1. Quando Marco Aurélio Marrafon convidou-me para escrever este prefácio, fiquei por duas semanas atravessado com o significante, como se fosse um Pré-Fácil, de sair. Não foi. Muito porque neste ínterim, participei de sua banca de doutorado que, de uma certa forma, continua – e com muitos méritos –, o que venho pesquisando nos últimos 8 anos: a bricolage de significantes no campo da decisão judicial. Então, a coisa estava, por assim dizer, Nada-Fácil. Principalmente porque me sentia "usurpando" o lugar de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, orientador meu e dele, reconhecidamente por nós a referência teórica e do mundo vivido. Ele, Jacinto, sempre foi um captain. Evidentemente que neste caminho o inconsciente, de alguma forma, aparece... Isto, contudo, é papo para o meu psicanalista.
2. A tentativa de responder aos questionamentos formulados pelo estado da arte, no campo do Direito, esbarra justamente na antecedente assunção de uma imaginária "necessidade" de sentido totalitário. Isto porque, embora se negue no discurso consciente, a matriz religiosa influencia, e muito, a maneira pela qual a ciência foi construída na Modernidade. O pensamento se articulou em face de uma "causalidade" infinita, preenchida, para efeito lógico, por uma "Norma Fundamental", em Kelsen, "Regras de Reconhecimento", em Hart, ou, ainda, constrangimentos da "tradição", em Dworkin. Em todos, entretanto, com algumas modificações importantes, a estrutura é completa, coerente e única. Nem poderia ser diferente.
3. Com efeito, ao não aceitar a incoerência, incompletude e pluralidade normativa, o Direito articula um registro de fundamentação capaz de se acomodar, de maneira ingênua, claro, no discurso herdeiro da Modernidade. A simplificação conta, de um lado, com um modelo de sujeito "universal", dotado de razão, ponderador de suas ações e desprovido de "inconsciente"; por outro, demanda a construção de um arsenal de "métodos" capazes de dar a aparência de que não existem dificuldades na interpretação dos textos. Evidentemente que isto decorre, no não-dito, de uma pretensão ideológica, atualmente centrada no "mercado neoliberal" e sua "flexibilidade" angustiante.
4. Assim é que "segurança jurídica" e "justiça" sempre foram os significantes invocados para dar a falsa aparência, evidente, de que se pode chegar a construir, no reino dos homens, um espelho da perfeição divina. Para isto, entretanto, além de se acreditar em Deus, coisa da ordem da crença, resta a verificação de uma impossibilidade material. É que com o giro lingüístico é impossível se acreditar em conceitos firmes, definitivos, forjados pela "descoberta" da "natureza" das "coisas", justamente porque isto somente pode ocorrer numa "hermenêutica paranóica" em que todos são iguais e, portanto, alheios à realidade. A realidade não é mais percebida como um "dado", mas sim "construído" em face dos limites simbólicos do sujeito, enfim, de sua estrutura compartilhada também, com o meio.
5. A tensão entre o texto e o sentido resultante da norma esteve banhada pela cisão sujeito/objeto. De um lado o sujeito universal, capaz de obter a mesma resposta via o método adequado, por outro, um objeto provido de essência. O observador poderia, assim, pelo método, reconfortar-se com a verdade. A estrutura era metafísica e herdada da Modernidade. A superação do esquema sujeito-objeto procura aterrar esta distinção para os colocar num campo único: a linguagem. A extração da essência do texto desliza para o registro do Imaginário, contracenando com uma certa ausência de mediação Simbólica decorrente da (de)formação filosófica dos atores jurídicos. É impossível a existência de um método universal. Por isso manipula-se (este é o termo) o método conforme as necessidades prévias do sentido, a saber, os métodos servem de argumento manifesto do processo de compreensão latente, existente desde sempre, e rejeitado por uma tradição inautêntica do direito. Para alcançar alguma sofisticação no campo jurídico, como apontaram Lenio Streck e Ernildo Stein, as contribuições de Heidegger e Gadamer são fundamentais. Ao trazer a compreensão vinculada ao "ser-aí", a partir das noções de círculo hermenêutico e diferença ontológica, proporciona uma nova maneira de embate hermenêutico. Diz Streck: "Em outras palavras, antes de argumentar, o intérprete já compreendeu." Eis o sentido.
6. Com o descentramento do sujeito formulado com Freud, não mais dono absoluto da partida, porque há algo que não se sabe e não se quer saber, eccoa Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, a racionalidade encontra um limite do racionalizável. Por isto que Lacan dando uma nova versão ao "penso, logo existo" cartesiano, apontou que com o inconsciente o sujeito existia onde não pensava e pensava onde não existia. No mais-além está o inconsciente que é desejo, desejo do Outro. Daí que não existe mais saída ôntica, mas somente ética, colmatável fora do consciente, no registro do desejo, submetido ou não à Lei-do-Pai. Deste submetimento ou não, com suas implicações – neuróticos, psicóticos ou perversos – articulados em face do desejo do Outro, de vez, quebrou-se a epistemologia da Modernidade. Desprovidos de metalinguagem, sem verdades redentoras, estamos perdidos ou achados na linguagem, no registro do Simbólico, sem que se possa fixar, como muitos buscam, um significante originário, que não a falta. Este limite, se reconhecido, deixa os claudicantes atores jurídicos "sem pai nem mãe", retornando-se, na maioria das vezes, às verdades duras que devolvem o conforto metafísico, da salvação, da Verdade e da fé.
7. Penso, de qualquer maneira, que o ator jurídico encontra-se num dilema: se reconhece que o sujeito consciente não concede a segurança prometida pode cair num niilismo relativista perigoso, mas se acolhe a consciência eclipsada no "eu", está perdido desde sempre. Fica à mercê, neste último caso, das relações de poder indicadas pela "Análise do Discurso", do qual, foi bem apontado no texto, o argumento de autoridade, daqueles que emitem o discurso reconhecido pelo "Monastério dos Sábios" (Warat), produz a "violência simbólica" (Bourdieu) do discurso jurídico dito "sério". Veja-se que o discurso jurídico dito sério, mostra Eni Orlandi, elimina o adversário tido por não sério, se alia ao discurso reconhecido como sério e se cobre pelo manto da seriedade. Neste discurso não existe espaço para democracia, alteridade, havendo espaço aí, neste pensar, mesmo que de forma mitigada, para Habermas. É preciso compreender que entre o bem-dito e o mal-dito encontra-se um silêncio que diz, sendo importante perceber o que não se diz ou o que não se quis. E o desvelar, vela, sempre. Assim, o sentido da estrutura, inclusive psicanalítica, domina, condiciona. a estrutura do sentido. E como a palavra não segura, nem existem sentidos unívocos, o sentido navega, mais ou menos, entre o sentido da estrutura e a estrutura do sentido.
8. Nada melhor do que o autor ao nos mostrar o conteúdo do livro: "Por isso, o subtítulo "A decisão judicial ‘entre’ o sentido da estrutura e a estrutura do sentido" traz, propositadamente, uma ambigüidade: a expressão "entre" inicialmente denota que a compreensão do direito depende do sistema constitucional (perspectiva ôntica, estrutura do sentido) e do sujeito existencial (perspectiva ontológica, sentido da estrutura) e, numa segunda leitura, que o processo decisório/compreensivo do caso jurídico se realiza no "meio", no termo médio dos dois pólos do círculo hermenêutico." Daí o lugar e a função da Hermenêutica Filosófica, com a qual a hermenêutica jurídica do senso comum teórico se desfaz. A sofisticação, assim, verifica-se no caráter unitário da compreensão, cujos desafios democráticos são articulados em face de um Sistema Constitucional em constante construção. Isto porque as pré-noções democráticas precisam de acomodação no sujeito para, depois, servirem para uma antecipação constitucionalmente adequada do sentido.
9. Cabe dizer, ao final, que Marco Aurélio Marrafon é uma das cabeças mais brilhantes que já conheci. Possui, ainda, o diferencial de ser humilde, coisa que só gente madura teoricamente pode ser. Consegue articular um texto denso com o jeito de excelente professor que é. Espero, assim, que o texto seja lido na totalidade. Com ele o leitor não sairá ileso, uma vez que a sua "pré-noção" será, necessariamente, sofisticada. O ganho, com isto, não é só do leitor, mas da própria democracia!
Rio de Janeiro/Curitiba/Joinville, agosto de 2008.
2. A tentativa de responder aos questionamentos formulados pelo estado da arte, no campo do Direito, esbarra justamente na antecedente assunção de uma imaginária "necessidade" de sentido totalitário. Isto porque, embora se negue no discurso consciente, a matriz religiosa influencia, e muito, a maneira pela qual a ciência foi construída na Modernidade. O pensamento se articulou em face de uma "causalidade" infinita, preenchida, para efeito lógico, por uma "Norma Fundamental", em Kelsen, "Regras de Reconhecimento", em Hart, ou, ainda, constrangimentos da "tradição", em Dworkin. Em todos, entretanto, com algumas modificações importantes, a estrutura é completa, coerente e única. Nem poderia ser diferente.
3. Com efeito, ao não aceitar a incoerência, incompletude e pluralidade normativa, o Direito articula um registro de fundamentação capaz de se acomodar, de maneira ingênua, claro, no discurso herdeiro da Modernidade. A simplificação conta, de um lado, com um modelo de sujeito "universal", dotado de razão, ponderador de suas ações e desprovido de "inconsciente"; por outro, demanda a construção de um arsenal de "métodos" capazes de dar a aparência de que não existem dificuldades na interpretação dos textos. Evidentemente que isto decorre, no não-dito, de uma pretensão ideológica, atualmente centrada no "mercado neoliberal" e sua "flexibilidade" angustiante.
4. Assim é que "segurança jurídica" e "justiça" sempre foram os significantes invocados para dar a falsa aparência, evidente, de que se pode chegar a construir, no reino dos homens, um espelho da perfeição divina. Para isto, entretanto, além de se acreditar em Deus, coisa da ordem da crença, resta a verificação de uma impossibilidade material. É que com o giro lingüístico é impossível se acreditar em conceitos firmes, definitivos, forjados pela "descoberta" da "natureza" das "coisas", justamente porque isto somente pode ocorrer numa "hermenêutica paranóica" em que todos são iguais e, portanto, alheios à realidade. A realidade não é mais percebida como um "dado", mas sim "construído" em face dos limites simbólicos do sujeito, enfim, de sua estrutura compartilhada também, com o meio.
5. A tensão entre o texto e o sentido resultante da norma esteve banhada pela cisão sujeito/objeto. De um lado o sujeito universal, capaz de obter a mesma resposta via o método adequado, por outro, um objeto provido de essência. O observador poderia, assim, pelo método, reconfortar-se com a verdade. A estrutura era metafísica e herdada da Modernidade. A superação do esquema sujeito-objeto procura aterrar esta distinção para os colocar num campo único: a linguagem. A extração da essência do texto desliza para o registro do Imaginário, contracenando com uma certa ausência de mediação Simbólica decorrente da (de)formação filosófica dos atores jurídicos. É impossível a existência de um método universal. Por isso manipula-se (este é o termo) o método conforme as necessidades prévias do sentido, a saber, os métodos servem de argumento manifesto do processo de compreensão latente, existente desde sempre, e rejeitado por uma tradição inautêntica do direito. Para alcançar alguma sofisticação no campo jurídico, como apontaram Lenio Streck e Ernildo Stein, as contribuições de Heidegger e Gadamer são fundamentais. Ao trazer a compreensão vinculada ao "ser-aí", a partir das noções de círculo hermenêutico e diferença ontológica, proporciona uma nova maneira de embate hermenêutico. Diz Streck: "Em outras palavras, antes de argumentar, o intérprete já compreendeu." Eis o sentido.
6. Com o descentramento do sujeito formulado com Freud, não mais dono absoluto da partida, porque há algo que não se sabe e não se quer saber, eccoa Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, a racionalidade encontra um limite do racionalizável. Por isto que Lacan dando uma nova versão ao "penso, logo existo" cartesiano, apontou que com o inconsciente o sujeito existia onde não pensava e pensava onde não existia. No mais-além está o inconsciente que é desejo, desejo do Outro. Daí que não existe mais saída ôntica, mas somente ética, colmatável fora do consciente, no registro do desejo, submetido ou não à Lei-do-Pai. Deste submetimento ou não, com suas implicações – neuróticos, psicóticos ou perversos – articulados em face do desejo do Outro, de vez, quebrou-se a epistemologia da Modernidade. Desprovidos de metalinguagem, sem verdades redentoras, estamos perdidos ou achados na linguagem, no registro do Simbólico, sem que se possa fixar, como muitos buscam, um significante originário, que não a falta. Este limite, se reconhecido, deixa os claudicantes atores jurídicos "sem pai nem mãe", retornando-se, na maioria das vezes, às verdades duras que devolvem o conforto metafísico, da salvação, da Verdade e da fé.
7. Penso, de qualquer maneira, que o ator jurídico encontra-se num dilema: se reconhece que o sujeito consciente não concede a segurança prometida pode cair num niilismo relativista perigoso, mas se acolhe a consciência eclipsada no "eu", está perdido desde sempre. Fica à mercê, neste último caso, das relações de poder indicadas pela "Análise do Discurso", do qual, foi bem apontado no texto, o argumento de autoridade, daqueles que emitem o discurso reconhecido pelo "Monastério dos Sábios" (Warat), produz a "violência simbólica" (Bourdieu) do discurso jurídico dito "sério". Veja-se que o discurso jurídico dito sério, mostra Eni Orlandi, elimina o adversário tido por não sério, se alia ao discurso reconhecido como sério e se cobre pelo manto da seriedade. Neste discurso não existe espaço para democracia, alteridade, havendo espaço aí, neste pensar, mesmo que de forma mitigada, para Habermas. É preciso compreender que entre o bem-dito e o mal-dito encontra-se um silêncio que diz, sendo importante perceber o que não se diz ou o que não se quis. E o desvelar, vela, sempre. Assim, o sentido da estrutura, inclusive psicanalítica, domina, condiciona. a estrutura do sentido. E como a palavra não segura, nem existem sentidos unívocos, o sentido navega, mais ou menos, entre o sentido da estrutura e a estrutura do sentido.
8. Nada melhor do que o autor ao nos mostrar o conteúdo do livro: "Por isso, o subtítulo "A decisão judicial ‘entre’ o sentido da estrutura e a estrutura do sentido" traz, propositadamente, uma ambigüidade: a expressão "entre" inicialmente denota que a compreensão do direito depende do sistema constitucional (perspectiva ôntica, estrutura do sentido) e do sujeito existencial (perspectiva ontológica, sentido da estrutura) e, numa segunda leitura, que o processo decisório/compreensivo do caso jurídico se realiza no "meio", no termo médio dos dois pólos do círculo hermenêutico." Daí o lugar e a função da Hermenêutica Filosófica, com a qual a hermenêutica jurídica do senso comum teórico se desfaz. A sofisticação, assim, verifica-se no caráter unitário da compreensão, cujos desafios democráticos são articulados em face de um Sistema Constitucional em constante construção. Isto porque as pré-noções democráticas precisam de acomodação no sujeito para, depois, servirem para uma antecipação constitucionalmente adequada do sentido.
9. Cabe dizer, ao final, que Marco Aurélio Marrafon é uma das cabeças mais brilhantes que já conheci. Possui, ainda, o diferencial de ser humilde, coisa que só gente madura teoricamente pode ser. Consegue articular um texto denso com o jeito de excelente professor que é. Espero, assim, que o texto seja lido na totalidade. Com ele o leitor não sairá ileso, uma vez que a sua "pré-noção" será, necessariamente, sofisticada. O ganho, com isto, não é só do leitor, mas da própria democracia!
Rio de Janeiro/Curitiba/Joinville, agosto de 2008.