guarani.  Livro que fala de algo que aqui se passou. Mas que ainda traz algumas paginas de algo que se passa  nas entranhas de difíceis entradas.  As narrativas de alguns fatos de Guarani,  não têm necessariamente  nada a ver com o passado, têm a ver com a história, pois o passado sempre está perdido, restando apenas a história, sempre deturpada, sempre subvertida, sempre outra,  contada incondicionalmente sob a ética e a ótica impostora da fantasia de cada narrador.
Os mais jovens poderão perguntar, junto com os que começam a pensar que estão com a memória se apagando, se era assim mesmo, tudo isto.  E,  porque eu tenho uma leve noção dos movimentos que me fazem escrever e do alvo ofuscado que espero atingir, sempre errando o tiro, escutarei a pergunta e a deixarei escorrer pelas minhas interrogações afora. Ou então, numa última tentativa para responder a essa pergunta, se tudo se passou conforme conto no livro, deverei responder: sei lá.! E vou correndo pedir auxílio ao escritor italiano Pirandello, que vai me lembrar que  “si non è vero, è benne trovato”
Muita coisa que estou sentindo aqui e que escrita alguma dá conta de nomear, e ainda posso registrar  uma certa alegria de aqui estar, mas é alegria mestiça, vira-latas, misturada sangue bastardo do  saber e sabor nostálgico que essas ocasiões impõem.
Vou encerrando, não sem antes sem fazer uma revelação, bem ao gosto do nosso apetite guaraniense para revelações.   Quando estava escolhendo a capa do livro, fiquei muito tocado por  um momento em que algo de um reconhecimento aconteceu. Pedi ajuda a   minha atual mulher, a  Maria Angela,  pelo seu agudo bom gosto,  para escolher  a capa do livro. Ela escolheu o  desenho de uma outra mulher, uma outra Maria, a Maria José, a mãe dos meus filhos, minha falecida  mulher, a quem também aqui rendo homenagem, por ter me presenteado na vida amorosa com o  dote de  um companheirismo radical. Minha mulher agora é outra e ela encontrou com fina sabedoria e delicadeza, a dobradiça adequada que a coloca desdobrada frente à memória daquela outra mulher que a antecedeu e que hoje se acha sob o inatingível véu da morte. Aliás, nós dois, ambos viúvos, conseguimos  sempre passar silenciosos e cuidadosos diante da morte de nossos primeiros cônjuges, ou seja, diante  desta porta cerrada, deste  ponto opaco em que foram aspirados  neste ponto de radical  não saber em que a morte nos exila  Não foi a toa, que meus filhos acolheram minha nova companheira  como a bem vinda  mulher eleita pelo pai. Desde então é para exercer-se neste lugar, que ela se acha firme, permanente e seriamente convocada por mim.
 Agora sim, nós vamos ficando por aqui.
Espero que, se decidirem a comprar o livro, possam devagarzinho ir lendo e virando as páginas.  Cada um saberá a dose, e cada qual vai ter que se haver com a contra-indicação.
Pra mim foi remédio e, devo confessar, um eficaz remédio “descontrolado”.
Obrigado      
 Guarani, 29 de março de 2014
Cyro Marcos da Silva

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