DA DESCONSTRUÇÃO DA VERDADE JURÍDICA PELA CARNAVALIZAÇÃO DO DIREITO em warat
Quando me deparei com a leitura da obra intitulada A ciência jurídica e seus dois maridos[3], imediatamente me perguntei acerca da possível, se existente, relação de uma novela relegada à pornografia apimentada – típica dos escritos de Jorge Amado – com a ciência do Direito. Assumo que não entendi, em um primeiro momento, qual seria a proposta a ser desenhada, e, confesso, vi-me obrigado a assistir ao filme produzido no ano de 1976[4].
Logo nas primeiras páginas, Warat refere-se à Dona Flor como a heroína da poligamia e do imaginário erotizado – a ciência jurídica – e descreve a ambígua relação com seus dois maridos – a metafísica do desejo (Vadinho) e a metafísica dos costumes (Teodoro).
Vadinho, o primeiro marido, é solto, preguiçoso, cara-de-pau, jogador e perdulário, enfim, o típico malandrão. Contudo, a vida boêmia, a jogatina e a bebida encarregaram-se de Vadinho: embarcou em um expresso com destino ao além da vida ainda jovem. Dona Flor, mulher de atributos curvilíneos e no gozo da primavera de sua sexualidade, casa-se novamente, agora com Teodoro Madureira: farmacêutico bem sucedido, meticuloso, encaixado em seu terno impecável, canonizado pelos mais incólumes preceitos da moral e dos bons costumes.
O segundo marido estava mais morto que o primeiro. Teodoro conseguiu transformar o amor em dever, ao passo que Vadinho não conheceu a morte no imaginário de Dona Flor, porquanto sempre foi um exercício de sua autonomia feminina. Dona Flor assume sem nenhuma vergonha a contradição e resiste ao poder da castração de toda a psicologia da unidade.
A castração é a poda a um desejo. É a cultura do imobilismo. É a totalitária imposição de uma unidade. É a verdade embutida na ordem e nos costumes. É a aceitação dos estereótipos, retirando o vazio necessário à fecundação da criatividade, da autonomia e dos sentidos não-oficiais, marginais. A castração faz-nos prisioneiros de nós mesmos, condenando o sexo, o amor e o corpo. A castração é toda impossibilidade de conhecer a si mesmo. A castração é tudo que se acumula continuamente por meio da família, da educação, dos costumes, da civilização.
A ciência ocidental construiu a castração pelo excesso de saber, nos afastando da sabedoria. A ciência construiu uma sociedade de simulacros, condicionando nossa realidade ao discurso.
Dona Flor – a ciência jurídica – não se contamina pela castração. Seus dois maridos são o retrato da duplicidade e funcionam como um espaço de confronto, a luz e o escuro, o dia e a noite, o céu e o inferno. Teodoro é o símbolo máximo do pensamento cartesiano: o representante genuíno da falsa moral. Através de Vadinho, Dona Flor podia ler a vida por meio do movimento, do desejo, da imprevisibilidade. O deboche, o erótico, a loucura e o carnavalesco em resistência contínua à ordem e à razão.
Dona Flor e Teodoro respeitam-se tanto que sequer se relacionam: metafísica dos costumes. Vadinho volta da morte e permite a Dona Flor aceitar o adultério como condição normal do casamento. Enquanto o adultério representa o mágico, o carnavalesco, a marginalidade, o casamento contenta-se com a realidade culturalmente imobilizada, o desejo legalizado, a ternura cronometrada. Vadinho é o feminino, Teodoro o masculino: o lado feminino é o resultado do masculino posto em crise para fundar nossa própria política de libertação.
No Direito, o saber jurídico da modernidade nega as incertezas e o novo e tornam o poder intocável e impecável. Vadinho é o prazer, Teodoro é o dever. Sempre que a obrigação repercute no prazer, teremos alguma forma de exercício da repressão. O dever é um desejo que impõe e propaga a submissão. Vendo o prazer como lucro do dever, fica instituído no coração da sociedade o imaginário do preconceituoso que, mais cedo ou mais tarde, leva ao autoritarismo. Neste sentido, é preciso conceber democracias latino-americanas funcionando na procura da libertação de suas proibições. Nas sociedades autoritárias, a produção de um excesso de proibições acarreta a deterioração do prazer: o Estado e a sociedade se fundem em uma única mentalidade repressiva.
É preciso repensar a função jurídica estatal como um lugar de produção coletiva dos desejos, criando uma ordem carnavalizada, em que a democracia seja percebida como um espaço social do polifônico. O capitalismo, para acomodar os indivíduos em seu proveito impõe modelos de desejos, modelo de pai, modelo de infância, modelo de casamento, e, acima de todos os demais, o modelo da propriedade. Warat não propõe o aniquilamento da lei e do Estado: permite repensar a democracia como a superação da lei e do Estado na transgressão, no erótico, no proibido.
A razão impõe uma mesma máscara para todos: um rosto instituído, sem expressão, indiferente. Mas existem outras máscaras. Máscaras de Vadinho, com o poder subversivo, que transtornam as vidas automatizadas e carnavalizam o Direito, que possibilitam o despertar, a descoberta e permite o plural de ideias e desejos: bem-vindos à transmodernidade.
Warat, citando Cortázar[5], projeta o Direito no surrealismo do quotidiano, um humor onde brilha uma doce ironia, pretendendo a reinvenção da ordem instituída pela perseguição do sonho, através de personagens que traduzem a psicologia humana: os cronópios, osfamas e as esperanças.
Os cronópios são criaturas verdes e úmidas, distraídas, e sua força é a poesia. Eles cantam como as cigarras, indiferentes ao cotidiano, esquecem tudo, são atropelados, choram, perdem o que trazem nos bolsos e, quando saem em viagem, perdem o trem, chove a cântaros, levam coisas que não lhes servem. Um cronópio é uma flor, dois são um jardim. Os famas, pelo contrário, são organizados e práticos, prudentes, fazem cálculos e embalsamam suas lembranças; quando fazem uma viagem, mandam alguém na frente para verificar os preços e a cor dos lençóis. As esperanças são sedentárias e deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que é preciso ir vê-las, porque elas não vêm até nós.
Se algum cronópio tomasse o poder, perdê-lo-ia instantaneamente. Quando os famas tomam o poder, militarizam o quotiniado. A profissão predileta dos famas é serem advogados. Os esperanças constituem o Direito do saber: quando um esperança leciona em uma universidade, não conhece os seus alunos e, por isso, os trata bem, pois no final pouco lhe importam. Quando os esperanças tomam o poder, falam de democracia.
Warat utiliza do imaginário de Borges e sua obra O livro de areia para descrever um livro infinito, em que todos têm a capacidade de reescrever tudo na medida em que lêem. Em contrapartida, existem livros de pedra, em que nada pode ser reescrito. O livro de areia refere-se à intertextualidade, como uma pluralidade de significações que pairam no ar e tomam forma de acordo com a visão emprestada do próprio leitor. A intertextualidade é uma produtividade onde se operacionaliza a polifonia das significações, uma matriz anônima, onde se dá o trabalho do significado. Toda prática social inscreve-se em uma ordem intertextual: sendo esta ordem porosa, tem-se a democracia; ao contrário, da ordem intertextual petrificada decorre o totalitarismo.
Ainda, encontra em Barthes uma prática democrática desenvolvida em um duplo movimento. Primeiro na crítica, no combate, na resistência às expressões simbólicas e repressivas. Segundo na prática coletiva, descentralizada e desierarquizada da produção e leitura dos discursos. Impõe-se uma constante luta na sociedade para a imposição de versões unívocas de mundo. Para Warat, para construção de uma prática democrática é necessário que o poder, a lei e o saber fiquem expostos simbolicamente à sociedade a fim de permitir a reconstrução permanente do social. Por fim, suspeita da ciência e a censura por suas pomposas procuras da verdade, por sua ousadia de pretender refletir o mundo.
Para Barthes, a doxa é um conglomerado de preconceitos naturalizados com o que se simula vencer as incertezas. A doxa representa o discurso majoritário e arrogante da racionalidade cotidiana. E a episteme nada mais é que a doxa politicamente ignorada, para preservar o os efeitos sociais da verdade. A doxa é combatida pelo paradoxo. Ademais, pretende dissolver a clássica separação entre conotação e denotação no campo da verdade. A denotação, consistente na crença no referente, é a esteriotipação da conotação, do mito. Dentro deste contexto, a ideologia não passaria de uma cosmovisão centralizadora e unívoca dos acontecimentos culturais e históricos. Logo, a ideologia seria um discurso democrático reprimido, representando a negação do plural, da práxis e do saber. O que impulsiona a produção do discurso democrático é a possibilidade de uma escritura que possa acolher o conflito, a heterogeneidade e a fragmentação dos acontecimentos do mundo.
Mas, onde se insere o amor neste enxame de ideias? Ora, a grande maioria das pessoas se equivoca: confunde os conhecidos com o amor. Para encontrá-lo deve-se abandonar o periférico, em busca do centro, da reserva selvagem. Quando as pessoas se casam assinam um acordo para tornarem-se conhecidos, um pacto para que compartilhem uma cama, para que dois cadáveres pratiquem o simulacro de uma sexualidade devida, obrigada. Dona Flor teve dois conhecidos maridos: em nenhum deles, contudo, conheceu o amor. Podemos orientar nossas vidas pelo medo ou pelo amor. A pessoa orientada pelo amor não tem medo, corre os riscos, entrega-se aos resultados inconsequentes, sem cálculos. Quando duas pessoas se unem afetivamente com medo não há amor: dependência, exploração, manipulação, autoritarismo, poder, controle e opressão. O amor é doloroso porque permite a transformação, do velho pelo novo. O amor éinterdependência: não há amor na dependência, nem na independência. O amor da interdependência é a sincronia que permite que conviver com o outro para produzir juntos a diferença.
As relações sãs se desenvolvem entre pessoas autônomas, que desfrutam de sua liberdade. Um indivíduo fechado, isolado do outro, não realiza a sua autonomia, fica alienado. Por outro lado, um excesso de vínculo com o outro também conduz à alienação. A autonomia é um vínculo com o outro em que ambos têm movimento próprio.
Mas, atenção: é preciso ter o espírito desarmado (carnavalizado) para poder incorporar o novo. A carnavalização é uma forma de transferência da interação social ao território da produção do saber. Num processo de carnavalização, não existem mais fundamentos seguros para definir o lugar de um e de outro: trata-se de uma visão aberta, cosmopolita, democrática do mundo. A carnavalização é uma concepção do ensino em que se aprende sem que ninguém ensine. O ensino tradicional não deixa de ser um doentio sistema de rotulação. Um dia de aula, um seminário, deveria ser como um dia de infância. A didática carnavalizada visa substituir pelo jogo a compulsão neurótica pelas verdades. O jogo substituindo o tédio e a dominação.
A sala de aula deve ser um espaço para crescer, para excitar-nos perspectivamente, para a descoberta da importância da vida. Na maioria das vezes a voracidade intelectual substitui o medo do encontro com o outro e nós mesmos. Ninguém pode educar-se sem fantasia. Não existem caminhos para a educação por meio das distâncias emocionais que a ciência provoca em uma sala de aula. A neutralidade científica, além de não potencializar afetivamente o aluno, torna onipotente o docente, como um senhor de verdades absolutas.
[...] É importante reparar que, para que a loucura seja eficiente na universidade, ela deve ser instituída. Sem a institucionalização do câmbio, nada muda. Um louco solto não faz verão.
Enfim, a carnavalização propôs a intertextualidade dos discursos, relativizando o seu caráter dogmático. Foi uma proposta de quebra com o autoritarismo das verdades científicas, em que a desordem do racionalismo da ciência moderna valoriza a subjetividade humana ao trocar a posição de observador pela do participante.
[...] A ilusão da verdade deve morrer para dar passo a um novo mundo amoroso fundado numa ilusão que a razão logocêntrica chamará loucura.
É preciso ser um professor ilusionista, que nos propõe a pensar nos saberes e nas verdades sem estar na dependência de seus preconceitos. Os professores tradicionais estão incapacitados para a crítica, são escravos das verdades que propagam. Por outro lado, o professor ilusionista deve se negar a fazer o papel da erudição: a vontade de viver deve estar sempre acima da vontade das verdades.
É preciso reconhecer na utopia que o novo tem o direito de ser superação do conhecido, da moral. O novo tem sempre o direito de transgredir as normas.
Assim, Warat empresta a sua máscara para que a construam de novo, tornando-a mais atraente, provocando o encanto e a surpresa de enxergar quem você é ou quem pode ser você.
[1] Artigo elaborado durante o curso de Mestrado da disciplina Teoria do Direito Crítica, ministrada pelo Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa.
[2] Mestrando em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Formado em EAD Docência pela Fundação Getúlio Vargas (2010). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UNISUL (2008). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (2000). Professor de Direito Constitucional na Uniasselvi de Indaial (SC) e de Direito Processual Civil no IBES (Instituto Blumenauense de Ensino Superior). Analista da Justiça Federal junto à Assessoria do 2º Juizado Especial Federal Previdenciário de Blumenau (SC).
[3] WARAT, Luis Alberto. In Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coodenadores: Orides Mezzaroba e outros. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 61-186.
[4] Dona Flor e Seus Dois Maridos é um dos mais importantes filmes do cinema brasileiro: quente, sensual e divertidíssimo, com grandes atuações do elenco e soberba direção de Bruno Barreto.
[5] CORTÁZAR, Júlio. Histórias de Cronópios e de Famas.
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