ROmulo mandando ver
O PRINCÍPIO DA
CONFIANÇA APLICÁVEL NO DIREITO PENAL
Via de regra, ouvimos e lemos sobre o
princípio da confiança quando estudamos Direito Constitucional,
pois, em síntese apertada, diz respeito à segurança jurídica e ao
Estado Democrático de Direito, significando o dever que possui o
Estado de garantir a estabilidade decorrente de uma relação
institucional de confiança mútua (cfr. art. 2º., da Constituição
Federal).
Neste sentido, Ronnie Preuss Duarte explica-o: 1)
“A existência de uma situação justificada de confiança
a ser protegida, ou seja, os fatos concretos verificados devem
ter o condão de objetivar e efetivamente incutir no agente uma
determinada expectativa. Afasta-se o atendimento ao requisito quando
houver torpeza ou excessiva credulidade deste. Na prática,
o requisito se reputa preenchido com a resposta positiva à seguinte
indagação: qualquer pessoa normal, submetida às mesmas
circunstâncias, criaria a expectativa afirmada pelo sujeito?”
2) “A essencialidade da situação de confiança,
tendo em vista que a confiança criada deve
ter sido determinante na atividade jurídica do sujeito, sem a qual o
indivíduo não teria agido. Na prática, necessária será a
resposta positiva à seguinte indagação: a situação de confiança
foi decisiva para a opção do sujeito pela prática de determinado
ato jurídico?” 3) A imputação ou responsabilidade
pela situação de confiança, ou seja, o sujeito que infundiu
a confiança deverá responder por ela. Não se admite, por exemplo,
que A inspire a confiança e B venha a ser responsabilizado pela
situação. O atendimento ao requisito se dá mediante a resposta
positiva à seguinte indagação: o responsável pela situação de
confiança é o sujeito que a incutiu?” 4) O interesse
na proteção da confiança, ou seja, deve haver um
benefício prático efetivo
ao sujeito para que se reclame a proteção da confiança. Deve a
situação trazer uma vantagem ou evitar um prejuízo ao agente.
Finalmente, reputa-se atendido o requisito com a resposta positiva à
seguinte pergunta: a desproteção da situação criada causa
prejuízos ao sujeito depositário da confiança?”
Na lição de Canotilho, “a segurança
jurídica está em conexão com elementos de ordem objetiva na esfera
jurídica, a proteção da confiança atenta para os aspectos
subjetivos de segurança. Todavia, ambas demandam, dentre outras, as
seguintes características: transparência dos atos do poder,
racionalidade, clareza de ideias e palavras e fiabilidade. Tais
postulados são exigidos em qualquer ato, de qualquer um dos poderes.
(...) “O indivíduo tem o direito e o poder de confiar em que
aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus
direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas
jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado
pelas autoridades com base nessas normas se ligam ou efeitos
jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.”
(...) “A orientação normativo-constitucional não significa
que o problema da retroatividade das lei deva ser visualizado apenas
com base em regras constitucionais. Deverá ainda acrescentar-se: uma
lei retroativa pode ser inconstitucional quando um princípio
constitucional, positivamente plasmado e com suficiente densidade,
isso justifique. Esta formulação, que pretende ser uma consequência
da ideia de constituição como sistema aberto de normas e
princípios, evita duas unilateralidades: (1) a redução do
parâmetro normativo-constitucional às regras, esquecendo-se ou
desprezando-se a natureza de direito atual e vinculante dos
princípios: (2) a derivação para uma retórica argumentativa a
partir de princípios abstratos, insuficientemente positivados ou
desprovidos de densidade normativa, tais como o princípio de non
venire contra factum proprium,
o princípio da vinculação temporal do direito (cada tempo tem o
seu direito, cada direito tem o seu tempo), o princípio da garantia
de direitos adquiridos, o princípio do livre desenvolvimento da
personalidade, o princípio da igualdade do patrimônio. Uma
argumentação ancorada exclusivamente em princípios desse gênero
reconduzir-se-á a um infrutífero esquema tautológico (ex. deve ser
protegida a confiança do cidadão digna de ser protegida, devem
proteger-se os direitos adquiridos por serem direitos adquiridos)”.
Por fim, Augustin Gordillo, “estabelece uma
direção estimativa, em sentido axiológico, de valoração, de
espírito. O princípio exige que tanto a lei como o ato
administrativo lhe respeite os limites e que além do mais tenham o
seu mesmo conteúdo, sigam a mesma direção, realizem o seu mesmo
espírito”.
Pois bem.
Tal princípio aplica-se, igualmente, no Direito
Penal, especialmente quando se trata de crime culposo criação da
jurisprudência alemã (Vertrauensgrundsatz). Tal princípio
não é inovação, tampouco é desconhecido na área jurídico-penal,
muito pelo contrário.
O
consagrado e saudoso penalista Francisco de Assis Toledo, ex-Ministro
do Superior Tribunal de Justiça, em sua obra prima “Princípios
Básicos de Direito Penal” (Saraiva, 5ª. edição, págs.
301/302), no título “A
culpa no sentido estrito”,
reserva um parágrafo para explicar em que consiste tal teoria,
informando, ademais, a fonte de seu estudo: o alemão Welzel, em sua
obra Das
neue Bild des Strafrechtssystems,
cuja edição citada data de 1961, portanto há quase quarenta anos.
O
também saudoso João Mestieri,, discípulo e pupilo do grande
Fragoso, também já se debruçou sobre o assunto. Basta conferir o
seu “Teoria
Elementar do Direito Criminal”
(Edição do Autor, Rio de Janeiro, 1990, págs. 245/246). Aliás,
este autor cita como fonte de pesquisa do assunto o livro de Welzel,
“El
nuevo Sistema del Derecho Penal,
p. 72, Barcelona, 1965.
Outro
autor carioca, o Professor Heitor Costa Junior, igualmente aborda a
matéria; veja-se “Teoria
dos Delitos Culposos”
(Lumen Juris, 1988, p. 61). Igualmente, Luiz Regis Prado (Curso de
Direito Penal Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, 1999, p.
193) e André Luís Callegari (RT/Fasc. Pen. Ano 88, v. 764,
junho/99, p. 434/452).
Mas,
não é só. Há, ainda, talvez hoje, o melhor e mais completo dos
nossos penalistas, Juarez Tavares: “Direito
Penal da Negligência”
(Editora Revista dos Tribunais, 1985, págs. 148/151). Este autor,
por sua vez, cita Johannes Wessels, “Direito
Penal”
(tradução em português), editado pela Sergio Antonio Fabris
Editor, 1975, p. 150.
Não somente a doutrina refere-se ao princípio da
confiança. Os nossos Tribunais também o conhecem, senão vejamos, a
título de ilustração:
“Embora,
em termos absolutos, tudo o que não seja fisicamente impossível é
previsível, no que respeita ao trânsito a previsibilidade há de
ser temperada pelo princípio da
confiança
recíproca em razão do qual cada um dos envolvidos no tráfego tem o
direito de esperar que os demais se atenham às regras e cautelas que
de todos são exigidas. Assim, não há condenar motorista que ante
conduta disparatada da vítima, colhe-a em inevitáveis condições
de atropelamento.”
(TACRIM-SP - AC - Rel. Dínio Garcia - JUTACRIM 30/330).
“Em matéria
de circulação de veículos, como fundamental deve ser tido o
princípio de confiança,
segundo o qual o usuário do caminho tem direito a contar que os
demais usuários se comportem igualmente de maneira correta, a menos
que as circunstâncias particulares sejam de tal natureza que lhes
permitam reconhecer que não é assim.”
(TACRIM-SP - AC - Rel. Geraldo Pinheiro - JUTACRIM 56/375).
“Não é possível exigir
de um motorista que se acautele contra o que não é previsível. Em
matéria de trânsito em vigência o princípio
da confiança, em razão do qual
cada um dos envolvidos no tráfego tem direito de esperar que os
demais se atenham às regras e cautelas que de todos são exigidas.”
(TACRIM-SP - AC - Rel. Cunha
Camargo - RT 425/349).
Estes julgados mostram, por outro lado, que a
matéria não é desprovida de interesse prático, muito pelo
contrário. A seu respeito, há muito tempo se debatem os nossos
Tribunais. Aliás, digo isto por experiência própria, já que, em
30 de julho de 1997, lavrei um parecer, por determinação do Senhor
Procurador-Geral de Justiça, nos autos do Inquérito Policial n.º
001/96, oriundo da Delegacia de Polícia da 25ª. Circunscrição
Policial (Dias D’Ávila), oportunidade na qual sustentei o
arquivamento da peça investigatória, alicerçando o parecer, dentre
outros fundamentos, no princípio da confiança, in
verbis:
“Tratam os presentes autos
de um Inquérito Policial instaurado na Delegacia de Polícia da
cidade de Dias D’Ávila, para apurar um fato ocorrido no dia 18 de
dezembro do ano de 1995, aproximadamente às 20h20min, no Km 25 da
rodovia estadual BA-093, naquele município baiano. O fato
consubstanciou-se em um acidente automobilístico envolvendo três
veículos: o VW/Sedan, placa policial FG-7880; o Mercedes
Benz/Caminhão 1313, placa policial JLA-9309 e o Mercedes Benz/608
Carroceria Fechada, placa policial BH-4646. O primeiro dos veículos
era pilotado por J.F.S., vítima fatal; o segundo e o terceiro,
pertencentes a duas empresas, tinham como motoristas,
respectivamente, os Srs. N. S. e J.S.S., que saíram incólumes do
trágico evento; ressalva-se que o terceiro veículo não participou
diretamente do acidente, posto que, apenas bateu na traseira do
segundo caminhão, quando este chocou-se frontalmente com o fusca,
não tendo o seu motorista sido, sequer, indiciado. Indo os autos à
apreciação da ilustre Promotora de Justiça, esta, em fundamentado
parecer, requereu o arquivamento dos autos, alegando “conduta
exclusiva da vítima”, entendimento do qual discordou o eminente
Magistrado, que encaminhou a peça informativa para a análise do
Procurador-Geral de Justiça. Vejamos, inicialmente, os fatos
coligidos pela autoridade policial: como se verifica pela análise do
procedimento investigatório, o desastre ocorreu quando o motorista
do fusca, inexplicavelmente, ao transpor uma ponte, invadiu a pista
contrária, vindo a chocar-se com o caminhão acima identificado;
atrás deste veículo trafegava um outro que, após o choque, não
conseguindo frear a tempo, colidiu com a parte traseira do caminhão.
As testemunhas ouvidas afirmaram: “que a batida tinha sido de
frente e o fusca tinha saído de sua mão de direção; (...) que no
dia do acidente não estava chovendo, o local estava escuro, a pista
não tinha buracos e não havia nenhuma substância derrapante ali.”
(fls. 32). “(...) o fusca, de cor vermelha, de placa não anotada,
estava atravessado no meio da pista (...) que no dia do evento
delituoso não chovia, o local estava escuro, a pista asfáltica tem
poucos buracos mas não havia nenhuma substância derrapante ali.”
(fls. 31). O motorista do segundo caminhão envolvido no acidente (e
não o que se chocou contra o fusca), esclareceu que viajava no
sentido Catu/Salvador e à sua frente trafegava o caminhão pilotado
pelo indiciado, quando, inesperadamente, este veículo parou, sendo
inevitável a batida entre os dois caminhões, ainda que sem
gravidade; ademais, disse que “ouviu comentário de que o motorista
deste (a vítima fatal) se encontrava sob efeito alcoólico, pois o
mesmo tem o costume de ingerir bebida alcoólica.” (fls. 05).
Observa-se que os dois caminhões vinham um atrás do outro, na mão
de direção correta. O indiciado, ao ser interrogado na Delegacia de
Polícia, defendeu-se dizendo que o fusca, desgovernado, “tomou a
contramão de sua direção, vindo a colidir de frente com o caminhão
em que se encontrava o interrogado”, afirmando, ainda, em
consonância com os testemunhos já transcritos, “que o local se
encontrava iluminado, não tinha nenhuma substância derrapante na
pista asfáltica, bem como buracos nela.” (fls. 07). O Relatório
de Acidente de Trânsito elaborado pela Companhia de Polícia
Rodoviária Militar Estadual, atesta as seguintes características do
local onde ocorreu o desastre: pista asfáltica reta e seca, com
sinalização e visibilidade regulares e tempo bom; ademais, não
havia fumaça, poeira, animais na pista ou qualquer outra
circunstância eventual que pudesse vir a atrapalhar o tráfego
normal (cfr. fls. 20). Vejamos, agora, a prova pericial: Com efeito,
o exame laboratorial realizado no sangue coletado do ofendido acusou
2,58 gramas de álcool etílico por litro de sangue ou 2,39 ml/l
(transformando-se uma medida n’outra). Com tal concentração
sangüínea do álcool etílico, é induvidoso que o ofendido não
tinha nenhuma condição física de dirigir um veículo, ainda mais
em uma rodovia estadual com tamanho movimento; não olvidamos que
para tal conclusão não basta apenas o volume de álcool ingerido,
posto que, outros fatores também, influenciam na constatação da
embriaguez, tais como “a constituição física, a idade, o sexo,
predisposição neuromental, quantidade de alimentos no estômago,
etc.” (Dicionário de Medicina Legal, de Manif e Elias Zacharias,
2ª. ed., 1991). Atentos a este dado e lendo o Laudo de Exame
Cadavérico, observamos que a vítima pesava 45 quilos e media 1,68
cm, ou seja, tinha compleição física pequena e possuía 46 anos de
idade; ademais, o estômago estava vazio. Assim, atesta-se que os
fatores determinantes da ebriedade (ao lado da altíssima
concentração etílica) não favoreciam ao ofendido, ou seja, a par
do elevado consumo de álcool (como veremos a seguir), fatores outros
(indicados pela medicina legal) ensejam a conclusão de que o Sr.
José Francisco dos Santos, para a sua infelicidade, dirigia o seu
carro em estado de embriaguez. Com efeito, o Professor Fernando
Manuel de Oliveira de Sá, mestre da Faculdade de Medicina de
Coimbra, citado por José da Silva Loureiro Neto, colocando-se, como
ele próprio afirmou, em uma posição de benevolência, traçou um
esquema, no qual considera que “a influência alcoólica existe
como regra” quando o resultado laboratorial for de 2,0 a 3,0 g/l
(cfr. Embriaguez Delituosa, Saraiva, 1990, p. 22). Estudando o
fenômeno, o mestre da Medicina Legal brasileira, o Professor Almeida
Júnior, afirma: “Entre os vários órgãos da economia humana, é
o cérebro um dos que, em proporção com a sua massa, mais álcool
recebem. Fisiologicamente, atua o álcool como um anestésico, isto
é, como substância que exerça ação depressiva, em sentido
descendente, sobre o sistema nervoso central. Qualquer que seja a
dose ingerida, o álcool, como perturbador, que é, dos fenômenos
oxidativos celulares, tem sempre ação deprimente sobre os centros
superiores do sistema nervoso.” (in
Lições de Medicina Legal, 1961, p.
473). Para Valdir Sznick, a “influência da embriaguez tolda a
visão, atrapalha a percepção e retarda os reflexos, com
conseqüências bastante graves.” (Delitos de Trânsito, 4ª. Ed.,
p. 163). Tais considerações servem para mostrar, ao lado dos
depoimentos acima transcritos, que a vítima não poderia estar, em
absoluto, em estado de sobriedade satisfatoriamente admitido para
dirigir, posto que, ingeriu bebida alcoólica em exagero, além de
que outros aspectos orgânicos favoreciam à embriaguez. Esta
constatação explica, certamente, o fato de que o motorista do
caminhão foi colhido, na parte dianteira, pelo veículo conduzido
pelo morto; estava ele em sua mão de direção e, de repente, quando
transpunha uma ponte, deparou-se com o fusca, sendo inevitável o
choque e, ainda mais, o resultado letal. A esta conclusão também
chegou a autoridade policial que, no seu relatório, disse: “Ouvidas
as pessoas envolvidas no fato e testemunhas circunstanciais, chegamos
à conclusão, alicerçada também em laudos periciais, de que o
motorista do veículo Volkswagen, saíra da sua mão de direção
normal e colidiu frontalmente com o caminhão aqui mencionado, uma
vez que se encontrava alcoolizado, com o teor de 2,58 g/l de álcool
etílico na corrente sangüínea e, conforme o croqui produzido pelo
preposto da polícia rodoviária presente ao local do acidente,
aquele veículo colidira frontalmente com o caminhão, após sair do
seu trajeto normal. Evidências inequívocas, nos levam à
compreensão de que o motorista NIVALDO SOUZA (o indiciado) (...),
não fora o causador do episódio sinistro(...).” (fls. 35/36).
Razão tem o Delegado de Polícia: o croqui traçado às fls. 22
(naquele mesmo Relatório acima mencionado) indica que o veículo
conduzido pela vítima saiu de sua trajetória e colidiu de frente
com o caminhão; explicando-o, disse o policial: “Segundo o que foi
observado no local do sinistro, supõe-se que: o V-1 (o fusca) quando
trafegava pela rodovia, Km e trecho já citados, sem causas
definidas, saiu de sua mão de direção, colidindo frontalmente com
o V-2 (caminhão), que trafegava em sentido oposto.” (fls. 22v).
Culpa stricto sensu,
como se sabe, revela-se sempre numa conduta negligente, imperita ou
imprudente (art. 18, II, do Código Penal); as três condutas
induvidosamente indicam uma deficiência na aferição de determinada
situação por parte do sujeito ativo, sendo que a negligência induz
uma omissão do agente, havendo culpa in
non faciendo, in omittendo, ao passo
que na imprudência e na imperícia há uma atividade sem a
necessária cautela, seja do ponto de vista da ação cotidiana ou
leiga (na imprudência), seja do ponto de vista técnico-profissional
(na imperícia). De ver-se que dois elementos fundamentais para a
configuração de um fato típico culposo não se fizeram presentes,
quais sejam a inobservância do cuidado objetivo e a previsibilidade
objetiva. A previsibilidade objetiva não existiu, pois não havia
nenhuma “possibilidade de antevisão do resultado” (Damásio),
considerando-se o estado da pista asfáltica e as demais condições
de dirigibilidade (que eram normais); o mesmo se diga quanto à
inobservância do cuidado objetivo, pois o motorista do caminhão, em
nenhum instante, faltou com o dever de diligência próprio de sua
profissão: estava e manteve-se em sua mão de direção, quando foi
surpreendido pela infelicidade da conduta da vítima. Não houve, no
caso sob análise, nem negligência, nem imprudência ou imperícia
por parte do indiciado, pois este agiu com a precaução exigível
naquele momento, não faltando-lhe a observância do cuidado exigido
na espécie, tampouco violou-se o dever de cautela. Este dever de
cautela revela-se na preocupação normal que o agente deve ter com
possíveis resultados danosos de sua ação (ou omissão), facilmente
indicados pela experiência diária, furtando-se de realizar
determinados comportamentos que possam ensejar efeitos lesivos, ou
fazê-los com níveis suficientes de segurança. Acrescente-se que
naquela circunstância, o indiciado, pela sua experiência cotidiana,
não tinha razão suficiente para suspeitar de que algo lesivo
poderia vir a acontecer. Referindo-se
a este dever de cuidado, Bacigalupo ensina que “infringe el deber
de cuidado el que no emplea el cuidado que sus capacidades y su
conocimiento de la situación le hubieran permitido.” (Manual de
Derecho Penal, Colombia, 1996, p. 215). O
jurista lusitano Eduardo Correia, Professor Catedrático da Faculdade
de Direito de Coimbra, explica “que o dever, cuja violação a
negligência supõe, consiste antes de tudo em o agente não ter
usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas
para evitar o evento. Estes deveres podem estar particularmente
ligados pelo uso e pelas normas jurídicas ao exercício de um certo
ofício, profissão ou actividade. Podem assim ter uma origem legal
autónoma (quando derivam de certas normas ou regulamentos que visam
prevenir perigos) ou derivar dos usos e da experiência comum.”
(cfr. Direito Criminal, Coimbra, 1971, p. 425). De dizer-se, de mais
a mais, que nos delitos culposos, a culpa é intrinsecamente ligada
ao tipo; o fato típico culposo só se perfaz quando o evento foi
causado por uma conduta culposa do agente, id
est, quando alguém agiu de forma
imperita, negligente ou imprudente, o que não foi o caso (apesar de
falarmos apenas em culpa, lembramos que, com Welzel, tanto a culpa
quanto o dolo transferiram-se para o tipo legal de crime, passando
este a ser verdadeiro tipo doloso e tipo culposo de crime). Vejamos,
a propósito, a jurisprudência: “Nos delitos culposos, a culpa se
insere na própria descrição típica. Assim, quando demonstrada a
sua inexistência, torna-se inadmissível a ação penal.” (TJSP -
Pleno - Sindicância - Rel. Maércio Sampaio - RT 393/218). “Nos
delitos culposos, o elemento subjetivo está imanente ao tipo. Assim,
a ação antijurídica só se enquadra na definição legal do delito
quando, além de ser antecedente material do resultado, o tenha
causado por culpa.” (TACRIM-SP
- AC - Rel. Toledo Assumpção - RT
398/291). Por outro lado, como já foi dito, a essência da culpa é
a previsibilidade; assim, “tratando-se de fato imprevisível,
acontecimento, aliás, que também envolveu perigosamente o próprio
agente, é de se o encarar como fatalidade, que não pode autorizar a
incriminação legal.” (TAPR
- AC - Rel. Mattos Guedes - RT
536/385). “Somente se há de reconhecer o crime culposo quando a
conduta voluntária ligada ao evento, necessariamente, produzir um
resultado danoso não previsto, mas previsível.” (TACRIM-SP
- AC - Rel. Manoel Pedro - RT
386/248). Não tendo sido, sequer, previsível o evento, conclui-se
pela exclusiva culpa da vítima, o que elide por completo evento
delituoso a punir, considerando-se que aquela já faleceu: “Manifesta
a ausência de culpa na eclosão do evento lesivo impõe-se o
trancamento da ação penal. Assim, é de se interromper a
persecutio criminis contra quem,
dirigindo em sua mão de direção e em baixa velocidade, colhe
ciclista que, na contramão, se arremessa contra seu veículo.”
(TACRIM-SP - HC - Rel.
Ricardo Couto - JUTACRIM 18/61). Um
outro aspecto a ser abordado, especialmente porque se trata de crime
culposo envolvendo acidente de veículo, é o chamado princípio da
confiança (Vertrauensgrundsatz),
criação da jurisprudência alemã, segundo o qual os motoristas têm
que contar com que os demais também tenham um comportamento correto,
uns com os outros, atentando-se todos para as mais comezinhas regras
de segurança. A propósito, um empresário condenado por homicídio
culposo, art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, teve pedido
negado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ao analisar Habeas Corpus
(HC) 96554, a Primeira Turma indeferiu o pedido de absolvição de
Marcondes. A relatora da matéria, Ministra Cármen Lúcia Antunes
Rocha, registrou que o empresário, quando interrogado, não fez
qualquer menção ao princípio da confiança, alegado posteriormente
pela defesa. Essa tese, segundo o condenado, consistiria no fato de
que na hora do acidente ele trafegava em uma via mais movimentada,
por isso esperou que o outro carro parasse, o que não ocorreu. Além
disso, a Ministra afirmou que “a consubstanciação do princípio
da confiança desafiaria o revolvimento do conjunto
fático-probatório”. Ela frisou que nos autos não há nenhuma
informação sobre tal questão. “Não podemos examinar a tese do
princípio da confiança porque ele não disse isso hora nenhuma. Eu
tive o cuidado de ler tudo o que veio”, completou. Para Cármen
Lúcia, a defesa “parece ter adotado de forma oportunista essa tese
da confiança a partir de um dado que hora nenhuma, inclusive, tinha
sido oferecido”. Tal princípio é explicado por Assis Toledo, nos
seguintes termos: “Seria absurdo que o direito impusesse aos
destinatários de suas normas comportar-se de modo desconfiado em
relação ao semelhante, todos desconfiando de todos. Assim,
admite-se que cada um comporte-se como se os demais se conduzissem
corretamente. (...) Para a determinação em concreto da conduta
correta de um, não se pode, portanto, deixar de considerar aquilo
que seria lícito, nas circunstâncias, esperar-se de outrem, ou
melhor, da própria vítima.” (Princípios Básicos de Direito
Penal, Saraiva, 5ª. ed., p. 302). Na doutrina, ainda, temos para
conferir a respeito do princípio da confiança os seguintes autores:
Júlio Fabrini Mirabete, Manual de Direito Penal, Volume 1, Parte
Geral, p. 141, Editora Atlas, 7ª. edição. João Mestieri, Teoria
Elementar do Direito Criminal, Edição do Autor, Rio de Janeiro,
1990, págs. 245/246. Este autor cita como fonte de pesquisa do
assunto o livro de Welzel, “El nuevo Sistema del Derecho Penal, p.
72, Barcelona, 1965. Heitor Costa Junior, Teoria dos Delitos
Culposos, Lumen Juris, 1988, p. 61. Juarez Tavares, Direito Penal da
Negligência, Editora Revista dos Tribunais, 1985, págs. 148/151.
Este autor, por sua vez, cita Johannes Wessels, “Direito Penal”
(tradução em português), Sergio Antonio Fabris Editor, 1975, p.
150. Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, Editora
Revista dos Tribunais, 1999, p. 193. Este preceito é
majoritariamente adotado por nossos Tribunais, como vê-se pelos
julgados a seguir escritos: “Embora, em termos absolutos, tudo o
que não seja fisicamente impossível é previsível, no que respeita
ao trânsito a previsibilidade há de ser temperada pelo princípio
da confiança recíproca em razão do qual cada um dos envolvidos no
tráfego tem o direito de esperar que os demais se atenham às regras
e cautelas que de todos são exigidas. Assim, não há condenar
motorista que ante conduta disparatada da vítima, colhe-a em
inevitáveis condições de atropelamento.” (TACRIM-SP - AC - Rel.
Dínio Garcia - JUTACRIM 30/330). “Em matéria de circulação de
veículos, como fundamental deve ser tido o
princípio de confiança, segundo o
qual o usuário do caminho tem direito a contar que os demais
usuários se comportem igualmente de maneira correta, a menos que as
circunstâncias particulares sejam de tal natureza que lhes permitam
reconhecer que não é assim.” (TACRIM-SP - AC - Rel. Geraldo
Pinheiro - JUTACRIM 56/375). “Não é possível exigir de um
motorista que se acautele contra o que não é previsível. Em
matéria de trânsito em vigência o princípio da confiança, em
razão do qual cada um dos envolvidos no tráfego tem direito de
esperar que os demais se atenham às regras e cautelas que de todos
são exigidas.” (TACRIM-SP - AC - Rel. Cunha Camargo - RT 425/349).
Ora, não havendo fato típico, inviável se torna o oferecimento da
denúncia, à vista do art. 43, do CPP, é dizer, pelo fato de que a
ação do agente não constituiu crime (tendo em vista a ausência de
culpa), faltando, ademais, uma condição da ação, como veremos a
seguir. É induvidoso, que não havendo crime pode e deve o Promotor
de Justiça requerer o arquivamento do Inquérito Policial, por
faltar-lhe uma das condições da ação penal, qual seja, o
interesse de agir, visto que, o fato apurado não foi delituoso e,
portanto, não se poderia pleitear a punição de alguém que não
praticou uma ação típica; neste caso, havendo denúncia, esta deve
ser rejeitada (art. 43, CPP); em sendo recebida, a ação penal deve
ser trancada, via Habeas Corpus.
Relembra-se que os pressupostos de uma peça acusatória, citando
Tourinho Filho, a partir da lição de Florian, são “autoria
conhecida, fato típico e provas mais ou menos idôneas a respeito da
relação da causalidade.” (in
Processo Penal, Vol. I, p. 352);
assim, presentes estes elementos viável é o início da persecutio
criminis. Destarte, data
venia do entendimento em contrário do
eminente Magistrado, entendemos indiscutível não haver, in
casu, justa causa para a ação penal,
pois inexiste lastro probatório suficiente na respectiva peça
informativa indicador de culpa do agente; este suporte probatório é
fundamental para a instauração da instância. A respeito, Afrânio
Silva Jardim: “Desta maneira, torna-se necessária ao regular
exercício da ação penal a sólida demonstração, prima
facie, de que a acusação não é
temerária ou leviana, por isso que lastreada em um mínimo de prova.
Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da
autoria, existência material do fato típico e alguma prova de sua
antijuridicidade e culpabilidade. Somente diante de todo este
conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da
obrigatoriedade da ação penal pública.” (Direito Processual
Penal - Estudos e Pareceres, Forense, 1986, p. 96). Assim, havendo
obstáculo que impede o Ministério Público de atuar, não é
obrigatória, in casu,
a propositura da respectiva ação penal, não podendo se falar no
princípio da obrigatoriedade, pelo qual a ação ministerial deve
ser exercida sempre que existirem “concretos indicios fácticos de
un hecho punible”, pois meras “suposiciones vagas no son
suficientes para una inculpación jurídico-penal”, como ensinam os
mestres alemães Claus Roxin, Gunther Arzt e Klaus Tiedemann (in
Introducción al Derecho Penal y ao
Derecho Penal Procesal, p. 170, trad. de Luis Arroyo Zapatero e
Juan-Luis Gómez Colomer, Barcelona, Editora Ariel S/A, 1989). Sendo
certo que dos presentes autos emergem, nada mais nada menos, do que
“vagas suposições” para a imputação de um crime, e que, pelo
contrário, o acidente foi causado por culpa exclusiva da vítima,
somos pela confirmação do pedido de arquivamento. É o parecer.
Salvador, em 30 de julho de 1997.”
Idêntica situação encontrou-se o eminente
jurista Afrânio Silva Jardim que, ao analisar peça informativa como
assessor do Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
também promoveu o arquivamento dos autos (em acidente
automobilístico envolvendo um Juiz de Direito) abordando o princípio
da confiança, em dezembro de 1984 (cfr. Direito Processual Penal,
Editora Forense, 7ª. edição, p. 389).