Contardo Calligaris
O mundo não acabou
Depois do fim do mundo, a gente se encarará sem mediação, com uma mão pronta em cima do coldre
PODE SER que o mundo acabe entre hoje (segunda, dia em que escrevo) e quinta, 27, dia em que seria publicada esta coluna. Em tese, eu não devo me preocupar: meu título não será desmentido -pois, se o mundo acabar, não haverá mais ninguém para verificar que eu me enganei.
Tudo isso, em termos, pois o fim do mundo esperado (mais ou menos ansiosamente) por alguns (ou por muitos) não é o sumiço definitivo e completo da espécie. Ao contrário: em geral, quem fantasia com o fim do mundo se vê como um dos sobreviventes e, imaginando as dificuldades no mundo destruído, aparelha-se para isso.
Na cultura dos EUA, os "survivalists" são também "preppers": ou seja, quem planeja sobreviver se prepara. A catástrofe iminente pode ser mais uma "merecida" vingança divina contra Sodoma e Gomorra, a realização de uma antiga profecia, a consequência de uma guerra (nuclear, química ou biológica), o efeito do aquecimento global ou, enfim (última moda), o resultado de uma crise financeira que levaria todos à ruina e à fome.
A preparação dos sobreviventes pode incluir ou não o deslocamento para lugares mais seguros (abrigos debaixo da terra, picos de montanhas que, por alguma razão, serão poupados, lugares "místicos" com proteção divina, plataformas de encontro com extraterrestres etc.), mas dificilmente dispensa a acumulação de bens básicos de subsistência (alimentos, água, remédios, combustíveis, geradores, baterias) e (pelo seu bem, não se esqueça disso) de armas de todo tipo (caça e defesa) com uma quantidade descomunal de munições -sem contar coletes a prova de balas e explosivos.
Imaginemos que você esteja a fim de perguntar "armas para o quê?". Afinal, você diria, talvez a gente precise de armas de caça, pois o supermercado da esquina estará fechado. Mas por que as armas para defesa? Se houver mesmo uma catástrofe, ela não poderia nos levar a descobrir novas formas de solidariedade entre os que sobraram? Pois bem, se você coloca esse tipo de perguntas, é que você não fantasia com o fim do mundo.
Para entender no que consiste a fantasia do fim do mundo, não é preciso comparar os diferentes futuros pós-catastróficos possíveis. Assim como não é preciso considerar se, por exemplo, nos vários cenários desolados do dia depois, há ou não o encontro com um Adão ou uma Eva com quem recomeçar a espécie. Pois essas são apenas variações, enquanto a necessidade das armas (e não só para caçar os últimos coelhos e faisões) é uma constante, que revela qual é o sonho central na expectativa do fim do mundo.
Em todos os fins do mundo que povoam os devaneios modernos, alguns ou muitos sobrevivem (entre eles, obviamente, o sonhador), mas o que sempre sucumbe é a ordem social. A catástrofe, seja ela qual for, serve para garantir que não haverá mais Estado, condado, município, lei, polícia, nação ou condomínio. Nenhum tipo de coletividade instituída sobreviverá ao fim do mundo. Nele (e graças a ele) perderá sua força e seu valor qualquer obrigação que emane da coletividade e, em geral, dos outros: seremos, como nunca fomos, indivíduos, dependendo unicamente de nós mesmos.
Esse é o desejo dos sonhos do fim do mundo: o fim de qualquer primazia da vida coletiva sobre nossas escolhas particulares. O que nos parece justo, no nosso foro íntimo, sempre tentará prevalecer sobre o que, em outros tempos, teria sido ou não conforme à lei.
Por isso, depois do fim do mundo, a gente se relacionará sem mediações -sem juízes, sem padres, sem sábios, sem pais, sem autoridade reconhecida: nós nos encararemos, no amor e no ódio, com uma mão sempre pronta em cima do coldre.
E não é preciso desejar explicitamente o fim do mundo para sentir seu charme. A confrontação direta entre indivíduos talvez seja a situação dramática preferida pelas narrativas que nos fazem sonhar: a dura história do pioneiro, do soldado, do policial ou do criminoso, vagando num território em que nada (além de sua consciência) pode lhes servir de guia e onde nada se impõe a não ser pela força.
Na coluna passada, comentei o caso do jovem que matou a mãe e massacrou 20 crianças e seis adultos numa escola primária de Newtown, Connecticut. Pois bem, a mãe era uma "survivalist"; ela se preparava para o fim do mundo. Talvez, junto com as armas e as munições acumuladas, ela tenha transmitido ao filho alguma versão de seu devaneio de fim do mundo.
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